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Ronaldo Ferrito

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Ronaldo Ferrito é um poeta e ensaísta brasileiro, nascido no Rio de Janeiro em 1982. Publica com frequência em revistas eletrônicas e antologias no país. Autor d'A Via Excêntrica (Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2010) – já traduzido para o galego e publicado na Espanha pela editora Axóuxere em 2013, livro de ensaios literários com o qual ganhou a bolsa para escritores com obras em conclusão, da FBN, e coautor do livro de ensaios Convite a Pensar, a ser publicado neste ano pela editora Tempo Brasileiro. É membro fundador do coletivo artístico e editora Confraria do Vento e editor da Revista Confraria.

Apresentamos aqui uma série de poemas inéditos e os ensaios "Ficção" e "Literatura", de uma série de textos-verbete com número pré-determinado de palavras a serem usadas.

--- Ricardo Domeneck

§

TEXTOS DE RONALDO FERRITO


Saciedade – emdoisatos
AtoI

Aquele homem semeia para ser
entre as coisas,
como as coisas já são
entre si.

Hoje ele cheirou os dedos vermelhos
de amora.
Além de vermelha, sua pele é amarga.
Ainda no horto, ele dorme sobre o banquete da tarde:
amoras o saciam
dentro e fora do estômago,
elas exalam ronco e arroto.

Na sesta deste verão, na sombra da amoreira,
o homem sazona em sonho
um outono sem homens.

Nessesonhorealizouoseusonho:
Sonhaque nãoexiste.(coro)

AtoII

Aquelecentaurolançouseutridentecontraomar
eatravessouumpeixe,
pelaescamanegrasugouosangue
eatranquilidadedasondas.

Olhouocéu,saciadodemaresia,
esilvoucontraorasantedasgaivotas.
Cuspiuurrosemerdaaolongodapraia
pelasobrevivênciadospeixes.
Cegou-seaoforçaroolhonocontorno
daesfera de vidrodosol.
Eatemeu,urdindoumdiaela romper.
Nofimdatarde,amaré,
baixandosuaforça,cansouseutridente.

O cavalodeitouabarriga,
repousouentreaareiadaspatas
easalsugem dosbraços.
E se apeoudeseuventreinchado
numapedraondeesmagaralagostas,
descascadasacoiceeofensas.
Aodormir, resmunga,
estrebuchaobafopodredopeito,
chicoteiaorabonaorlaporreflexo.

Agoraambossonhamseusonho
ondenãoexistem nem homens nem centauros.(coro)

§

A caminho

Sua cabeça calva, de apenas pele,
espelho d'água para o sol da tarde,
está morena.
Roçando a nuca
há um ramo de aragem
que o acaricia fresco
na montaria de guerra.
Um cavalo experimentado,
comprado por seu pai por algumas fazendas
trazidas de França.
Panos coloridos, que foram entregues ao colo
de alguma donzela de sua cidade
para servirem também a outros
sonhos.
Cores, que são agora o assunto de um festim
em alguma casa nobre de Assis
e de três vagabundos ressacados
que a viram passar bem vestida
na esquina
onde suas urinas envelhecem há dias.
Antigos meninos, mendigos,
agora leprosos, que apavoram
e perseguem as jovens,
também falavam de outrem
colorido em cambraia.
Precisamente é ela e a aia,
enquanto correm de medo.
Assim imagina, balbucia e ri
o cavaleiro casto a caminho.

(A estrada é longa, sua ponta toca o céu)

Essa donzela é sua amiga.
Ele imagina
“Laura”, que sente saudades.
Lembra daquela noite, sozinhos.
Sorrisos.
“Este templo romano
tem mais de mil anos,
vamos dançar nas pedras
de sua escada branca,
e lembrança seremos
que as pedras não contam,
como os pensamentos
de jovens romanos
que aqui se sentaram
tem mais de mil anos.”
Não falava provençal e cantava
no francês lombardo
de sua mãe.
Uma quimera era o canto
naquela língua.
Uma sílaba francesa
por duas italianas
para lhe dar mais tom
e tirar-lhe o sentido.
“Belíssimo!
Onde aprendeste, Francesco?”
“Quero ser bardo, se não for cavaleiro.”

(A estrada é estranha, sua trança enrola o céu)

Seus olhos fitos nas mudanças das nuvens
entreolha o que lembra e o que finge esquecer
enquanto está a caminho.

§

Puro Espelho

É preciso confessar à vida
que não vivo mais
na vida. Apenas vivo
de miragens.

