João Bosco da Silvaé um poeta português, nascido em Bragança a 2 de maio de 1985. Aos 9 anos, a família mudou-se para a vila de Torre de Dona Chama, onde cursou o secundário. Desde então, passagens pelo Porto e Coimbra. Publicou os livros Os Poemas de Ninguém (2009), Disse-me António Montes (2010), Bater Palmas E Sete Palmos De Terra Nos Olhos (2011), Saber Esperar Pelo Vazio (2012) e Destilações (2014). Colaborou com as revistas Inútil e Enfermaria 6, e tem poemas na antologia Voo Rasante (2015), da editora Mariposa Azual, que traz poemas de autores brasileiros e portugueses. A mesma editora lançará este ano seu novo livro, Trepanação de Jerónimo Bosch (no prelo). João Bosco da Silva vive e trabalha em Turku, na Finlândia.
--- Ricardo Domeneck
§
(Nota do editor: João Bosco da Silva trabalha com o verso longo, sálmico, impossível de manter nesta página. Não me pareceu resolver o problema encher todos os poemas com colchetes. Adotei a solução de outras revistas que publicaram o autor português: simplesmente deixar os versos correr, mas adicionando um pequeno espaço para indicar a continuação do verso. O leitor leve o fato em consideração)
(Nota do editor: João Bosco da Silva trabalha com o verso longo, sálmico, impossível de manter nesta página. Não me pareceu resolver o problema encher todos os poemas com colchetes. Adotei a solução de outras revistas que publicaram o autor português: simplesmente deixar os versos correr, mas adicionando um pequeno espaço para indicar a continuação do verso. O leitor leve o fato em consideração)
POEMAS DE JOÃO BOSCO DA SILVA
A Macieira Dos Insones
Disseram-me que arrancaram a macieira porque secou, também
eu sequei e nunca ninguém
Me conseguiu arrancar as raízes, mesmo que tenha sido muitas
vezes estrangeiro em casa
E preferir a solidão do granito e o desolamento das ruínas dos
verões quando a cinza já
Assentou à força da chuva, o lameiro tem tão pouco do que trago,
parece mais pequeno
Apesar de terem derrubado a cerca que o dividia, enterraram um poço,
o cão já se tinha
Lá afogado, de certeza também a capacidade de ser feliz com um
bocado de pão caseiro
Com tulicreme que a tia preparou, a inocência como o amor, cega,
mas uma cegueira por
Ausência, a cegueira de quem tem as mãos vazias e está cheio de
sonhos, a cegueira
De quem confia na vida como na mãe e é para sempre e capaz de tudo
menos de traição,
Cega para a maldade, com os sentidos livres e limpos para receber a
felicidade, ou apenas
Estar e ser, ignorando que se é, aquela macieira em cuja sombra me
deitei e senti
A novidade da erva seca nas costas como a primeira vez em que li
Walt Whitman, frescura
Viva que mais tarde se transformou no cheiro a mijo cristalizado das
folhas amarelecidas
Pela experiência e o tempo, sentir o mesmo de forma inversa ao sentir
o aroma azedo
Da cerveja estragada no fundo das garrafas quase vazias e a companhia
pouco simpática
De outras barbas, eu quase, sentado a consumir-me em copos de
plástico, tremendo com as
Chamas das velas ao vento das saudades e uma quase hipocrisia por
falar sozinho com a
Memória de quem, espero, me dê o adiamento e a força inata, já que
nasci de pouco
E para quase nada, para acabar numa noite de luar, longe disto tido,
no lameiro
Daquela macieira onde me arrancaram, hoje tenho amigos poetas,
pouco me conheço,
E tenho dias em que quando acordo, demoro horas a encontrar-me
por entre os papéis
Manchados pela chuva e pelo carvão do sofrimento adiado pelo
medo de mais um
Momento inútil e perdido, para sempre, ao lado do lugar onde
esteve a macieira, para nunca
E até sempre, numa garrafa de vinho bordeaux, lá para os lados
de Django Reinhardt e dos tios
De França, porque tantas vezes o que procuras é apenas o
inesperado, como o sabor daqueles
Gauloises à beira do rio da aldeia, de madrugada, com os pés cheios
de vinho tinto e língua
Destravada, pronta para confissões lançadas para a fogueira
purificadora da felicidade.
