Bruno Brum, o beato beat
por Victor da Rosa,
especial para a Modo de Usar & Co.
Bruno Brum, 1981, é poeta e designer gráfico. Nascido em Belo Horizonte, cidade mais conhecida talvez por seus prosadores, mas que recentemente vem revelando uma série de bons poetas, Bruno vive em São Paulo há quase um ano. Estreou em 2004 com Mínima ideia, livro repleto de bons momentos, assim como uma grande influência de Leminski e da poesia concreta; mas mostrou realmente ao que veio com o lançamento seguinte, Cada, de 2007, livro mais sóbrio, bastante consistente em seu conjunto e de projeto gráfico primoroso, projeto feito aliás pelo próprio poeta. Finalmente, com o humor tão particular dos Mastodontes na sala de espera, que recebeu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura em 2010 e foi lançado um ano depois, pode-se dizer que Bruno firmou-se como um dos poetas mais interessantes de sua geração.
Abaixo, publicamos alguns poemas que dão uma pequena ideia da obra de Bruno, além de uma resenha que escrevi por ocasião do lançamento dos Mastodontes na sala de espera. Em tempo, os dois primeiros livros do poeta, assim como sua autobiografia mentirosa que encerra Mastodontes, intitulada “Bruno Brum em ritmo de aventura”, estão disponíveis gratuitamente em seu site.
--- Victor da Rosa --- a convite da Modo de Usar & Co.
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--- Victor da Rosa --- a convite da Modo de Usar & Co.
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POEMAS DE BRUNO BRUM
Interessante
Você mostrou.
Você acha bonito.
Você acha interessante.
E por isso acha que deve ser mostrado.
Você colocou lá
para que todos vissem
porque decerto supôs
que seria bonito,
que seria interessante
que todos vissem.
Você acha bonito.
Você acha interessante.
E por isso acha que deve ser mostrado.
Você colocou lá
para que todos vissem
porque decerto supôs
que seria bonito,
que seria interessante
que todos vissem.
(do livro Mastodontes na sala de espera)
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Ritmos variados
Sabe, meu Cachoeiro, as coisas nem
sempre saem conforme o combinado.
Nessas ocasiões, apenas me lembro
que tenho um pinto enorme e tudo
parece um pouco melhor.
Os anos se passaram e pequenas
convicções se acumularam
num canto escuro do quarto.
Todos os boleros do mundo
soando juntos deveriam fazer
algum sentido, mas não fazem.
sempre saem conforme o combinado.
Nessas ocasiões, apenas me lembro
que tenho um pinto enorme e tudo
parece um pouco melhor.
Os anos se passaram e pequenas
convicções se acumularam
num canto escuro do quarto.
Todos os boleros do mundo
soando juntos deveriam fazer
algum sentido, mas não fazem.
(do livro Mastodontes na sala de espera)
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Meu ex-cachorro
Meu ex-cachorro se parecia comigo.
E isso é tudo que posso dizer.
Ele se parecia comigo e eu não me parecia com ninguém.
Ou melhor, me parecia com ele.
Durante anos fomos felizes assim.
Mais que a ração sabor galinha com legumes,
nossa semelhança nos alimentava.
Nunca houve nada de errado nisso.
Uma dúvida sequer.
Por muito tempo essa semelhança
nos tornou um pouco melhores.
Ou simplesmente nos fez parecer
um pouco melhores, não importa.
O que importa é que meu ex-cachorro
já não se parece mais comigo.
E eu não me pareço com mais ninguém.
E isso é tudo que posso dizer.
Ele se parecia comigo e eu não me parecia com ninguém.
Ou melhor, me parecia com ele.
Durante anos fomos felizes assim.
Mais que a ração sabor galinha com legumes,
nossa semelhança nos alimentava.
Nunca houve nada de errado nisso.
Uma dúvida sequer.
Por muito tempo essa semelhança
nos tornou um pouco melhores.
Ou simplesmente nos fez parecer
um pouco melhores, não importa.
O que importa é que meu ex-cachorro
já não se parece mais comigo.
E eu não me pareço com mais ninguém.