É preciso confessar à sombra
que inexisto e sou
de sombra. Apenas sombra
de engrenagens.

É preciso confessar a todos
que não durmo mais
no sono. Apenas finjo
nas viagens.

É preciso confessar a tudo
que não sei de um ser
no mundo. Apenas sendas
de pastagens.

É preciso confessar a Deus
que Lhe rezo incrédulo
de deus. Apenas creio
nas passagens.

É preciso confessar-me a mim
que engano tão mal
a ti. Apenas deixas
por vantagens.

É preciso confessar ao menos
ao espelho que sou
espelho. Apenas ele
sem imagens.

§

Anjo encorpado

Sou apenas a disputa entre pensar e ocupar um espaço.
Ao contar as possibilidades de sentar-me no ônibus, ou no metrô,
Não raro menciono sentar-me num banco e surripio-me a intenção
Sentando-me em outro,
Para só pensar como seria se tivesse sentado no banco anterior.

Ao andar numa calçada com canteiros,
Também desvio por querer de plantas,
Para não amassar a planta que em seguida imagino amassada;
E me assusto ao vê-la tesa e desamassada naquele momento real;
E duvido de que naquele momento real ela poderia ser outra,
isto é, poderia estar amassada.

Assim meu corpo sempre parece ocupar-se do espaço de seu espaço,
Só o espaço já devido, na paisagem devida.
Nenhum outro quarto, se está em um quarto;
Nenhuma outra estrada, se está em uma estrada.

Chego depois a duvidar de que poderia me sentar naquele banco que deixei vazio,
Ou mesmo de que poderia ter pisado naquela planta.
Duvido até de tê-los evitado realmente com os meus desvios.
Bem como duvido de ter evitado com esta minha vida uma outra vida (minha) possível.
Sinto que se não tivesse de levar o corpo, o pensamento seria cavalo solto como o tempo.

§

232

São Cristóvão. UERJ. 28 de setembro.
“Agora não cabe mais ninguém!”
Não é possível ver as pernas de onde a cabeça está.
Um braço negro de mulher no ombro. O mais perto do que posso
chamar de “meu”.
É possível se ver no vidro da janela.
Minhas pernas brancas. Suas pernas.
Minhas pernas negras. Suas pernas.
“Agora não dá mais ninguém!”
Dizem de novo.
Quem disse não fui eu. O pensamento, que ainda discerne.
Mas poderia ter sido.
Mangueira.
Os campeões estão sentados. Mas têm almas de camponeses.
Aos vencedores, a individualidade como prêmio.
Às vezes também um livro.
“Escute-me, Pável Ivánovitch. Eu lhe trouxe a liberdade, sob a condição de que deixe a cidade imediatamente.”
A sorte de ter a cabeça parada exatamente ali.
A ousadia de alguém ler Gógol
no subúrbio.
A ousadia de alguém ler, num ônibus
de subúrbio.
A sorte da ousadia de alguém ler Gógol num ônibus de subúrbio
e deixar que outro também o faça generosamente.
“Naturalmente, entre os culpados sofrerão também muitos inocentes.”
Não vire a página ainda. O pensamento, que discerne.
Ler.
Lins.
A sensação da última página.
Ver no outro a sensação da última página.
“É como homem russo, como irmão, ligado aos senhores pelos laços indissolúveis do sangue, que eu me dirijo agora a todos”
“Quem vai ficar no Lins, é aqui!”
“Fim da linha”. Fim da linha.
A coincidência de fins
e o vinho persistente
da última página
de um romance
russo.

A sorte.
E o efeito de andar com as próprias pernas:
a divagação: o pensamento que não discerne:
almas mortas”.

§

AUTO-CRÍTICO (poema em monodiálogo)

A- O que acaba com minha poesia é essa coisa de eu ser místico. E o fato de eu ser um péssimo místico quase me levou a crer que eu era um péssimo poeta. Mas infelizmente sou, ainda que péssimo, místico. Daí que, agora, quando escrevo, sempre escrevo o que não gosto. Só escrevo o que não gostaria de mostrar, o que não planejava ter escrito, isso que não aceito como “meu”. O que me deixa sem cara para mostrar para os amigos, para a família, é o que faço de melhor como poeta, que é não ser místico.

C- Agora mesmo já estou achando um nojo tudo isso. E, de fato, está um nojo! Não é possível que se tire proveito destas palavras! Que merda... Que merda... Se for assim a obra que deverá ficar como testemunho de mim neste mundo, melhor é não escrever nada...