§
Comparação Da Dimensão Do Espaço Depois Da Subtração Da História
“You can´t escape the past in Paris, and yet what´s so wonderful about it is that the past and presente intermingle so intangibly that it doesn´t seem to burden.”
Allen Ginsberg
Tens razão quando dizes que Montmartre é como a aldeia
do meu pai, mas a aldeia do meu pai
Sempre comeu e bebeu o que o suor e a terra lhe deu,
lá se plantava e lá se colhia, em Montmatre
Há uma vinha cujo vinho quase ninguém prova, mas tanta
gente conhece e viu, não me parece
Que comam as heras que crescem na paredes das casinhas,
nem vi galinhas a correr pelas ruas
Ou debaixo das mesas dos cafés, vi sim uma ou outra pomba,
aves citadinas essas, que raras vezes
Vi na aldeia do meu pai a pedinchar um pedaço de pão, na aldeia
do meu pai não há pedintes
De nenhum tipo, só portas abertas e a partilha do pouco que se tem,
mas Montmartre respira
Ainda, mesmo que o sangue seja vinho daqui ou dali, as casas
brilham e no seu tamanho são
Maiores do que o desprezo dos descendentes que herdaram telhas
que apodrecem e cedem
Tudo, colapsando todas as noites à lareira, todos os gemidos nos
partos em colchões de palha,
Todos os gatos que entravam por buracos pequenos em baixo das
portas, como o frio
Entrava nos ossos da gente, Montmatre tem ainda luz, tem olhos,
tem gente, gente que
Procura nas ruas a presença de quem já lá não está, mas tens razão,
as ruas são tão largas
Num lugar como noutro, apesar da macadamização ser bem recente
num lado e estar
Já bem polida noutro, falta gente e uma cidade inteira aos pés para
se poder comparar,
Mas mesmo assim, não sei onde me sinto mais em casa, se onde
as memórias são minhas,
Se onde as memórias são as que queria que fossem minhas, noutros
tempos, as mesmas pedras.
§
Fuck You All – Happy New Year From Frances Farmer
como te percebo Sebastião,
Deixa lá, ao menos estiveste bem para ti, já foste
demasiadas vezes
Nos outros e agora, nem um contágio de ti neles,
deixa-te morrer para o mundo,
Mesmo enquanto te olhas no espelho, não te merece,
mantem-te nesse teu
Universo, dorme muito, sonha mais, o resto é ruído
e fome e medo e carne,
Não dês mais oportunidades a comparações, és irrepetível,
até o padrão
Estrela do teu cu é único, querem é foder-te com os
olhos e fingir-te invisível,
Não te dês mais, escreve sobre os tempos em que eras
capaz de te interessar
Pela podridão e davas dentadas em maçãs demasiado
maduras para a época,
Deixa lá, a cama é o teu trono, os teus dedos a tua
memória mais fiel,
O copo o teu melhor amigo, mesmo que te mate
aos poucos,
Também a vida sem copo te mata aos poucos, sonha,
acorda tarde se puderes,
Pode ser que lá encontres os teus amigos, te encontres
a ti, a caminho da escola,
E possas roubar umas uvas ou uma sombra ao lado de
um silvado,
Morreste há tanto tempo que nem deste conta que agora,
Estás só a apodrecer, nada em ti resta além da saudade
e Agosto ainda tarda
E não é mais o mesmo, podias muito bem ser os ossos
do teu cão morto,
O caixão do familiar que nunca encontraram, mas ainda
incomodas,
Ainda invertes o copo cheio e tornas a página vazia numa
circunvolução
Enquanto a consomes no esquecimento, em cuecas, porque
nada mais.
