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Rap brasileiro: Sabotage (Mauro Mateus dos Santos, 1973-2003), por Ederval Fernandes

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Sabotage (Mauro Mateus dos Santos, São Paulo, 1973-2003)


Mauro Mateus dos Santos foi assassinado com quatro tiros no dia 24 de janeiro de 2003, aos 29 anos. Para quem penou em grande parte da vida, à época do atentado fatal ele vivia um período feliz e de absoluta prosperidade. Numa das últimas entrevistas que deu, Sabotage se dizia realizado. “Meu show é 500, 800 reais. Já é mais que um salário mínimo. Falei para a minha mãe que um dia ia viver de música, e hoje vivo de música”, disse ele a Xico Sá e Cássio Brandão, jornalistas da Trip. Passados dois anos da sua estreia solo, com o clássico absoluto Rap é compromisso (Cosa Nostra/Sony, 2001), Maurinho (como seus amigos o chamavam) já era visto como um grande representante da cultura Hip Hop brasileira. Como autêntico ponta de lança, desbravou e estabeleceu parcerias até então inéditas para a sua cultura. Os cineastas Beto Brant e Hector Babenco, os músicos do Sepultura e do Titãs (principalmente Paulo Miklos) assinaram parcerias e estavam muito entusiasmados com a poesia visceral e a experiência das ruas que corria nas veias de Sabotage. As aparições na televisão (um verdadeiro tabu para o rap brasileiro) eram frequentes. A cultura Hip Hop brasileira (em especial a paulista) tinha então achado um líder carismático, alguém que estava conseguindo estabelecer pontes com outros setores progressistas da sociedade brasileira.

Nos Estados Unidos, rappers como Rakim, Ice Cube, Tupac e Mos Def há muito ocupavam mesas de debate, seminários em universidades, programas de auditório e de entrevista na televisão e no rádio. Só no início dos anos dois mil é que isso começou a acontecer aqui no Brasil. Sabotage esteve na vanguarda. Junto com Xis, MV Bill, Thaíde, Nega Gizza e outros poucos. Só recentemente, por exemplo, membros dos Racionais (o maior e mais paradigmático grupo de rap do país) começaram a aparecer em programas da TV Bandeirantes, Globo, etc. Hoje em dia é mais comum a opinião de um rapper brasileiro ter grande repercussão e audiência e chegar a diferentes classes sociais. É tão comum um vídeo do Criolo viralizar, ou do Emicida. Fico pensando, por exemplo, naquele vídeo do Criolo sobre não rir de um comentário homofóbico ou então naquela aparição do Emicida falando sobre racismo no programa Altas Horas, da rede Globo. 

Sabotage foi um dos primeiros a pisar em ‘território inimigo’ e os frutos deste seu pioneirismo e da sua franca e ampla abertura para o outro semearam o terreno para que hoje o rap brasileiro esteja mais forte e múltiplo (ainda longe do ideal, é verdade, mas é só olhar para 10, 12 anos atrás e traçar um rápido paralelo). Um aspecto curioso disto é uma espécie de onipresença que Sabotage adquiriu nesta obsessiva onda de referência e citação que a nova e a novíssima geração de mcs brasileiros tem tido (uma resposta ao rap de entretenimento que dominava a cena antes da explosão de “Sulicídio” ano passado, tese minha). Don L, Emicida, Chinaski, Drik Barbosa, Clara Lima, Djonga, BK, DK, Felp 22 todos vem citando Sabotage direta ou indiretamente. 

Hector Babenco, com quem Sabotage trabalhou durante a produção do longa Carandirú (2003) e com quem também escreveu “Sai da frente” (faixa 10 do disco póstumo Sabotage, de 2016), costumava dizer que o rapper paulista era, além de tudo, um entertainer, um performer. Os cabelos espetados, os gestos cuidadosamente calculados, as frases de efeito (“O rap Charles Bronson, aquele que se apertar, sai sangue”), isto tudo aliado a certa narrativa da sua experiência no crime fez de Sabotage uma figura ímpar no jogo do entretenimento brasileiro. Ele tinha plena consciência do que estava fazendo. Ao misturar Ol’Dirty Bastard, Snoop Dogg e Coolio com o modo de ser/estar de Bezerra da Silva e Zeca Pagodinho, forjou a imagem do gansgta-rapper brasileiro por excelência. Se MV Bill e Mano Brown encarnavam, entre fins dos anos noventa e princípio dos dois mil, uma imagem mais próxima a Tupac Shakur (quem se lembra da célebre apresentação do MV Bill no Free Jazz Festival [1999] na qual ele cantou com uma 9mm na cintura no melhor estilo thug?), Sabotage conseguia extrair de um caldeirão de influências mais múltiplo e requintado a sua imagem original. Neste aspecto, talvez só Marcelo D2 tenha sido um contemporâneo (quase) à altura.

