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Lu Menezes

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Lu Menezesé uma poeta brasileira, nascida em São Luís do Maranhão em 1948. Mudou-se de vez para o Rio de Janeiro, depois de morar em Brasília, e no Rio vive e escreve desde então, começando a publicar seus poemas na década de 70. A estreia em livro viria com O amor é tão esguio (1980). Está entre os mais discretos poetas contemporâneos do país. O segundo livro viria apenas na década de 90, com Abre-te, Rosebud! (1996). Foi com uma resenha deste livro que descobri o trabalho de Menezes, fazendo dela um dos primeiros autores contemporâneos que li ainda jovem. Ainda que contemporânea de poetas como Francisco Alvim e Ana Cristina Cesar, sua aversão à vida dita literária e a grupos, assim como a discrição e simplicidade de seu livro de estreia, fizeram com que seu trabalho só recebesse maior atenção na década de 90. Outros quinze anos se passariam até a publicação do seu terceiro e mais recente volume, o belo Onde o céu descasca (2011), que comprova sua singularidade dentro da poesia contemporânea brasileira. A sua é uma poesia logopaica, uma textualidade que segue a música do pensamento. É cosa mentale, mas escandida no tempo, sonoramente. Percebe-se seu apreço por Wallace Stevens, que como ela escreveu sobre um mundo que apenas através da linguagem pode ser percebido, apreendido, fazendo com que mundo e linguagem imiscuam-se, tornem-se inseparáveis. Neste aspecto, sua poesia pode ser conectada a de outra mulher, a paulista Orides Fontela (1940-1998), ou ainda à da norte-americana Laura Riding (1901-1991).

O mundo contemplado, observado, mostra-se em máscaras de linguagem, memória e percepção sensorial - mas sem fronteiras claras entre elas. Em poesia desta natureza, a própria linguagem se torna o sexto sentido. Há uma consciência histórica ainda, que age de forma sutil, mostrando como o passado volta não apenas para latir em nossas consciências, mas para mordê-las. Os poemas exigem leitura lenta e atenta. Seu ritmo não quer fluir sem resistência, mas empedregar na língua. Suas observações podem parecer impassíveis, mas há uma calma não de resignação, e sim de compreensão.

Basta uma papel de parede descascando, em que se vê um céu artificial, ou uma foto de picos nevados vista em pleno verão do Rio de Janeiro para lançar a autora em uma meditação sobre a realidade, através do contraste entre a percepção da visão sobre uma imagem reproduzida e a percepção do tato e da audição da realidade em redor. Destes choques conflitantes entre os sentidos, surge sua cosa mentale.

Abaixo, apresentamos uma pequena seleção de seus poemas, desde textos da década de 70 a inéditos em livro publicados pela primeira vez no quarto número impresso da Modo de Usar & Co. Com poucos poemas disponíveis na Rede, alegra-nos poder apresentar aqui esta seleção.

--- Ricardo Domeneck

§

POEMAS DE LU MENEZES

DUAS CORES TINHA O GLOBO 26/09/76

MÁXIMO BRANCO
dos besourinhos miudinhos
que vieram da África pro Rio em navios
transportando cereais

e invadiram primeiro
“a orla marítima com preferência
pelos prédios de cor branca”



MÍNIMO VERMELHO
de quando o avião

sobrevoava a aldeia
e lá de cima o seu irmão

viu todos os índios
parados e nus

mas ela acenando vestida
com o mesmo vestido vermelho

“um pouco abaixo do joelho”

que usava no dia do rapto
dez anos antes


§
                                                                               
LÍNGUA

Lama seca estala sob os pés
de um povo do deserto que fala
uma língua que estala

Afina-se
alvíssima areia assoviando
finíssimo
a cada passo
nosso
seu som de seda

Aquém
de humana fala,
desde bem longe
língua também
sola do pé é

§

ESTIRPE

Índios americanos
sempre souberam:
da assimétrica junção
de uma mulher e um cão

certainly de caça ao deleite,
que a cada ereção dos seus descendentes
dentes em riste persiste e promete
apócrifo céu suculento —

o primeiro homem nasceu

Respingos dele — respingos
me irrigam

E não sei por que
com tão vasta sede
deserto tamanho cultivo

“Não sei por que
gosto tanto de areia”, ele disse
com voz onde água escondida

Não sei por que gosto tanto
de qualquer coisa que ele diga

§

TINTA DO CÉU

Toda vez que um senhor feudal
disfarçando a blasfêmia a pedido da Igreja
bradava Par le sang bleu! em lugar
de Par le sang de Dieu!

nos ouvidos dos servos
o Verbo
cor se fazia,
tingia-se de azul o sangue senhoril

Atrás
do biombo bleu, divino desde o mais
remoto alvorecer, o azul, sangue de Deus,
em sangue nobre assim se converteu

Plebeu ou nobre, bastardo
no isopor de uma embalagem de ovos,
legítimo 
em toda espécie de flor,
toda sorte de azul
do céu descende

Nômade, artesão da Distância,
diluidor de montanhas
ou sedentário, ilhado nos olhos de um pescador,
com seu frescor a tiracolo, o azul — globetrotter mor—
errando aquém dos ares
em lagos, mares, rios da Terra e do sangue,
tinta do céu é ainda

§

NEVES DE VERÃO
(NEVE SOBRE PAPEL)

“Et je connais la neige,
Autant que ma chair même
Son froment me protège
Contre les chairs que j’aime”
J. Laforgue


Na loja quente da cidade quente
atrás
de uma xerox acionada
por suadíssimo rapaz,

verás
parede que copia o frio,
cheia de chalés suiços
em chão 
de neve sobre papel

Neve de calendário no Brasil
que além de sorvete
de coco ao céu
    da boca de quem resfria o olhar...

a própria Distância promete
a quem a mira e cobiça
morrer, 
cobrir-se com ela
como galhos, pedras, telhados

§

DISTÂNCIAS INCOMENSURