uma translúcida holotúria
O tradutor Guilherme Gontijo Flores já teve algumas de suas traduções de Horácio publicadas aqui, com seu artigo "Odes de Horácio: tirar a poeira". Pedimos esta tradução a ele por se tratar do poema do qual Wislawa Szymborska retira sua citação para o poema "Autotomia", o da holotúria, um dos favoritos aqui da casa. No poema da polonesa, ela traz aquelas três palavras leves como plumas, "non omnis moriar", de onde surge o mantra "Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida". Nestes dias, voltamos ao mantra, tanto de Horácio quanto de Szymborska. Postamos aqui os dois poemas e urgimos os vivos a não morrerem em demasia.
NÃO MORRER DE TODO
Monumento imortal mais do que o bronze ergui
grãs pirâmides sem pares superará
que nem chuva mordaz e Áquilo em desrazão
poderão derruir nem os decênios
numa série sem fim — fuga dos séculos.
Todo não morrerei: parte maior de mim
evitou Libitina, eu crescerei além
sempre novo em louvor se ao Capitólio
o pontífice com tácitas virgens vem.
Terei fama onde rui ríspido o Áufido
e onde Dauno reinou rústicos áridos
sem ter água nas mãos, fraco eu firmei razão
por primeiro trazer cantos eólicos
sobre itálicos tons. Minha soberba tu
aceita — eu mereci; cinge-me o délfico
louro às têmporas ó doce Melpômene.
(tradução de Guilherme Gontijo Flores)
:
Carmen 3.30
Quinto Horácio Flaco
Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non aquilo impotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum.
non omnis moriar multaque pars mei
vitabit Libitinam: usque ego postera
crescam laude recens, dum Capitolium
scandet cum tacita virgine pontifex:
dicar, qua violens obstrepit Aufidus
et qua pauper aquae Daunus agrestium
regnavit populorum, ex humili potens
princeps Aeolium carmen ad Italos
deduxisse modos. sume superbiam
quaesitam meritis et mihi Delphica
lauro cinge volens, Melpomene, comam.
§
Autotomia
Wisława Szymborska
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.
(tradução coletiva, publicado em Inimigo Rumor 10)
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