Peça de Mestre Didi
Acrobata da dor
Cruz e Sousa
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...
Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço. . .
E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.
§
Conheço vocês pelo cheiro
Ricardo Aleixo
Conheço vocês
pelo cheiro,
pelas roupas,
pelos carros,
pelos aneis e,
é claro,
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro
que algum
ancestral remoto
lhes deixou
como herança.
Conheço vocês
pelo cheiro.
%
Conheço vocês
pelo cheiro
e pelos cifrões
que adornam
esses olhos que
mal piscam
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro
e a tudo que
nega a vida:
o hospício, a
cela, a fronteira.
Conheço vocês
pelo cheiro.
%
Conheço vocês
pelo cheiro
de peste e horror
que espalham
por onde andam
– conheço-os
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro,
deus é um
pai tão sacana
que cobra por
seus milagres.
Conheço vocês
pelo cheiro.
%
Conheço vocês
pelo cheiro
mal disfarçado
de enxofre
que gruda em
tudo que tocam
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro,
é com ódio
que replicam
ao riso, ao gozo,
à poesia.
Conheço vocês
pelo cheiro.
%
Conheço vocês
pelo cheiro.
Cheiro um e
cheirei todos
vocês que só
sobrevivem
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro,
fazem até das
próprias filhas
moeda forte,
ouro puro.
Conheço vocês
pelo cheiro.
%
Conheço vocês
pelo cheiro
de cadáver
putrefato que,
no entanto,
ainda caminha
por seu amor
ao dinheiro.
§
§
Fumaça
Miriam Alves
corro, louca, voo, suo
a fumaça sou eu
Estou a toque de nada
vivo, ando
como a comida envenenada
e o comido sou eu
Estou a toque de selva
os ferros torcidos, sacudidos
dentro de uma marmita
e a marmita sou eu
Nego, mas vivo dizendo
Sim
a tudo que me dói na cabeça
e o doido sou eu
Paro, mas estou sempre correndo
doem as pernas, os pés
e este corpo é o meu
A manhã me encontra acordada
como a noite deixou
e o insone sou eu
Indago, mas não estou escutando
a pergunta anda solta
e ninguém explicou
que a resposta sou eu
§
Atenção Veneno
Arthur Bispo do Rosário
§
O,
(Edimilson de Almeida Pereira)
homem da charola, arremete a seiva contra si, não espera recuperem o seu nome. para o charco reserva suas rendas. está pronto a dialogar com ele. não pensa em soluços à beira do catre. escapou, tal como no parto, ileso – um roçar se casa a outro, enovela-se em carapaça. o homem se quer órfão, livres a boca e o sexo. ele se quer, contra os acidentes de caça. não há bosque que o desoriente nem sal que o batize. escava a dizer que os despojos não são os mortos.
a morte não monta todos os porcos
ao mesmo tempo
os q. arrastam
capivara, os q. escapam
porco do mato
os q. falam: queixadas
a morte não monta todos os corpos
ao mesmo tempo
o corpo tem suas ausências, a maior dá-se pelo excesso. o corpo sobre o corpo, em latitudes sem número, de tão intenso é um furor que se teme por se desejar. sua garras suas guelras ferem a rota que outro corpo recusará, e no entanto busca. o, homem da charola, insiste que os restos não pertencem aos mortos. porém, retesado o arco, o alvo responde: a roupa que vestiu o corpo se despede, a linhagem se rompe apesar das benfeitorias. o cerzido não foi senão doença a partir das sementes.
§
§
Faça sol ou faça tempestade
Adão Ventura
faça sol ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.
faça sol ou faça tempestade
meu corpo é cercado
por estes muros altos,
— currais
onde ainda se coagula
o sangue dos escravos.
faça sol
ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.
§
§
Meia lágrima
Conceição Evaristo
Não,
a água não me escorre
entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.
Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro.
Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.
Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silêncio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.
§
Òrișà didê
Lívia Natália
Arranca as percatas de seu cavalo
e nele galopa com os pés no chão.
Solta um grito que se espeta no alto
e,
repetido,
saúda a terra com a majestade de sua presença.
Dança sem a calma das horas,
pois seus braços se erguem para fora do tempo.
Caminha com sua carne de mito
e, quando vai, não parte.
Apenas se banha em seu próprio mistério.
