Hoje, na Modo, poema inédito de Érico Nogueira, extraído de seu terceiro livro, Poesia bovina (São Paulo: É, 2014), que será lançado em São Paulo no próximo 22 de novembro.
Charcutaria
a Eugênio Benedito Nogueira
Cansei de escutar papo-aranha, ui ui,
versalhada frouxa de euzinhozinho,
calado e sem retrucar; de engolir
um cuzinho azedo, o teor do sovaco,
boceta espoleta e afins no café- 5
-com-leite; de ver que cujo, que coiso, que
curupira dita a dança, pisando no
meu pé e no teu: faz dodói?; vou falar
a verdade: carne pra encher linguiça
não falta, o difícil é o tempero, e o quanto 10
de cada e por que – o segredo, a arte
da charcutaria; a maturação; e
se o prato é chumbo, freguês, vai com calma.
“Onde chumbo?; amigo, é tudo linguiça,
cartucho que, em vez de pólvora, impacta 15
com porco empastado”. E alguma pimenta.
“Ê, migué; pois bom bom mesmo só fica
se a porca espana”. O senhor me desculpe,
mas... “Entulha, homem, é calor no talo”.
E é arte isso aqui, tudo bem?; fazer 20
arder é só parte da coisa. “Olha:
se cê saca um certo matinho, um lance,
não tô nem tchum, não importa, contanto
que a saliva estale, exploda a papila e
demore na boca um raio solar”. 25
Não sei se o embutido aqui pode tanto,
meu querido – ainda assim, se quiser
exp’rimentar o melhor desta casa,
é por nossa conta, é iguaria justa e
bem-feita, talvez, e não fica mal 30
na velha bandeja de um bom poeminha.
Sem meter na tripa a biscate esperta
chupando tudo do mole vovô
seu esposo; argh! pastor bastião
do macho costume a abrir outro rego 35
na Rego; a sensibilíssima páti,
defensora-mor de bagre e macaco e
galinha, três abortinhos nas costas
– sem meter edil, auditor, Brasília,
a fossa da Terra de Santa Cruz 40
(que extensa linguiça não dava): quem,
do da Prata ao alto Amazonas, sabe
triar o torto e o direito, e aproveita
quando chove e quando não, e não vive es-
-molando o do seu vizinho?; mendigo ou 45
nababo, ninguém envelhece contente
se não tem ideia assim do que quer,
e pasta, anfíbolo feito um centauro;
se não morde, “É ouro-de-tolo”, “É ouro”,
e clama ao tinhoso maneta “A mão, por 50
favor”; se não sente o que cargas d’água
e pra quem pedir, afinal, ao léu
do beleléu. “Vida longa: é só isso
o que peço, só, mais nada além disso”.
Mas quanto acidente vai te cruzar 55
o carro na longa estrada, bobinha
– um maracujá chupado no rosto,
escama em vez dessa pele de seda
e mais banha e pelo que a orangotanga ou a
gorila inda é pouco. Este moço é mais 60
bonito que aquele, um terceiro, mais
talentoso que ambos os dois: mas todo
velhote é em tudo igualzinho, avoado
e banguela e, caso não existisse
a miraculosa pílula azul 65
(quando ela dá conta), antes te dava
ũa lesão de esforço repetitivo,
mulher, que cê conseguia fazer
papagaio voar. E não só: aquela
canção do teu Schubert, o tal retrato 70
demais parecido contigo – lembra, o do
Ticiano? – é coisa que orelha velha
não ouve, e olho decrépito não en-
-xerga mais. Pior, porém, que esses males
do corpo é ser pego pelo alemão, 75
e não conhecer marido nem filhos,
ou, no caso dele, fiar a custódia
dos bens a alguma piranha qualquer,
e babar bonito na gola. Enfim,
a quanto velório a vovó não vai, 80
trocando o arco-íris no seu armário
pela noite escura?; com alguma sorte,
o do seu cacho e cunhados e irmãs,
quando não da filha e alguma sobrinha.
– E aqueles rabiscos do último Pablo, 85
e os versos de merda, Carlos, e agora?,
que vocês, ã, cometeram gagás?;
“Era Manhã de Setembro”, eu te ponho
algo acima, ah ponho, do Claro Enigma
todinho, por conta do teu valor pro- 90
-filático: “Não imitar”. Se vida
alongada, pois, é uma longa lista
de soco e chute na cara, e dinheiro
e poder e nome, tão desejáveis
aqui, lá no além são sombra, o que posso
querer, o que dura, então, quando em mim,
e depois no coração, na cabeça
de alguns?; na igreja, no quarto, ao ar livre,
vou pedir primeiro coragem na hora
da morte, e no trato com a gente má, 100
paciência; em seguida, jamais perder
a estribeira em poço sem fundo, e sempre
achar a cruz melhor paga que a prata;
e engolir num gole o fel que nos dão,
e, depois de arrotar, soltar um risinho; 105
em suma: viver como homem, não rato,
e, se algum latim ainda funciona,
mens sana in corpore sano – isso é tudo;
o que acaba com esta linguiçazinha
e fecha a cozinha, meu nego; tchau.
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sobre o autor
Érico Nogueira nasceu em Bragança Paulista, em 1979. Formado em Filosofia e doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, com a tese "Verdade, contenda e poesia nos Idílios de Teócrito, que inclui a tradução em verso de todos os idílios hexamétricos autênticos do autor grego. É professor de língua e literatura latinas na Universidade Federal de São Paulo. Publicou O Livro de Scardanelli (2008), Dois (2010) e Poesia bovina (2014).
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