A- Pois é, eis a demonstração de que estou sendo sincero ao dizer que sou místico e da minha real opinião sobre minha poesia, que não é mística. Ela é, em suma, a melhor merda que posso fazer, muito embora isso seja, evidentemente, uma opinião controvertida. Como místico, parece sempre haver uma música angélica no meu espírito, da qual as palavras devem dar conta; e se não dão conta, essa música me massacra, é como uma canção belíssima que de fato ouço, sem poder ouvir de fato. Ela é como uma praia, azulíssima, imensa, que levanta o surfista a 15 metros de altura e sentimos, na pele, o vento de descê-la e, da espinha ao cu, o medo da morte, quando não fazemos mais que assistir a esse ninja de prancha daqui da areia. Que gostoso é o camarão que vi comerem! Esse beijo na Scarlett Johansson que não dei, nem darei antes que ela seja completamente indesejável! Esses sonhos em que estou voando! Todos já sonhamos que voávamos. E acordamos, de fato, maravilhados com essa experiência de voar, mesmo sem a termos experimentado de fato. Eu pelo menos só voei de fato em sonhos, isto é, quando, de fato, não voei. É uma frustração comum... Isso é exatamente a poesia quando quero ser místico... Isto é, ela não acontece de fato. Aceitar o chão é uma merda para quem sonha, se diz. Pior é para quem ainda voa quando sonha.

C- Espreme, espreme e só vem bosta... Que ninguém me ouça... Que vergonha, que vergonha! Um esquizofrênico repete-se menos do que eu, e com conteúdos muito mais interessantes... Isso é, Isso é, Isto é... Credo! De fato, uma bosta... uma bosta de fato! Não à toa, falei em cu! Poesia?! Que Poesia? De fato... para que escrever esta merda?!

A- Então não escreverei mais.

C- Mas se é importante que eu deixe algo aqui para eu ir à frente, terei que escrever. Ainda que merda. Escrevo! Anda cabeça!

A- Então será merda para o porvir, não para eu reclamar.

C- Ah, sim, nestas condições pode ser que eu permita, mas avisarei dessa merda que escrevo a cada pincelada arrependida. Que arrependimento ter que escrever tanta asnice!

A- Não escrevo mais asnice então.

C- Mas só escrevo asnice, não sei mais nada.

A- Asno não sou!

C- Sou sim!

A- Não ouço, asno!

C- Como não, aí já está a minha primeira asnice?!

A- Asno!

C- Merda!

A- Asno de merda!

C- Então, agora, concordo comigo?!

A- Concordo comigo!

C- Então agora escrevo alguma coisa, sem medo! Que já concordo que é merda...

A- Então agora já não vale muito escrever. Mas devo dizer que noutro dia, como agora, me senti deus.

C- Estou de sacanagem, só posso! Que porra é essa?!

A- É a merda que eu queria, não?! Vou continuar, quer queira ou não. Pois agora já sinto o peso da carcaça do espírito vazio neste corpo não menos alheado que arrasto diariamente pelas ruas. Isso faz toda diferença. Por exemplo, ando há muito tempo sem medo de ser assaltado, e imagino que um ladrão, em seu dia inútil, diga-se com muita razão esse “inútil”, levar-me-ia o corpo e o espírito, e não teria levado nada. E eu não teria perdido nada. O coração aceleraria naquele corpo roubado, enquanto o ladrão agora o arrasta. Mas ele não aguentaria muito tempo sem passá-lo ainda a um terceiro, antes que eu pudesse perceber a distância em que agora se encontra. Talvez saltassem algumas semanas até me dar conta de que não ando mais. Certamente não andaria sem corpo. Mas não notaria isso pela falta do corpo, propriamente, senão pela longa ausência das ruas, onde não poderia mais flanar. Certamente elas são mais minhas que os olhos em mim, tão acidentais quanto o corpo em mim, ou eu mesmo em mim. Aí que digo que me sinto deus. Sem nada de próprio, e com muita coisa em volta, estou reduzido ao que Deus é. Deus não tem nada, não é nada, mas tem muita coisa em volta. “Reduzido” é a condição de Deus no mundo. Tiro o que me faz ser eu e temos um ser mínimo, sem eu, sem existência, mas muito presente em tudo. É Deus.

C- Pera aí, pera aí. Acho que encontrei algo, “sinto o peso da carcaça do espírito vazio”. Pode ser que se aproveite, juntando-se àquelas últimas linhas... Pode até ser.

A- O que?!