§
§
§
[ao través]
André Capilé
ao través da tradição
das mariinhas as marinhas
de mais uma vez
um arranque de toada a dixisa
tecida fora dos dedos
a divisa de uma penélope mendiga
tocada de sua toca à laia dos cães
e não há dúvida quê
entre sirenas a sombra kianda
extrapole a carne escamada
na espuma de kaiáia
a gambiarra do inútil dizer
que se dá melhor fora aos ouvidos
muimbus da um banda um
rito de muitos muitos à possessão
nós mútuos na música
de máxime muxima
kuxika tundundun
escuma de um carnaval antes da avenida
nessa rua que arrima as passagens
todas as passagens de que fomos
fome & travessia
de um mar que já dito reedite uma sempre
nova maresia da ginga de um kimbanda
que se mandinga muléke língua de dança
a dançar para ficar cá estamos
§
Marcelo Ariel
A luz era
um filtro de silêncios,
pousada em nosso rosto
como a insônia de um pássaro
desde o início
Ela foi a claridade profunda
da brisa interior
imóvel como eram
na infância
as fugas
onde o tempo
imitava a eternidade
e evocava
o poder da brisa oceânica
que através da fragilidade
também ama com
cabelos de chama,
outra luz
que na porta de sonho
respira uma chave
de sombra.
§
O saudoso guardador das reses
Oswaldo de Camargo
Bem sei que o moço corpo nesta sala
É parte de objetos: mesa, vaso,
cadeiras e a estante de verniz.
E a cidade cerca o véo fundo
do pensamento livre destes ciscos.
Às vezes largo a pressa e o olho baço
percorre a extensão da pele enxuta,
e julgo ali rever o amado sítio
hoje pousado sobre relembranças...
Nas tardes, se vou só, prossigo a luta
para o retorno àquele tempo,
idade inusitada em terras desse nunca
-mais. Contudo em minha pele tento criar,
há muito tempo, um boi.
Bem sei que o moço corpo nesta sala
É parte de objetos: mesa, vaso,
cadeiras e a estante de verniz.
Porém, vos digo: o gado me persegue até agora
e eu cheiro o seu estrume,
só o detém aqui os edifícios,
que os homens erguem contra o bucolismo.
À noite, durmo um nada, suportando berros
de cabras no palheiro d'alma.
§
[se mancenilhas na língua]
Eliane Marques
se mancenilhas na língua
norma de pedra e sabão
se às prontas tortilhas
dois pulos
sobre as patas do boi
se o sôngoro sabe
se contra o couro
querela a savana
e se irene não-à-lei
e se irene não-sinhô
e se não-tão-preta
e nem-tão-boa
e se ainda aos piores mortos
o amém das moças
e se não-não-iá-iá
e se tome
e se ainda o amontoado atamanca
e se alguém o pano
disfarçá-lo com um manto
a animália-dilúvio
a cruz-escudo
a rotina dos túmulos pela úmida vez
au-delá
oh gente do alabama
tombem as louças contra a lâmina
seu manuseio – a convenção mais antiga
banida dos brasões (aqueles)
ranhura na sala dos infantes
§
Forja
Paulo Colina
entre uma calmaria
e outra
do mar de nossas peles
me bastaria amor cantar o fogo
que somos na nascente
de suas coxas
mas há essa dor de outros tempos
e corpos
essa rosa dos ventos sem norte
na memória sitiada da noite
embora o gesto possa ser
no mais todo ternura
o poema continua um quilombo
no coração
§
§
Transatlântico
Leo Gonçalves
adiar o dia de sair do mar
se enturmar com o mar
sem querer domar o mar
ser do mar
fazer com que o mar
em ser espelho olhe-se
no acordo do céu
sem horizontes nem limites
aceitar que o mar
em sendo mar se torne léu
sereia e todo ser
que se molha que se olha
em cada pele cada prole
tornar-se ele pele com pele
formar brânquias
formar guelras
e barbatanas
para estar no mar
querer morar no mar
esquecer os dias de adiar
e se espraiar por lá
pacificamente
atravessar o mar
num barco a vela
num transatlântico
ou num vapor
seguir por onde for
seguir por onde o vento indicar
ouvir as conchas ler os búzios
e deixar-se levar
deixar-se levar no mar
morrer no mar dormir no mar
beber o mar viver o mar
infinitivo mar
§
Pequena canção de inocência
Nina Rizzi
é preciso agradecer sempre - todas as manhãs
o humor | o sabor amargo do bolo, das rosas
é preciso não esquecer nunca - todas as manhãs
o amor | ainda sob um céu de bouganvilles
[sempre e nunca é muito tempo & ainda]
o rumor | tudo é ruína
§
§
Ode ao ponto final
Sebastião Nunes
Tudo o que começa, Mal, termina.
À sombra de um karma cochila outro karma.
Cadê o futuro que estava aqui? Fodeu-se.
(É muito tarde demais pra morrer jovem.
Os deuses desolados fecham a porta.)