Em muitas entrevistas que deu, como esta aqui, Sabotage se referiu ao rap como uma espécie de livro. E neste livro o povo da periferia, dialeticamente, escreveria e leria a sua própria história através de uma linguagem comum. Numa entrevista (https://www.youtube.com/watch?v=3JoCGsjWABY) que deu ao rapper Kamau, então repórter do programa Yo! MTV, Sabotage criticou o rap Charles Bronson (tão em voga na cena paulista de então), “aquele que se você apertar, sai sangue”, bem como a música de entretenimento mais rasteiro: “falar só de bunda e de futebol não vira nada, cê tá ligado, mano?”.  Para Sabotage, o rap tinha que ter raiz. Esta raiz, porém, era menos um lugar estático (temas e sonoridades que se tornaram “basilares” para o rap brasileiro no começo do milênio) do que um sentimento mais amplo de pertencimento à cultura Hip Hop e ao seu povo. O que rapper da Zona Sul de São Paulo perseguia era o estilo, o “como” escrever algo que os seus se reconhecessem e que pudesse, também, dialogar com o outro (o tal desafio de “fazer um som de Jão pros tio”, como ele escreveu em Canão foi tão bom). Ele queria tirar as armas da música e fazer dela uma ponte para o outro – senão com cordialidade, sempre, porém, com sabedoria. “A chave é ter sempre resposta àquele que infringe a lei na blitz” (trecho de Um bom lugar). 

A sua filha Tamires conta que Sabotage escrevia seus raps sentado no chão do seu barraco com dois rádios e duas televisões ligadas ao mesmo tempo. A esta mistura sonora doméstica, somavam-se os sons habituais do cotidiano dos becos e dos outros barracos do morro do Canão ou do Boqueirão. Rodeado por esta massa sonora caótica, Sabotage rimava as palavras e as guardava em cadernos. Esta era a primeira parte da criação de um rap seu. Depois, quando ia ao estúdio, levava consigo os seus cadernos. No estúdio ele pinçava estrofes variadas daquilo que estava já escrito nas várias páginas misturadas e desencontradas e as combinava com algo novo feito de improviso. Assim nascia o texto final da maioria de suas músicas. Um texto fragmentado e elíptico desde a sua gênese. Estas características, no entanto, não fizeram deste texto algo disperso. Ao manipular este material fragmentário e elíptico, a dimensão sonora de suas palavras (as ressonâncias rítmicas e os jogos de rimas) cria uma espécie de harmonia discursiva, produz uma sensação de coesão que afaga o ouvido (mas às vezes atordoa, como um soco) e estabelece um tipo de logro no campo semântico.

Músicas como “Um bom lugar” e “Cantando pro santo”, do primeiro disco, e “Cabeça de Nego”, feita em parceria com o coletivo Instituto (Coleção Nacional, de 2002), são ótimos exemplos desta forma de compor. O caráter elíptico e fragmentário de “Cabeça de Nego”, por exemplo, ajuda a criar algo que eu chamaria de “avalanche de palavras”. A meu ver, este fenômeno dribla a princípio um entendimento semântico do texto para estabelecer, num nível mais imediato e sonoro, um lugar apropriado para a contemplação rítmica das palavras. É arriscado e até exagerado dizer, mas em “Cabeça de Nego” Sabotage conseguiu retirar de “ritmo e poesia” a conjunção estanque e reestabeleceu uma camada mais próxima entre estas duas palavras/conceitos e as transformou, assim de forma efêmera (4 minutos tem a música), numa só palavra/sensação/experimento: ritmopoesia. Basta ouvir: 


É curioso perceber como este modo fragmentado e elíptico de criar seus raps funciona quando o pressuposto é contar umas histórias (não me lembro de um só MC na história da rap que não tenha escrito ‘uma história’). Aliás, não há em toda a obra do Sabotage um único rap que seja simplesmente a narração de uma história tal como Mano Brown fez em “O homem na estrada” (de Raio X do Brasil, de 1993), “Diário de um detento” (de Sobrevivendo no inferno, de 1997) ou “Eu sou 157” (Nada como um dia após o outro dia, de 2001). Há quase sempre um tipo de contaminação que muitas outras pequenas histórias ou reflexões pessoais se misturam ao núcleo narrativo e assim a história principal, se é que ela existe, segue sendo mais aludida do que propriamente contada. Fora uma ou outra exceção, os raps de Sabotage relatam o seguinte dilema: a oposição de uma realidade cruel e violenta - sustentada pela manutenção da desigualdade social e do racismo sistêmico na sociedade brasileira, - e o mundo da cultura (no caso, o da cultura Hip Hop) como mediadora de transformações éticas e estéticas no plano pessoal, e econômicas e políticas no plano social. Há sempre um personagem (com muitas características do próprio Sabotage – em “Cantando pro santo” ele escreveu: “A liberdade vem primeiro / Meu clone, meu espelho / Sem sossego, sem emprego, no perreio, daquele jeito”) numa encruzilhada entre o crime e a cultura. Eu poderia citar aqui muitas músicas que são variações obsessivas deste tema (“Um bom lugar”, “País da fome” I e II, “No Brooklin”, “Mun-ha”, “Canão foi tão bom”, “Um missel” e por aí segue...), mas vamos nos ater a uma. A mais emblemática de todas: “Rap é compromisso”, rap que dá título ao primeiro disco solo de Sabotage e é reconhecidamente um clássico absoluto do rap brasileiro. Lá pelo final da música Sabotage sintetiza bem a intricada relação que o seu personagem (ele mesmo) vivencia entre o crime e a cultura. De algum modo, estas duas dimensões possuem uma grande força simbólica diante das opressões de classe e raça que a população pobre e periférica sofre no Brasil.