C- Realmente sou místico! É uma merda!

A- É verdade!

C- Resultado: alguma poesia! E muita existência!  

§

ENSAIOS


Ficção

A palavra ficção, de étimo fictio, tem a mesma raiz do verbo latino fingo(fingere), cujo sentido mais concreto era o de esculpir, fazer esculturas, modelar o barro. A partir de interpretações dadas a esse sentido concreto, formularam-se os de semântica mais abstrata (em geral em uso figurado), como formar; inventar; imaginar e fingir. A palavra “fingir”, como usamos em português, é um exemplo dessa herança interpretativa cuja conotação desgastou e emudeceu aquele sentido originário guardado na ação concreta do verbo. Estendendo um pouco mais essa investigação, constataremos que fictor(qui fingit) foi como os latinos nomearam o estatuário, o escultor, o artífice (mesmo de palavras), contudo nunca se referindo desse mesmo modo, originariamente, àquele que “finge” uma simulação (qui simulat). Discernimos, desde já, que a palavra em questão sofreu um desgaste, um esquecimento ao longo da tradição crítica, provocado por uma interpretação representativa do que enunciava o seu agir. A ficção, ao longo da história crítica, teve o princípio de seu agir entendido como uma oposição emulativa ao princípio da ação do próprio real, de modo que ficção e realidade se sustentariam em fundamentos de naturezas concorrentes, antitéticas. Se o real é a tese, a ficção é sua antítese e necessária negação lógica. Nesta perspectiva, a ficção é o negativo lógico do real. Como negação ao que é real, a ficção é interpretada como o que é i-rreal – de onde nos vem o sentido vulgar de “fingir”. Essa é uma concepção decisiva na trajetória da crítica literária, uma vez que a ficção, juntamente com tudo aquilo que ela compreendia e compreende (como os mitos, a poesia lírica e épica, a tragédia, e toda posterior “literatura”), passou a ser vista como um discurso falseador e ao mesmo tempo miméticoda realidade – uma realidade entendida e fundamentada pelos critérios da razão. Devemos notar que a teoria da literatura atualmente, ao reconhecer o equívoco de tratamento investido nesta oposição, tenta repará-lo a partir de uma generalização do ficcional. Isto é, ainda nesta tradição representativa, a teoria propõe que tudo na existência deva ser recebido e interpretado como ficção. Essa crítica busca, nesta totalização, a isenção de ter de enfrentar as questões do real sob o pretexto do ficcional, uma ficção agora calcada na subjetividade, que se coloca ainda acima da suposta razão que alicerça a realidade e, portanto, mais decisiva para a crítica que os próprios critérios do real. Substituem uma realidade racional pela realidade/razão subjetiva à qual pertenceria a ficção. Com isso, levantam um problema tão grave quanto o já colocado, pois perpetuam a dicotomia metafísica da tradição mimética, apenas trocando o lado da balança onde repousam suas interpretações e representações. Colaboram, porém, ainda mais para o esquecimento do agir originário do que é ficção.

Para entendermos o agir originário da ficção, é preciso buscarmos o sentido de fingereolvidado na palavra fingir e pressentirmos seu horizonte. Sobre esse agir originário nos fala indiretamente, mas com clareza, Higino, o escravo egípcio de César Augusto, que viveu até o ano 10 d.C. No mito de Cura, ele narra a criação do homem pelo “fingere”. Ele diz: “Certa vez, atravessando um rio,  Cuidado (Cura) viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a fingir/ficcionar (fingere). Enquanto deliberava sobre o que criara, interveio Júpiter [Zeus]”... A partir do “fingir”, Curacria, com auxílio e a presença dos deuses, o homem. A ação de Cura, portanto, não pode ser entendida meramente como a de modelar ou dar forma à terra argilosa, pois é realizada no empenho da criação. Por tal ação, que chamamos de originária, o homem surge como um ser criado na e pela realidade, partícipe da sua cosmogonia, de maneira que, neste sentido, a ficção se mostra como a realização do real, à qual o homem corresponde pela criação. Não há mais como pensar em dois princípios antitéticos do fazer que dividem real e i-rreal, pois ambos, real e ficção, se reúnem no princípio originário de um agir poético (poiésis), de uma ação criadora de mundo. A ficção é poética, pois inaugura e reinaugura a cada vez o mundo, que não se fundamenta na razão, nem se posiciona contrário, como irracionalidade ou subjetividade, mas se funda como sentido.