§
Mão-de-pilão
Oliveira Silveira
Água no oco,
palha, grão.
Soca, soca,
Mão-de-pilão.
Longe que é, longe que fica
e a mão-de-pilão esmurrando a cangica.
Longe que é, longe que fica
e a mão-de-pilão tocando cuíca.
Água no oco,
palha, grão.
Soca, soca,
mão-de-pilão.
Socando, socando aos sol da manhã,
o eco na serra parece tantã.
Bate, bate... pra quê bate tanto?
Longe tão longe que não adianta.
Água no oco,
palha, grão.
Soca, soca,
mão-de-pilão.
§
[Passo horas]
Miró da Muribeca
Passo horas
Pensando porque tanto penso
Em algo que não é nem tanto.
Ser humano:
Saco de coisas.
Uma pá de sentimentos.
Tijolo por tijolo
Até virar cimento.
§
§
Serei Conde, Marquês e Deputado
Luiz Gama
Pelas ruas vagava, em desatino,
Em busca do seu asno que fugira,
Um pobre paspalhão apatetado,
Que dizia chamar-se - Macambira.
A todos perguntava se não viram
O bruto que era seu, e desertara;
Ele é sério (dizia), está ferrado,
E tem o branco focinho, é malacara.
Eis que encontra postado numa esquina,
Um esperto, ardiloso capadócio,
Dos que mofam da pobre humanidade,
Vivendo, por milagre, santo ócio.
Olá, senhor meu amo, lhe pergunta
O pobre do matuto, agoniado;
“Por aqui não passou o meu burrego
Que tem ruço o focinho, o pé calçado?”
Responde-lhe o tratante, em tom de mofa:
“O seu burro, Senhor, aqui passou,
Mas um guapo Ministro fê-lo presa,
E num parvo Barão o transformou!”
Ó Virgem Santa! (exclama o tabaréu,
Da cabeça tirando o seu chapéu)
Se me pilha o Ministro, neste estado,
Serei Conde, Marquês e Deputado!...
§
Olorum EkêPequena canção de inocência
Nina Rizzi
é preciso agradecer sempre - todas as manhãs
o humor | o sabor amargo do bolo, das rosas
é preciso não esquecer nunca - todas as manhãs
o amor | ainda sob um céu de bouganvilles
[sempre e nunca é muito tempo & ainda]
o rumor | tudo é ruína
§
§
Ode ao ponto final
Sebastião Nunes
À sombra de um karma cochila outro karma.
Cadê o futuro que estava aqui? Fodeu-se.
(É muito tarde demais pra morrer jovem.
Os deuses desolados fecham a porta.)
§
Mão-de-pilão
Oliveira Silveira
Água no oco,
palha, grão.
Soca, soca,
Mão-de-pilão.
Longe que é, longe que fica
e a mão-de-pilão esmurrando a cangica.
Longe que é, longe que fica
e a mão-de-pilão tocando cuíca.
Água no oco,
palha, grão.
Soca, soca,
mão-de-pilão.
Socando, socando aos sol da manhã,
o eco na serra parece tantã.
Bate, bate... pra quê bate tanto?
Longe tão longe que não adianta.
Água no oco,
palha, grão.
Soca, soca,
mão-de-pilão.
§
[Passo horas]
Miró da Muribeca
Passo horas
Pensando porque tanto penso
Em algo que não é nem tanto.
Ser humano:
Saco de coisas.
Uma pá de sentimentos.
Tijolo por tijolo
Até virar cimento.
§
§
Serei Conde, Marquês e Deputado
Luiz Gama
Pelas ruas vagava, em desatino,
Em busca do seu asno que fugira,
Um pobre paspalhão apatetado,
Que dizia chamar-se - Macambira.
A todos perguntava se não viram
O bruto que era seu, e desertara;
Ele é sério (dizia), está ferrado,
E tem o branco focinho, é malacara.
Eis que encontra postado numa esquina,
Um esperto, ardiloso capadócio,
Dos que mofam da pobre humanidade,
Vivendo, por milagre, santo ócio.
Olá, senhor meu amo, lhe pergunta
O pobre do matuto, agoniado;
“Por aqui não passou o meu burrego
Que tem ruço o focinho, o pé calçado?”
Responde-lhe o tratante, em tom de mofa:
“O seu burro, Senhor, aqui passou,
Mas um guapo Ministro fê-lo presa,
E num parvo Barão o transformou!”
Ó Virgem Santa! (exclama o tabaréu,
Da cabeça tirando o seu chapéu)
Se me pilha o Ministro, neste estado,
Serei Conde, Marquês e Deputado!...
