Georges Didi-Hubermané um historiador e crítico, nascido em Saint-Étienne, França, em 1953. Leciona na École de Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris. Publicou La Peinture incarnée (1985), Devant l’image (1990), Ce que nous voyons, ce qui nous regarde (1992) – editado e traduzido no Brasil como O que vemos, o que nos olha (São Paulo: Editora 34, 1998), La Ressemblance de l’informe, ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille (1995), Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images (2000), L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg (2002), L'Image ouverte. Motifs de l'incarnation dans les arts visuels (2007) e o mais recente Écorces (2011), entre outros. O texto abaixo, em tradução de Carlito Azevedo, foi publicado pela primeira vez no segundo número impresso da Modo de Usar & Co.
MdU&C.
§
TEXTO DE GEORGES DIDI-HUBERMAN
Similar e simultâneo
Georges Didi-Huberman
à A. F.
Similar e simultâneo possuem a mesma raiz, simul, que enuncia algo assim como a rivalidade na sorte: três dados são lançados, três dados absolutamente similares que caem ao acaso, ao mesmo tempo. Mas vão definir, projetar de imediato três números, três destinos absolutamente diferentes, rivais em certo sentido, entregues à sorte e à sua crueldade. São lançados no mesmo instante, similarmente. Mas uma vez executado o lance, tudo se separa, os abismos se abrem infinitamente, cruelmente: a um coube a vida; a outro, o ferimento; ao terceiro, a morte. A um, o olhar; a outro, implorar; ao terceiro, nada.
*
É a imagem de uma colisão, uma colisão cega mas que decide tudo. Do estrondo dos veículos esmagados, no nevoeiro, no rumor da estrada que continua a se ouvir, três homens. Um está ali, não sabe como. Livrou-se das ferragens, não recorda como. Está inteiro, ileso, ignora a razão. Tudo o que ele pode fazer, nesse momento de idiotia – a frivolidade de sua sorte, nesse dia –, é olhar. Ele olha, e o que ele olha lhe mostra onde ele deveria estar.
O outro aparecerá no branco do nevoeiro. Tornou-se um monstro humano, dilacerado, mutilado, desvairado. De pé, contudo, absurdamente de pé. Ele caminha e implora: “Jo, onde está você? Jo, onde está você?” Ele procura por seu companheiro, há poucos segundos sentado ao seu lado. Ele procura sem ver. Ele ignora que sua própria vida se sustenta por um fio, que em breve vai se esfiapar. Ele implora para ver Jo, esta é toda a vida que lhe resta.
O terceiro está invisível. A imploração soa solitária ao redor dos destroços fumegantes. Mas o que o segundo implora, o primeiro, súbito, vê. É uma larga superfície de sangue que vai crescendo silenciosamente sob o caminhão, no branco vapor do nevoeiro.
*
Este é o sentido do lance de dados – três dados similares lançados simultaneamente: ao terceiro, ser reduzido a uma mancha que só avança pelo poder da morte. Ao segundo, a loucura e a infinitude, talvez mortais, dos sofrimentos físicos. Ao primeiro, para toda a vida, o dom envenenado do olhar.
::::: Tradução de Carlito Azevedo, publicada originalmente em Modo de Usar & Co. 2 (Rio de Janeiro: Berinjela, 2007) :::::
§
§
§
.
.
.