Margarida Vale de Gatoé uma poeta, contista e tradutora portuguesa, nascida em Vendas Novas, em 1973. Traduziu para o português, entre outros, Lewis Carroll, Christina Rossetti, Oscar Wilde, W. B. Yeats, Herman Melville, Henry James, George Sand, René Char, Henri Michaux e Nathalie Sarraute. Lançou até o momento o volume de poemas Mulher ao mar retorna (Lisboa: Mariposa Azual, 2013). Margarida Vale de Gato vive e trabalha em Lisboa.
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POEMAS DE MARGARIDA VALE DE GATO
Cat people
Curiosa a tribo que formamos, sós
que somos sempre e à noite pardos,
fuzis os olhos, garras como dardos,
mostrando o nosso assanho mais feroz:
quando me ataca o cio eu toda ardo,
e pelos becos faço eco, a voz
esforço, estico e, como outras de nós,
de susto dobro e fico um leopardo
ou ando nas piscinas a rondar –
e perco o pé com ganas sufocantes
de regressar ao sítio que deixei
julgando ser mais fundo do que antes.
A isto assiste a morte, sem contar
as vidas que levei ou já gastei.
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Aniversário
Há tanto tempo eu
trazia um vestido curto nós
subíamos as escadas eu
à frente sem reparar deixava
as pernas ao desamparo do teu
agrado, tínhamos bebido ao meu
futuro e era uma fuga o teu
presente um disco que me deste
reluzia em semi-círculo e a nós
excitava seriamente escapar eu
fazia vinte anos tu
relanceavas-me as pernas eu
abandonava a adolescência
nem olhara para trás tu
miravas-me as pernas de trás. Nós
subíamos ao telhado eu
trazia um vestido curto nós
estávamos tristes creio tu
fingias-te um sátiro e nós
subíamos ao alto desarmados.
O tambor do sol batia
nos olhos que a luz e o álcool e a luz
e o álcool diminuíam
e os brancos raiavam o solstício
incandescentes eu
fazia vinte anos tu
tinhas-me dado uma música eu
rodava-a na mão e o sol
girava no gume do metal eu
de vestido curto descrevia
um círculo de desejo nós
estávamos tristes creio nós
tínhamos subido e a crista
das telhas beliscava na pele
petéquias de luz e tu
ao disco do sol dançavas e eu
de olhos cegos espiava fazia calor nós
tínhamos bebido e tínhamos calor eu
já tinha vinte anos nós
éramos o grande amor
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A imagem romântica
Há outras coisas, Horácio,
e a tua filosofia é barata,
na verdade não custa fixar
as coisas ideais à distância:
terás vista panorâmica
mas sempre a visão é polémica.
Gostava que alguém me mostrasse,
mas não terei nunca garantia
de que envelhecer faça sentido.
As pessoas prostram-se, queremos que nos digam
porquê não haver luz nos seus rostos. Crestam
os cravos, antes rubros. Não há modo
de saber se as monarcas
têm memórias arenosas de lagarta.
Tudo sucede dentro de estanques
casulos, a seda é densa,
não se faz ideia
se isto acaba. Estrelas foscas
correm, pessoas morrem, a vida
é breve, impávido o
real se esquiva a designar.
Comparar é colidir: o verbo
talvez nos leve
a mais nenhum sinal.
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