Quantcast
Channel: modo de usar & co.
Viewing all articles
Browse latest Browse all 866

Fala-Fluente (poeta da Nação Osage)

$
0
0
Guerreiro Osage.


Fala Fluente foi um poeta-cantor da nação indígena norte-americana Osage. Esta é, na verdade, toda a informação biográfica que podemos dar a nossos leitores, colhida da fonte da qual extraímos o poema-canção abaixo, "Song of Speaks-Fluently", ou "Canção do Fala-Fluente". Na tradição dos indígenas norte-americanos, a de doar a seus companheiros nomes que descrevam seu maior talento, não espanta que o poeta-cantor da tribo se chamasse, em tradução para o inglês, Speaks-Fluently, ou Fala-Fluente, como decidimos chamá-lo aqui. 

Trata-se de informação colhida no volume que reúne as palestras sobre poesia feitas pela poeta norte-americana Mary Ruefle (n. 1952), intitulado Madness, Rack, and Honey: Collected Lectures (2012). A menção a Fala-Fluente/Speaks-Fluently e a tradução de seu poema-canção para o inglês, feita pela própria Mary Ruefle, aparece no capítulo-palestra "On secrets" (Sobre segredos), em que a poeta narra de forma muito bonita a imagem-som de vozes que se encontram através dos séculos e nos ensinam, não a falar, mas a ouvir. Na passagem, reúnem-se as vozes de Fala-Fluente/Speaks-Fluently, a da soprano brasileira Bidú Sayão, a de Heitor Villa-Lobos e a da própria Mary Ruefle.

Traduzirei abaixo o excerto, todo ele em itálico:

"Na ária da Bachianas brasileiras n° 5, Bidú Sayão convenceu Villa-Lobos a trascrever para voz o que havia sido originalmente um solo de violino; uma gravação improvisada foi feita em Nova Iorque, em 1945, "só para ouvir como soaria". Não foi mais regravada. Todos no estúdio souberam, imediatamente, que não havia necessidade. A gravação durou sete minutos. Primeiro, ouve-se Bidú Sayão cantar a parte do violino, então ouve-se o violino, aí ouve-se Bidú Sayão cantar outra vez a melodia, desta vez com a boca completamente fechada - ela está cantarolando - e a última nota que a ouvimos atingir e cantar, um salto de oitava, é feito com a boca completamente fechada.

E este é um poema que eu encontrei há algumas semanas por acaso entre meus papéis. Eu o juntei quando tinha 20 anos. Eu digo "eu o juntei" porque estas foram as circunstâncias: Eu estava presa em uma casa na qual o único livro era um Dicionário da Língua Nativa dos Osage. Ao fim do volume havia parágrafos em prosa, em língua osage, e algumas das canções e lendas da tribo, e, procurando cada palavra no dicionário, eu adaptei algumas para o inglês, minha língua nativa:

SONG OF SPEAKS-FLUENTLY

To have to carry your own corn far -
who likes it?
To follow the black bear into the thicket -
who likes it?
To hunt without profit, to return weary without anything -
who likes it?
You have to carry your own corn far.
You have to follow the black bear.
You have to hunt to no profit.

If not, what will you tell the little ones? What will you speak of?
For it is bad not to use the talk which God has sent us.
I am Speak-Fluently. Of all the groups of symbols,
I am a symbol by myself.


Agora, o que me maravilha é que Fala-Fluente (Speaks-Fluently) nascera, e muito tempo mais tarde Villa-Lobos nasceu, e mais tarde nasceu Bidú Sayão, e ainda mais tarde nasci eu, e, por algum milagre que eu não posso decifrar, foi-me dado ouvir estas vozes, e todos esses exemplos de uma vida humana estavam falando, e, quando eu ouvia com atenção, eu podia ouvir que eles estavam falando sobre a fala, e, quando eu os ouvia falando sobre a fala, com atenção, eu podia ouvir que estavam falando sobre ouvir." --- Mary Ruefle, in Madness, Rack, and Honey (Wave Books, 2012) - tradução minha.



E agora, de minha parte, assim como a voz de Mary Ruefle trançou-se com a de Speaks-Fluently, eu parto da voz dela para chegar à dele, a de Fala-Fluente:

Canção de Fala-Fluente

Ter que carregar longe o milho -
quem gosta?
Ter que seguir o urso negro no matagal -
quem gosta?
Ter que caçar sem sucesso, voltar cansado sem a caça -
quem gosta?
Você tem que carregar longe seu milho.
Você tem que seguir o urso negro.
Você tem que caçar sem sucesso.

Do contrário, o que você contará aos pequenos? Do que falará?
Pois mau é não usar a fala que Deus nos enviou.
Eu sou Fala-Fluente. De todos os grupos de símbolos,
Eu sou um símbolo em si só.

(Paráfrase de Ricardo Domeneck)

Quantos são os poetas dos quais não temos mais informações biográficas, mas cujas vozes ainda chegam a nossos ouvidos e nos ensinam, mais que a falar, a ouvir? Aqueles que sabemos nomear porque eles próprios se nomearam em seus poemas: como Catulo o fez, ou Arnaut Daniel, François Villon, Acolmiztli Nezahualcóyotl. E o poeta Fala-Fluente, entre os Osage. 

Penso nos poemas do bardo bretão Taliesin (século VI), do escaldo islandês Egill Skallagrímsson (910 – 990), as canções de Beatriz de Diá e Martim Codax, o lindo poema de Orpingalik reunido por Jerome Rothenberg em Technicians of the Sacred, todos eles emaranhando-se na poesia mística do século XX, seja a do nigeriano Christopher Okigbo, a do norte-americano Robert Duncan ou a do brasileiro Roberto Piva, tantos exemplos de vozes que ainda nos chegam, empenham-se em chegar, tentam nos ensinar a ouvir, mesmo que façamos com tanta frequência (tão sempre) ouvidos moucos.

--- Ricardo Domeneck

§




.
.
.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 866