(do livro Mastodontes na sala de espera)
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Passou apressada,
as pernas pesando
mais que as asas
– as plumas –
de uma vespa
que, como não
passasse,
despistasse
– as plumas –
o próprio
passo.
as pernas pesando
mais que as asas
– as plumas –
de uma vespa
que, como não
passasse,
despistasse
– as plumas –
o próprio
passo.
(do livro Cada)
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Os ursinhos cabulosos I
Rebeca, a lesma lésbica, rabiscava azulejos como se riscasse o vento ou roubasse beijos. Rebeca, posto que lesmas não voam, namorava lesmas, gosmas, gafanhotos do alto da asa delta. Rebeca conheceu o sexo numa noite de champanhe e champignon e, desde então, passou a distinguir o que é ruim do que é bom. Rebeca conheceu sonhos e desilusões da baixa madrugada; se drogava nas esquinas e voltava para casa. Rebeca, desde que lera Nietzsche, preferia mostarda a ketchup, e jamais supunha que, mesmo sendo um tanto kitsch, tudo isso renderia a alcunha que persiste: Rebeca, a beata beat.
(do livro Cada)
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Os mastodontes continuam lá
(resenha do livro Mastodontes na sala da espera, publicada originalmente na revista Sibila)
por Victor da Rosa
Além de um livro mais solto do que os dois anteriores, Mastodontes na sala de espera, nova série de poemas do mineiro Bruno Brum, publicado em 2011 pela Editora Crisálida, assume riscos maiores. Desde esse título meio estranho e também um pouco engraçado e sem jeito – o título não seria também, a sua maneira, uma imagem do próprio ato inconsequente e inoportuno de escrever poesia? –, o novo livro de Bruno não se presta a facilidades, mas ao mesmo tempo não quer fechar-se dentro de uma proposta hermética; em poucas palavras, eu diria que Bruno não escreve segundo os bons modos da escrita literária.
Ao contrário, Bruno mimetiza e se apropria de discursos prontos e descartáveis, às vezes como um ready-made, manipulando com rigor e quase sempre com ironia algumas formas de escrita não poéticas, como os discursos jurídicos e científicos, a mentira, a falsidade e até mesmo noventa e nove clichês literários – eles estão presentes na parte do volume intitulada “Noventa e nove blefes”, talvez o momento mais importante do livro. Aliás, nessa parte, não é possível saber se Bruno apenas copia as frases feitas de outros lugares, de alguns de seus pares, como um colecionador – afinal, há muitos clichês por aí –, ou se o autor inventa seus próprios blefes, como se traísse a si próprio, em um exercício deliberado (e muito libertário) de escrever mal. “Atravesso a rua. A rua me atravessa”, diz um dos noventa e nove clichês.
Há momentos também em que, pela banalidade e pela falta de qualquer sentimento sublime, o poema se parece com uma crônica, semelhança que, aliás, se torna explícita em “Crônicas do homem-rã”, por exemplo, mas que pode ser percebida principalmente nos quatro pequenos poemas da série “Postais”, como este: “Os passantes ainda não/ se decidiram se vão, se ficam,/ se atravessam a rua, se fazem/ uma pausa para o café,/ se atendem o celular”. Ou seja, trata-se de uma poesia que não se ressente tanto da banalidade quanto do improviso, mas também não aceita suas imposições de maneira gratuita; antes, mantém com a banalidade um acordo ambíguo e provisório. O livro de Bruno Brum, também pela repetição e certa monotonia, poderia ser comparado com um eletrodoméstico que vive quebrando; uma peça falsificada, sem garantia.
Portanto, em vez de uma série de poemas simétricos entre si, em vez da procura por uma voz reconhecível, voz que nos daria a referência de uma subjetividade segura, enfim, em vez da organização – versos curtíssimos ainda se misturam com versos mais longos e mais narrativos, às vezes com a prosa e também com poemas visuais, diferentes gêneros textuais etc. –, o gesto de Bruno investe justamente na dispersão, ou seja, em uma variação radical de registros. Daí o improviso. E a forma do improviso, como se sabe – já que não tem duração e nada conclui –, é contrária ao manifesto. Seja como for, o improviso oferece pelo menos duas consequências para a escrita de Mastodontes: a anotação e a repetição.