O crime igual ao rap.
O rap é a minha alma.
Deite-se no chão,
abaixe vossas armas.

Como nada em Sabotage é óbvio, convém olhar melhor estes quatro versos. Há um detalhe aqui que foge ao vulgar e mostra como Sabotage era muito sagaz com a caneta. Certo, em alguma medida é razoável aceitar que, simbolicamente, o rap e o crime propõem possibilidades de empoderamento para a periferia brasileira. É desnecessário dizer, ainda, que cada um opera de acordo com suas próprias leis (uma, cruel; outra, generosa). Embora viva de fato as duas experiências, Sabotage sabe qual é a sua – “O rap é a minha alma”. Alma e arma. Palavras fonética e graficamente tão parecidas, mas cujas semelhanças param por aqui. Porque o rap para Sabotage é a sua alma, e não uma arma. Ou seja, o rap é aquilo que de mais íntimo tem de si (uma consistência interior, uma autoridade), e não um instrumento (apesar de potente e convincente) com o qual conseguirá algo (uma outra forma de autoridade?). O imperativo em “Deite-se” e “abaixe” nasce da autoridade do rap, da alma, e não da instrumentalidade da arma (do crime). Não há refém, há um necessário movimento de rendição. O rap produz a revolução por inteiro. O crime o faz pela metade (“Só ilude o personagem”). Sabotage é o exemplo máximo disso: por conta com seu envolvimento com o crime, foi assassinado muito jovem; por conta do seu envolvimento com o rap, segue operando pequenas e importantes revoluções pessoais nos quatro cantos do Brasil. 

No fim dos anos noventa e início dos anos dois mil, um gênero-fragmento, o rap-samba, começou a ganhar destaque entre alguns mcs e produtores do eixo Rio/São Paulo (dentre eles, Dj Nuts e Zé González). E não só: nos Estados Unidos, os Beastie Boys e produtores como J. Dilla e Madlib voltaram seus ouvidos para a bossa nova e para as outras expressões do samba na música popular brasileira. Há algumas explicações possíveis, e uma me parece bem razoável. É que o rap afinal ganhou lastro e densidade na cultura musical da periferia brasileira (uma pergunta rápida: qual favela ou bairro periférico não tem “Vida Loka” pichada em alguma parede?), e por isso, assim como aconteceu com o reagge jamaicano em muitas regiões do Brasil (no Maranhão e na Bahia, principalmente), o gênero estadunidense sofreu mutações, apropriações, aglutinações as mais variadas, tendo com o samba um lugar de felizes e ricos diálogos.

Penso que foram Gabriel O Pensador e Marcelo D2 os primeiros a explorarem a mistura dos gêneros no circuito mainstream. Isto no Rio. Em São Paulo, num tópico mais underground, certamente Rappin Hood e Sabotage foram os pioneiros. Com “Samba do desempregado” (de 98), O Pensador não foi além de uma sátira usando o pagode baiano como expressão. Há pouco de rap ali, mas vale o registro histórico de um dos primeiros rappers a comporem um samba. D2 e Hood, no entanto, não fizeram como o compositor de “Samba do desempregado”, cavaram um pouco mais fundo. Eles conseguiram uma boa dosagem da cadência do samba de partido alto com o boom-bap nova-iorquino em seus discos.

Sabotage, que de fato tem mais densidade em sua lírica que estes três MCs (juntos?), fez do samba-rap não uma sátira ou somente um lugar de diálogo de gêneros musicais. Ele conseguiu criar uma espécie de síntese mais criativa, uma musicalidade híbrida cujo flow, melódico, lembra Eminem e Chico Buarque. Sem deixar de lado a linguagem comum das ruas e do crime. À maneira da linha evolutiva caetanística que Gilberto Gil exaltou em “Aquele abraço” (‘”Esse samba... Vai para Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso”), Sabotage assim o fez com o seu melhor rap-samba “Dama Tereza”: ‘É... Mestre Marçal, Pixinguinha, só quem é... Dona Ivone Lara. Chega mais... agora é eu, Sabotage’. Cronologicamente, Pixinguinha vem antes de Mestre Marçal, mas este “erro” de encadeamento é secundário quando o que importa, além dos nomes citados, é esta frase: “só quem é”. Sabotage sabe que ele é o samba (“Sou do samba raiz”), daí soar tão natural a sua experiência com o rap-samba (“O Hip Hop é meu hino. / Onde eu vou, tá comigo”).



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