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Duas mulheres e a Est-É-tica: Hannah Arendt e Clarice Lispector

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Duas mulheres com quem aprendo a pensar de maneira est-É-tica, uma delas de nosso país e língua de origem e a outra de meu país e língua de adoção: Clarice Lispector (1920 - 1977) e Hannah Arendt (1906 - 1975). A alguns surpreenderá a escolha destas duas mulheres neste contexto, por motivos talvez opostos. No caso de Arendt, por esta ser geralmente associada a um pensamento político e ético, mas não estético. No caso de Lispector, por esta ter criado seus artefatos literários sem jamais haver praticado de forma consistente o pensamento crítico-estético, muito menos por ter seu trabalho literário associado a um pensamento político. Torno-as presentes aqui através de duas famosas entrevistas televisivas. A de Hannah Arendt foi concedida ao jornalista Günter Gaus, no canal de televisão ZDF, em outubro de 1964. Já mostramos esta entrevista aqui, em uma postagem dedicada especificamente a Arendt. A entrevista original tem o dobro da duração, mas mostramos mais uma vez a metade encontrada na Rede com legendas em espanhol. A de Clarice Lispector foi concedida ao jornalista Junio Lerner, da TV Cultura, em 1977, poucos meses antes de sua morte.
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(Hannah Arendt, em sua famosa entrevista de 1964, com Günter Gaus. Legendas em espanhol)

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(Clarice Lispector, em sua famosa entrevista final de 1977)


A entrevista de Arendt é bastante famosa e doou a seus admiradores e detratores várias citações célebres. No excerto acima, podemos ouvir sua resposta à pergunta de Gaus, se ela sentia nostalgia pela Europa de antes de Hitler e pergunta o que restara daquele tempo. De forma bastante educada, Arendt diz que não sente nostalgia alguma pela Europa do tempo antes de Hitler, sem estardalhaço para as óbvias implicações de uma pergunta que poderia ser vista como extremamente impertinente, já que a Europa anterior ao nazismo foi a mesma Europa que tornava os judeus cidadãos de segunda classe dentro da Alemanha e que impedira Arendt de lecionar na Universidade por ser judia. Quanto ao que resta daquele tempo, Arendt dá a famosa resposta: daquela Europa resta a língua, que ela mais adiante qualifica de "língua materna". Seria muito interessante discutir se é realmente possível separar esta língua de tudo o que aconteceu, ou se esta permanece "a mesma". Não afirmo nem nego, apenas tenho calafrios ao pensar nas implicações desta discussão. De qualquer forma, é comovente como Arendt explica sua recusa de abandonar a "língua materna", dizendo que se perdesse esta ela perderia também todos os poemas em língua alemã que se movimentam nos bastidores de seu pensamento. No bonito Homens em tempos sombrios (1968), ela escreve sobre vários poetas, a quem ela parece dedicar especial admiração.

Aqui poderíamos discutir tantas coisas, como pensar na famosa declaração de Adorno, de que escrever poesia seria um ato de barbárie depois de Auschwitz, assim como a suposta resposta "indireta" de Paul Celan para a questão, que teria feito Adorno "mudar de opinião", resposta que foi bem menos indireta do que se pensa. Eu ousaria dizer que Adorno e Celan, na verdade, jamais discordaram. A proposição de Adorno é frequentemente compreendida de forma um tanto equivocada. Pois Adorno atacava ali uma noção de poesia pura, independente do mundo dos eventos, uma poesia que tentasse seguir como se nada houvesse acontecido: isso seria um ato de barbárie. É nisso que Celan responde a Adorno, pois Celan não escreve como se nada houvesse acontecido. No Brasil, com suas traduções um tanto equivocadas de Celan, como, em minha opinião, certas escolhas de Claudia Cavalcanti no volume Cristal (São Paulo: Iluminuras, 1999), parece haver uma crença num Celan como partidário de alguma "Beleza difícil". No entanto, o próprio Celan atacaria os poetas que seguiram perseguindo alguma espécie de "eufonia" em meio à barbárie. A insistência no aspecto semântico do trabalho de Celan, com seus neologismos, faz com que não se perceba o trabalho proposital de "feiura" na escrita do poeta romeno, com sua sintaxe quebrada, partida. Há poucos poetas tão históricos quanto Celan ou outros poetas sobreviventes da Shoah, como Edmond Jabès, Tadeusz Rózewicz, Dan Pagis, sem mencionar os textos dos que não sobreviveram, como Miklós Radnóti, Etty Hillesum, e, de certa forma, mesmo Simone Weil. No entanto, não falta quem tente fazer leituras "trans-históricas" do trabalho de Celan e Jabès.

Mas já comecei a me distanciar aqui da conversa sobre Arendt. Apenas resta em minha mente a pergunta: até que ponto permanece realmente aquela língua, de antes do nazismo, após o nazismo? Até que ponto nossas línguas carregam aquelas catástrofes que se empilham aos pés do Anjo da História, aquele de Walter Benjamin?

Quanto a Clarice Lispector, seu trabalho é raramente associado a implicações éticas ou políticas, lidos em geral numa clave mística e religiosa, como se estas se excluíssem. Infelizmente, a leitura admirada de Hélène Cixous acaba por esconder, sob leituras eminentemente psicanalíticas, algumas propostas realmente interessantes. No Brasil, crê-se que A hora da estrela (1977) seria seu momento de imersão no contexto sócio-político brasileiro, o que é geralmente visto como rendição negativa por alguns de seus admiradores. Pessoalmente, vejo os livros A maçã no escuro (1951) e A paixão segundo G.H. (1964), além de meditações místicas, como os momentos mais violentos de sua escrita est-É-tica e política, quando ela se faz, ao lado de Machado de Assis, a crítica mais feroz de nossa noção de civilização. Queira você agora chamá-la de "patriarcal", "ocidental", "europeia", "capitalista" ou qualquer outro adjetivo da escolha de sua perspectiva pessoal.


--- Ricardo Domeneck




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