É por essa compreensão poética do “fingir” que devemos entender a ficção dos mitos, da poesia, enfim, da literatura e das artes. Assim, o poeta está no mundo que incessantemente se diz outro pelo dizer da linguagem. A linguagem “finge” mundos. Assim como em Higino, escutamos ainda o sentido originário dessa ação em Fernando Pessoa, em seu poema Autopsicografia, quando coloca de maneira imbricada a questão do mundo e da ficção, demonstrando o sentido originário de ambos: “O poeta é um fingidor./ Fingetão completamente/ Que chega a fingirque é dor/ A dor que deveras sente.” (...). Pelos primeiro e segundo versos, nos diz que, pela linguagem, o mundo se finge “completamente”, algo se revela de todo enquanto mundo. Pelos terceiro e quarto versos, o “fingir” não se nos deixaria entender como uma instância do falso, do contrário, o poeta não “chegaria a fingir” isso que se revela de todo – a dor. A dor é deveras ficta: sendo deveras sentida, foi deveras fingida, quando foi revelada de todo em mundo. E como dor revelada em mundo, permanece sendo uma “dor deveras” e não uma dor falseada. A dicotomia metafísica da lógica binária, da oposição de falso e verdadeiro, não se aplica, portanto, às revelações da ficção, como vemos já nesta primeira quadra do poema. Tampouco, tratar-se-ia no poema de um ato afirmativo de um sujeito, subjetivista, uma vez que se revela como mundo, revelando-se maior e velando-se como outro, para todos.

Esse velamento da alteridade, que rechaça qualquer subjetividade na ação originária da ficção, podemos constatar nos versos seguintes do mesmo poema: “E os que leem o que escreve,/ Na dor lida sentembem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só a que eles não têm.”. A revelação encerra a tarefa da ficção poética de “outrar-se”, pois, na dor revelada, ficta, sente-se a dor “que eles não têm”. Os que leem o que está escrito são tocados por uma outra dor, que se velou na revelação. Uma dor que permanece velada pela linguagem, cujo sentido é pressentido como outro, como aquele que não se pode ter, como algo que todos não têm, mas pressentem ao sentir. Neste vazio pressentido por esse “sentir bem” o que se ausenta, funda-se e nasce o agir originário da ficção. Nele se origina o criar e se guarda, para todos, o sentido do mundo criado. Sustenta-se neste nada poético, fértil como a terra argilosa de Cura, a verdadeda ficção.

§
Literatura

A experiência do que seja isto – a “literatura” – lança-nos em uma questão cuja nomeação, pelos latinos, dá origem etimológica ao vocábulo. Tal nomeação é “littera”, para qual a tradução dicionarizada seria “letra”, “signo”, “escrita”, ou mesmo “literatura”. A princípio, para nós, ela anuncia o mesmo que para os latinos: a “arte” da escrita, do signo (palavra), da letra, segundo o significado base do seu radical de origem. No entanto, após feita essa correspondência entre o latim e o português, em conformidade com qualquer dicionário, continuamos sem saber o que é, para os poetas latinos, “littera” e, portanto, a “palavra”, a “escrita”, ou mesmo a “literatura”, também para nós mesmos. Isso se dá porque a etimologia de qualquer palavra por si mesma não poderia dar resposta à questão que ela traz desde seu nascimento e que permanece, através do curso histórico, até hoje. Não nos valeria muito um levantamento diacrônico, tentando encontrar, através do curso histórico, uma experiência perdida nas metamorfoses dessa palavra, porque tal perda sequer aconteceu. Interessa-nos, mais do que a sua mera metamorfose acidental (a mudança de sua forma nesta ou naquela língua), a questão que ela nos põeatravés da sua experiência (metá), sempre presente, enquanto depõetodas as suas formas (morphé). Como nos coloca Manuel Antonio de Castro, “as palavras põemenquanto depõem” sentido. Essa é justamente uma das várias questões experienciadas no lógosgrego (que é “palavra”, “linguagem”, mas também “sentido”).