§
Solano Trindade
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Eu sou poeta do povo
Olorum Ekê
A minha bandeira
É de cor de sangue
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Da cor da revolução
Olorum Ekê
Meus avós foram escravos
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Eu ainda escravo sou
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Os meus filhos não serão
Olorum Ekê
Olorum Ekê
§
§
A mosca azul
Machado de Assis
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que te ensinou?"
Então ela, voando e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor".
E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
Eu vi um rosto que era o seu.
Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vixnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios.
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.
Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
§
Desenrolando Barthes
Renato Negrão
no início era o referente e o verbo
e o processo incessante
de produção de sentido
a isso se deu o nome de semiose
cadeia – ou galeria –
infinita e incessante
do discurso e da cultura
labuta poética sobre o sentido
de se produzir sentido sobre as coisas
dois performes escrevem no chão
- utilizando rolos de barbante -
uma mesma frase do semiólogo roland barthes
a frase escrita é modificada ou subvertida
Por meio de fluxos de pensamento e/ou
ocorrências sonoras
- conversas, onomatopéias -
vivenciadas no local
logo duas frases diferentes surgem
no espaço expositivo
as linhas são ligadas a pessoas da audiência
e em seguida deslocadas pelo chão da galeria
em direção à rua até o termino do barbante
o que a audiência fará com as linhas que os ligam
haverá tempo para que a audiência leia a frase escrita no chão
a que fim levará o fim da linha
§
O quintal
Lourdes Teodoro
detrás dos bambuais
meninos tocavam flautas
atrás do trem elétrico
mulheres dançavam salmos
atrás de jangadas
peixes se salvavam de anzóis
atrás de navios
jangadas entoavam hinos
atrás de jangadas
a boiada atravessava o rio
sob mangueiras, alimentos místicos
nutriam a infância
atrás das bananeiras
clareiras criavam deuses
atrás dos rios
revoltavam-se os mares
sonhando correr igual
da manhã
a face do mundo era verde.
§
Oriki de Xangô I
das transcriações de Antônio Risério
Lasca e racha paredes
Racha e crava pedras de raio
Encara feroz quem vai comer
Fala com o corpo todo
Faz o poderoso estremecer
Olho de brasa viva
Castiga sem ser castigado
Rei que briga e me abriga
§
[Fui feto feio feito no ventre do Brasil]
Paulo Lins
Fui feto feio feito no ventre do Brasil
estou pronto para matar
já que sempre estive para morrer
Sou eu o bicho iluminado apenas
pela fraca luz das ruas
que rouba para matar o que sou
e mato para roubar o que quero
Já que nasci feio, sou temido
Já que nasci pobre, quero ser rico
e assim meu corpo oculta outros
que ao me verem se despiram da voz
Voz solta virando grito
Grito louco ao som do tiro
Sou eu o dono da rua
O rei da rua sepultado vivo no baralho
desse jogo
O rei que não se revela
nem em paus
nem em ouro
Se revela em nada quando estou livre
renada quando sou pego
pós nada quando sou solto
Sou eu assim herói do nada
De vez em quando revelo o vazio
De ser irmão de tudo e todos contra mim
Sou eu a bomba humana que cresceu
entre uma voz e outra
entre becos e vielas
onde sempre uma loucura está para acontecer
Sou seu inimigo
Coração de bandido é batido na sola do pé
Enquanto eu estiver vivo
todos estão para morrer
Sou eu que posso roubar o teu amanhecer
por um cordão
por um tostão
por um não
Me meço e me arremeço (sic) na vida
lançando-me em posição mortal
Prefiro morrer na flor da mocidade
do que no caroço da velhice
Sem saber de nada me torno anacoluto insistente
Indigente nas metáforas de tua língua vulgar 126
Que não se comprometeu
Pois a minha palavra
( a bela palavra )
Inaugurada na boca do homem, a dama maior do
artifício social
perdeu a voz
Voz sem ouvido é mero sopro sem fonemas
É voz morta enterrada na garganta
E a pá lavra vida muda no mundo legal
me faz teu marginal
§
Cuti
às vezes sou o policial
que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
às vezes sou o zelador
não me deixando entrar
em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredito
às vezes sou o amor
que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo com o vazio
às vezes as migalhas do que
sonhei e não comi
outras o bem-te-vi
com olhos vidrados
trinando tristezas
um dia fui abolição que me
lancei de supetão no espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida
uma constituição que me promulgo
a cada instante
também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser
às vezes faço questão
de não me ver
e entupido com a visão deles
me sinto a miséria
concebida como um
eterno começo
fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo
e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.
§
[Não sou eu que gosto de nascer]
Stela do Patrocínio
Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles
§.
.
.