§
Férias De Natal Revisitadas
À espera estava a geada nas couves e nos ramos descarnados
do marmeleiro,
O cão escondido do nevoeiro dentro de um bidão, hoje o bidão vazio,
Sem companhia no dia da festa à hora dos foguetes da tarde,
À espera a lareira, com a dança hipnótica das chamas, na sala
A um canto o chão coberto de musgo e palha e figuras de barro
Pintadas à pressa com o rigor devoto a um deus dependente do tempo,
Ao lado os embrulhos do costume, cada vez mais transparentes,
No quarto transferia-se a roupa do saco para o guarda-fatos,
Agora, abre-se a mala, tiram-se os livros para acompanhar
A lareira e deixa-se aberta, chegar começou a confundir-se com partir,
Agora nem se chega a tempo de ouvir a música, soldada
Algures numa fábrica escura da China, das luzinhas de Natal,
Que se guardavam sempre para o próximo e nunca aguentavam
A sua inutilidade no resto do ano, à espera estavam os serões
De roupão, os dias inteiros de pijama, o leite com chocolate
Quando se toleravam infantilidades mamíferas, à espera
Estava o ainda ter o futuro pela frente, o ainda não é para já,
Ainda se acreditava no nunca mais e no potencial de uma caixa vazia,
Escreviam-se poemas iluminados pelo crepúsculo incendiado
Na mesa da cozinha em folhas A4 roubadas da velha impressora,
Antes da mãe fazer o jantar e ainda havia aquela sensação
De ser algo especial, aquilo, aquela folha que era nada
Tornada poema, aquela emoção que era muda, um grito,
O cheiro das rabanadas salpicadas com canela e Enya do rádio
Que foi a prenda da irmã uns natais atrás, os caixotes do lixo
Temendo a avalanche que lhes cairá no dia de Natal,
O avô que não se julgava ser o último e afinal, os lábios roxos
Do vinho nunca mais se mostrarão contentes por estarmos
Todos juntos, nunca mais estaremos todos juntos, tudo se rasga
Como um embrulho, para se revelar o amanhã, e a surpresa
Perde-se para sempre e é impossível voltar a embrulhar o amanhã
E torná-lo no lugar onde tudo é possível, o gato deixa de estar
vivo e morto,
E se está morto nunca poderá estar vivo, nunca mais, na vida ao menos
Sempre se têm duas hipóteses, mesmo que não hajam certezas,
Antes de se entrar, a lareira estará sempre acesa, o gato estará a
fazer de cão,
E o jantar não tardará, por isso tenho que acabar esta geada nas couves
E nos ramos do marmeleiro, lá longe, onde me mora o Natal.
§
Após Cinzano E Evangelhos Segundo Anos 90
Os dedos depois cheiram a azedo e o copo de vinho tinto
com as luzes apagadas
Não se vê até se sentires as meias molhadas se te descalçaste
antes de entrar,
Se não, é porque não entraste em casa de botas de elástico
ou no norte,
O resto é apenas fascínio ou tendência pelo relativamente
mórbido,
Já morres-te, perguntar-te-ão, e o teu tamanho dependerá do
tamanho do silêncio,
Em vida, houve gente que teve o trabalho de me transcrever,
não foi mau,
A maioria morre sem que um pensamento seja transferido seja
da forma que for,
Mas há os génios que são inventados por necessidade ou
pura propaganda,
A Rússia está a acordar, outra vez e é Inverno, o Napoleão
e o amigo não-alemão
Ainda se lembram, só os pequeninos cheios de tomates
aguentaram a pastilha
Pesada da massa, no fundo todos procuram apenas uma rima,
ou uma cona,
Que não lhes lembre da mãe, precisam de encontrar uma
vagina mutagénica,
Bandeira branca, um dia, sentirás deus nas cuecas e o
cemitério será
Tão excitante quanto um caixote do lixo ou um saco de
estrume,
A tua própria morte será demasiado pesada com o peso
do infinitamente
Não tu, depois dos vinte e mais que sete e oito, mais uma
punheta será
Uma vitória barata, menos uma nota roxa também não
será assim tão mau
Se embalares o míssil em direção à erudição transcendental
da foda
Sem idioma comum, percebes, não, não leias mais, santa
purificadora
Das tuas frustrações ao lado do autoclismo, engole então
os sofismas,
Admira as eulógias de quem sempre conheceu paralelos,
continua
A evitar o poder de quem caminhou no sangue e corpo
do golem,
Tu que por bruxa, sempre te quiseste freira ou uma merda
mórbida qualquer.
