A Modo de Usar & Co. dá início hoje a uma nova série, dedicada à Zoopoética. O conceito vem sendo estudado no Brasil por pesquisadores como Maria Esther Maciel, que dedicou ao assunto já dois livros: Pensar / escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica (2011) e Literatura e animalidade (2016). Nesta série, alternaremos postagens de textos de autores já mortos, que dedicaram sua escrita a uma pesquisa da alteridade através de uma consciência não-humana, e textos de autores contemporâneos convidados pela revista. Damos início com um texto clássico da Poesia Brasileira, ao qual a própria Maria Esther Maciel recorre com frequência: o poema "Um boi vê os homens", de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), do livro Claro Enigma (1951). Em seu ensaio "Zoopoéticas contemporâneas", Maria Esther Maciel escreve:
"No poema 'Um boi vê os homens', de Claro enigma, Drummond confere voz a um 'eu-bovino' que – no exercício de um pensamento fora de lugar, porque inscrito em uma linguagem que não é necessariamente a do animal – rumina seu próprio saber sobre a espécie humana. Numa dicção sem ênfase, mas firme nas conjeturas, esse 'eu' lamenta que os humanos, em seu 'vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos', 'sons que se despedaçam e tombam no campo como pedras aflitas', não sejam capazes de ouvir 'nem o canto do ar nem os segredos do feno'. (DRUMMOND, 1979, 266) Em outras palavras, o boi – movido por uma percepção que supostamente ultrapassa as divisas da razão legitimada pela sociedade dos homens – não apenas põe em xeque a capacidade destes de entender outros mundos que não o amparado por essa mesma razão, mas também revela uma visão própria das coisas que existem e compõem o que chamamos de vida. Vê-se que a persona bovina de Drummond busca encarnar ou encenar uma subjetividade possível (ainda que inventada), de um ser que, nos confins de si mesmo, é sempre outro em relação ao que julgamos capturar pela força da imaginação. Isso, se considerarmos que todo animal – tomado em sua singularidade, em seu it– sempre escapa às tentativas humanas de apreendê-lo, visto que entre ele e os humanos predomina a ausência de uma linguagem comum, ausência esta que instaura uma distância mútua e uma radical diferença de um em relação ao outro. No entanto, tal distância/diferença não anula necessariamente aquilo que os aproxima e os coloca em relação também de afinidade. Falar sobre um animal ou assumir sua persona não deixa de ser também um gesto de espelhamento, de identificação com ele. Em outras palavras, o exercício da animalidade que nos habita."
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SÉRIE DEDICADA A UMA POSSÍVEL ZOOPOÉTICA
Carlos Drummond de Andrade
Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos - e perde-se
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha,
e que secura e que reentrâncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessárias. Têm, talvez,
certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?), sons que de despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e, difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.
in Claro enigma (1951).
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Joca Reiners Terron lê "Um boi vê os homens", em vídeo do Instituto Moreira Salles.
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