Em “Seis improvisos”, por exemplo – espécies de “mantras pessoais”, como se lê no título de outro poema (ou uma educação pela repetição) –, os poemas adquirem a forma de pequenas anotações sem valor, como se elas fossem objetos que não servem mais. “Nenhuma rodoviária é feliz”, diz um dos improvisos. Em outro, como acontece em diversos poemas do livro, os versos se encadeiam pela repetição: “Minhas roupas estão ficando velhas./ Meus chinelos estão ficando lentos./ Já não me lembro onde deixei meus retratos”. Os poemas de “Postais” também são anotações. A repetição, de fato, um dos procedimentos mais recorrentes do livro, aparece talvez como tentativa de reter algo: provavelmente uma experiência perdida ou uma ideia que teima em desaparecer.
Os poemas de Mastodontes não são sutis e nem vagos, muito menos complicados; pelo contrário, são precisos e diretos, às vezes literais – por isso carregam certo peso e lentidão –, como o poema “Interessante”, provavelmente o mais literal do livro: “Você mostrou./ Você acha bonito./ Você acha interessante./ E por isso acha que deve ser mostrado./ Você colocou lá./ para que todos vissem/ porque decerto supôs/ que seria bonito,/ que seria interessante/ que todos vissem”. A sintaxe e as palavras são simples, não há metáfora ou qualquer espécie de alusão. Aliás, grande parte dos versos termina com ponto final, o que não deixa de ser também uma marca de definição, recorte. As inúmeras referências aos números também aparecem como tentativas de precisão. Enfim, nada deve sobrar. Mesmo quando aparece certa dúvida e hesitação, parece haver também a busca por uma clareza: “A ideia era dizer algo/ sobre os desertos de sal”.
Depois, o livro de Bruno parece dar seu testemunho particular sobre um tema recorrente em grande parte da literatura moderna: a perda de lugar e experiência. Há diversos poemas que descrevem justamente a distância entre um sujeito e um objeto que, de qualquer maneira, parece não lhe pertencer mais, como é o caso de “Recorte”: “Afastar-se de um objeto qualquer/ até que se possa vê-lo por inteiro.// Afastar-se mais/ até que se confundam as suas formas.// Afastar-se ainda mais,/ até que se torne pequeno, quase invisível.// Afastar-se, afastar-se/ até que suma por completo.// Continuar se afastando/ e desaparecer lentamente”. Um dos improvisos, por sua vez, abre com o seguinte verso: “Esse mundo não é meu”. De maneira geral, o sujeito aparece fora nas cenas que descreve.
No entanto, eu também diria que Bruno dá um tratamento diferente ao assunto, pois já não há qualquer lamento diante do objeto perdido, e sim certo humor e até mesmo algum cinismo, que poderiam ser resumidos nos seguintes versos: “Nessas ocasiões, apenas me lembro/ que tenho um pinto enorme e tudo/ parece um pouco melhor”. Enfim, a imagem dos mastodontes em uma sala de espera, presença estranha e inoportuna, bizarra mesmo, mas que também deve provocar o riso, como já foi dito – afinal, Bruno nos fala também sobre a importância de aprender a rir de si próprio –, talvez agora deva ficar mais clara. Seja como for, os mastodontes ainda continuam lá.
Victor da Rosa é crítico e doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Organizou, em parceria com Ronald Polito, duas antologias com poemas de Joan Brossa: 99 poemas (Demônio Negro, 2009) e Escutem este silêncio (Lumme, 2011); e publicou um livro de crônicas, Crônica de segunda (e-galáxia, 2013), que reúne seus textos para o Diário Catarinense. Em 2011, ganhou o prêmio de Crítica Literária do Rumos Itaú Cultural. Outros de seus textos podem ser lidos no blog: (www.victordarosa.blogspot.com). É um dos críticos mais ativos no cenário contemporâneo, dedicando-se à produção literária de hoje.
Sobre o ensaísta convidado:
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