A estas horas não acordes, continua a fumar e a escrever
para a admiração
Dos hereges, convencidos do seu lugar ao lado de lado
nenhum na verdade.
A Macieira Dos Insones
Disseram-me que arrancaram a macieira porque secou, também
eu sequei e nunca ninguém
Me conseguiu arrancar as raízes, mesmo que tenha sido muitas
vezes estrangeiro em casa
E preferir a solidão do granito e o desolamento das ruínas dos
verões quando a cinza já
Assentou à força da chuva, o lameiro tem tão pouco do que trago,
parece mais pequeno
Apesar de terem derrubado a cerca que o dividia, enterraram um poço,
o cão já se tinha
Lá afogado, de certeza também a capacidade de ser feliz com um
bocado de pão caseiro
Com tulicreme que a tia preparou, a inocência como o amor, cega,
mas uma cegueira por
Ausência, a cegueira de quem tem as mãos vazias e está cheio de
sonhos, a cegueira
De quem confia na vida como na mãe e é para sempre e capaz de tudo
menos de traição,
Cega para a maldade, com os sentidos livres e limpos para receber a
felicidade, ou apenas
Estar e ser, ignorando que se é, aquela macieira em cuja sombra me
deitei e senti
A novidade da erva seca nas costas como a primeira vez em que li
Walt Whitman, frescura
Viva que mais tarde se transformou no cheiro a mijo cristalizado das
folhas amarelecidas
Pela experiência e o tempo, sentir o mesmo de forma inversa ao sentir
o aroma azedo
Da cerveja estragada no fundo das garrafas quase vazias e a companhia
pouco simpática
De outras barbas, eu quase, sentado a consumir-me em copos de
plástico, tremendo com as
Chamas das velas ao vento das saudades e uma quase hipocrisia por
falar sozinho com a
Memória de quem, espero, me dê o adiamento e a força inata, já que
nasci de pouco
E para quase nada, para acabar numa noite de luar, longe disto tido,
no lameiro
Daquela macieira onde me arrancaram, hoje tenho amigos poetas,
pouco me conheço,
E tenho dias em que quando acordo, demoro horas a encontrar-me
por entre os papéis
Manchados pela chuva e pelo carvão do sofrimento adiado pelo
medo de mais um
Momento inútil e perdido, para sempre, ao lado do lugar onde
esteve a macieira, para nunca
E até sempre, numa garrafa de vinho bordeaux, lá para os lados
de Django Reinhardt e dos tios
De França, porque tantas vezes o que procuras é apenas o
inesperado, como o sabor daqueles
Gauloises à beira do rio da aldeia, de madrugada, com os pés cheios
de vinho tinto e língua
Destravada, pronta para confissões lançadas para a fogueira
purificadora da felicidade.
§
Comparação Da Dimensão Do Espaço Depois Da Subtração Da História
“You can´t escape the past in Paris, and yet what´s so wonderful about it is that the past and presente intermingle so intangibly that it doesn´t seem to burden.”