O que nos põe a literatura como questão e sentido não é, portanto, a mera expressão de uma língua ou de um tempo, mas a obra de um agir que acontece na e como linguagem, e que permaneceu como princípio no tempo. Esse agir se dá, poeticamente, pelo pôr e depor da palavra. É neste realizar-se da palavra que se dá a literatura. Como sabemos, no entanto, a crítica tradicional tratou a literatura como representação, a partir de uma certa interpretação da mímesisde Aristóteles. Na modernidade, a essa interpretação do termo grego, acrescentou-se a ideia de “expressão”; isto é, a literatura, além de servir para representar o real (contexto social, epocal, histórico), seria outrossim um meio de expressar de um sujeito, de expressar a subjetividade que se quer representada pelas palavras. Nessas duas possibilidades de representar da palavra, vemos um mesmo atavismo interpretativo: a perspectiva de que a literatura está a serviço de algo que ela mesma não é capaz de oferecer – nem de ser – realmente. Disso resulta uma experiência de compreensão da obra literária na qual ela não passa de uma alegoria (allos agoreuein) e, portanto, sempre um afastamento da “realidade” que pretende noticiar e figurar (concepção herdada, pela crítica, do platonismo). A palavra, com seu vigor originário de “pôr e depor” o real na realização da linguagem, não seria mais que uma expressão alegórica, que, como tal, mais nos afasta da realidade das coisas que ela – simplesmente – representa. Essa tradição crítica, durante muito tempo, vê na literatura a própria morte do real, pois não a admite enquanto verdade, ou seja, enquanto ação que é princípo originário e originante da própria realidade.

Não é a morte do real que a palavra anuncia, nem é o pôr e depor de sua revelação um mero representar, senão a sua vitalidade inaugural, seu permanente nascimento. Assim nos diz Emily Dickinson: “A word is dead/ When it is said,/ Some say.// I say it just/ Begins to live/ That day.”Traduzimos livremente: “Uma palavra é morta/ Quando é posta,/ Se diria.// Já digo que ela/ a vida começa/ Nesse dia.” Na segunda estrofe, encontramos o acontecer da palavra, seu nascimento e revelação. Encontramos a experiência inaugural que ela traz, na qual nada pode realizar-se antes de revelar-se; opondo-se a ideia de que a palavra é a morte do real que pretenderia representar. É neste sentido que “começa a vida”, no penúltimo verso, nos pode fazer compreender o telosda palavra e, portanto, da literatura. O que busca a literatura não é outra coisa senão destinar a palavra à vida, isto é, deixar que ela ecloda como realização do real, como desvelamento. Enquanto tal, a palavra não poderia se fundamentar em outra coisa que lhe desse sentido, ou fosse seu significado real. Por não poder ter outro ente como fundamento, ela se funda justamente no nada e do nada surge à vida. Antes da palavra jaz nada e, portanto, nada ela diz. Funda-se no nada antes de poder referir-se a outra coisa. Esse nada é o silêncio que nela fala. Do silêncio é possível a palavra, ela é sua doação, e somente a partir dele ela pode nascer enquanto literatura. Assim, podemos entender melhor a dinâmica de posição e deposição da palavra; pois se uma palavra eclode, e assim se revela, é para velar o silêncio. “Velar” não é suprimir, porque não é possível abafar o silêncio, ou superá-lo de vez por todas: ele é infinitude, isto é, a possibilidade de todo finito se dar, de se pronunciar. O que, porém, se quer pronunciar na palavra é o silencioso originário que a permite ser posta e deposta na experiência do sentido.

É silêncio o que a palavra quer pronunciar, quando se põe, mas é no depor-se do que se pôs que o ouvimos. O silêncio habita o entre das posições, pois não se pode sustentar enquanto pura deposição, pura ausência. Pela palavra nos é possível a escuta do que silencia enquanto sentido: a presença de uma ausência que não se pode dar cabalmente; pois isso seria também ausentar-se de todo. Esta é a experienciação do sentido na qual nos lança a palavra: uma presença que nunca é de todo presente e uma ausência que nunca é de todo ausente. Esta é a dobra do sentido que imbrica ausência e presença. A literatura quer desdobrar-se nessa dobra onde a palavra pode desvelar e velar sentido. A literatura nos impõe essa tarefa: eclodir o silêncio em palavras; ou, como disse Guimarães Rosa: “chocar” palavras. “E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado por horas, ou dias.” Chocar palavras nos exige a vigilância e a entrega a uma gestação, à escuta do logos. Assim continua a dizer Rosa: “Temos que aprender outra vez a dedicar muito tempo a um pensamento... Os livros nascem quando a pessoa pensa.” É preciso, pois, aprender a pensar. É no exercício do pensar onde as palavras se gestam enquanto sentido, mas nunca como representação. Pensamos escutandoo que se ausenta e silencia em tudo, o que, portanto, não éem tudo que é: o nadaem tudo, a impossibilidadepara todo representar. O pensar que não se verga à representação é o gestar das palavras – é o nosso empenho necessário ao acontecer da literatura.

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