Allen Ginsberg
Tens razão quando dizes que Montmartre é como a aldeia
do meu pai, mas a aldeia do meu pai
Sempre comeu e bebeu o que o suor e a terra lhe deu,
lá se plantava e lá se colhia, em Montmatre
Há uma vinha cujo vinho quase ninguém prova, mas tanta
gente conhece e viu, não me parece
Que comam as heras que crescem na paredes das casinhas,
nem vi galinhas a correr pelas ruas
Ou debaixo das mesas dos cafés, vi sim uma ou outra pomba,
aves citadinas essas, que raras vezes
Vi na aldeia do meu pai a pedinchar um pedaço de pão, na aldeia
do meu pai não há pedintes
De nenhum tipo, só portas abertas e a partilha do pouco que se tem,
mas Montmartre respira
Ainda, mesmo que o sangue seja vinho daqui ou dali, as casas
brilham e no seu tamanho são
Maiores do que o desprezo dos descendentes que herdaram telhas
que apodrecem e cedem
Tudo, colapsando todas as noites à lareira, todos os gemidos nos
partos em colchões de palha,
Todos os gatos que entravam por buracos pequenos em baixo das
portas, como o frio
Entrava nos ossos da gente, Montmatre tem ainda luz, tem olhos,
tem gente, gente que
Procura nas ruas a presença de quem já lá não está, mas tens razão,
as ruas são tão largas
Num lugar como noutro, apesar da macadamização ser bem recente
num lado e estar
Já bem polida noutro, falta gente e uma cidade inteira aos pés para
se poder comparar,
Mas mesmo assim, não sei onde me sinto mais em casa, se onde
as memórias são minhas,
Se onde as memórias são as que queria que fossem minhas, noutros
tempos, as mesmas pedras.
§
Fuck You All – Happy New Year From Frances Farmer
como te percebo Sebastião,
Deixa lá, ao menos estiveste bem para ti, já foste
demasiadas vezes
Nos outros e agora, nem um contágio de ti neles,
deixa-te morrer para o mundo,
Mesmo enquanto te olhas no espelho, não te merece,
mantem-te nesse teu
Universo, dorme muito, sonha mais, o resto é ruído
e fome e medo e carne,
Não dês mais oportunidades a comparações, és irrepetível,
até o padrão
Estrela do teu cu é único, querem é foder-te com os
olhos e fingir-te invisível,
Não te dês mais, escreve sobre os tempos em que eras
capaz de te interessar
Pela podridão e davas dentadas em maçãs demasiado
maduras para a época,
Deixa lá, a cama é o teu trono, os teus dedos a tua
memória mais fiel,
O copo o teu melhor amigo, mesmo que te mate
aos poucos,
Também a vida sem copo te mata aos poucos, sonha,
acorda tarde se puderes,
Pode ser que lá encontres os teus amigos, te encontres
a ti, a caminho da escola,
E possas roubar umas uvas ou uma sombra ao lado de
um silvado,
Morreste há tanto tempo que nem deste conta que agora,
Estás só a apodrecer, nada em ti resta além da saudade
e Agosto ainda tarda
E não é mais o mesmo, podias muito bem ser os ossos
do teu cão morto,
O caixão do familiar que nunca encontraram, mas ainda
incomodas,
Ainda invertes o copo cheio e tornas a página vazia numa
circunvolução
Enquanto a consomes no esquecimento, em cuecas, porque
nada mais.
§
Férias De Natal Revisitadas
À espera estava a geada nas couves e nos ramos descarnados
do marmeleiro,
O cão escondido do nevoeiro dentro de um bidão, hoje o bidão vazio,
Sem companhia no dia da festa à hora dos foguetes da tarde,
À espera a lareira, com a dança hipnótica das chamas, na sala
A um canto o chão coberto de musgo e palha e figuras de barro
Pintadas à pressa com o rigor devoto a um deus dependente do tempo,
Ao lado os embrulhos do costume, cada vez mais transparentes,
No quarto transferia-se a roupa do saco para o guarda-fatos,
Agora, abre-se a mala, tiram-se os livros para acompanhar
A lareira e deixa-se aberta, chegar começou a confundir-se com partir,
Agora nem se chega a tempo de ouvir a música, soldada
Algures numa fábrica escura da China, das luzinhas de Natal,
Que se guardavam sempre para o próximo e nunca aguentavam
A sua inutilidade no resto do ano, à espera estavam os serões
De roupão, os dias inteiros de pijama, o leite com chocolate
Quando se toleravam infantilidades mamíferas, à espera
Estava o ainda ter o futuro pela frente, o ainda não é para já,
Ainda se acreditava no nunca mais e no potencial de uma caixa vazia,
Escreviam-se poemas iluminados pelo crepúsculo incendiado
Na mesa da cozinha em folhas A4 roubadas da velha impressora,
Antes da mãe fazer o jantar e ainda havia aquela sensação
De ser algo especial, aquilo, aquela folha que era nada
Tornada poema, aquela emoção que era muda, um grito,
O cheiro das rabanadas salpicadas com canela e Enya do rádio
Que foi a prenda da irmã uns natais atrás, os caixotes do lixo
Temendo a avalanche que lhes cairá no dia de Natal,
O avô que não se julgava ser o último e afinal, os lábios roxos
Do vinho nunca mais se mostrarão contentes por estarmos
Todos juntos, nunca mais estaremos todos juntos, tudo se rasga
Como um embrulho, para se revelar o amanhã, e a surpresa
Perde-se para sempre e é impossível voltar a embrulhar o amanhã
E torná-lo no lugar onde tudo é possível, o gato deixa de estar
vivo e morto,
E se está morto nunca poderá estar vivo, nunca mais, na vida ao menos
Sempre se têm duas hipóteses, mesmo que não hajam certezas,
Antes de se entrar, a lareira estará sempre acesa, o gato estará a
fazer de cão,
E o jantar não tardará, por isso tenho que acabar esta geada nas couves
E nos ramos do marmeleiro, lá longe, onde me mora o Natal.
§
Após Cinzano E Evangelhos Segundo Anos 90
Os dedos depois cheiram a azedo e o copo de vinho tinto
com as luzes apagadas
Não se vê até se sentires as meias molhadas se te descalçaste
antes de entrar,
Se não, é porque não entraste em casa de botas de elástico
ou no norte,
O resto é apenas fascínio ou tendência pelo relativamente
mórbido,
Já morres-te, perguntar-te-ão, e o teu tamanho dependerá do
tamanho do silêncio,
Em vida, houve gente que teve o trabalho de me transcrever,
não foi mau,
A maioria morre sem que um pensamento seja transferido seja
da forma que for,
Mas há os génios que são inventados por necessidade ou
pura propaganda,
A Rússia está a acordar, outra vez e é Inverno, o Napoleão
e o amigo não-alemão
Ainda se lembram, só os pequeninos cheios de tomates
aguentaram a pastilha
Pesada da massa, no fundo todos procuram apenas uma rima,
ou uma cona,
Que não lhes lembre da mãe, precisam de encontrar uma
vagina mutagénica,
Bandeira branca, um dia, sentirás deus nas cuecas e o
cemitério será
Tão excitante quanto um caixote do lixo ou um saco de
estrume,
A tua própria morte será demasiado pesada com o peso
do infinitamente
Não tu, depois dos vinte e mais que sete e oito, mais uma
punheta será
Uma vitória barata, menos uma nota roxa também não
será assim tão mau
Se embalares o míssil em direção à erudição transcendental
da foda
Sem idioma comum, percebes, não, não leias mais, santa
purificadora
Das tuas frustrações ao lado do autoclismo, engole então
os sofismas,
Admira as eulógias de quem sempre conheceu paralelos,
continua
A evitar o poder de quem caminhou no sangue e corpo
do golem,
Tu que por bruxa, sempre te quiseste freira ou uma merda
mórbida qualquer.
A estas horas não acordes, continua a fumar e a escrever
para a admiração
Dos hereges, convencidos do seu lugar ao lado de lado
nenhum na verdade.
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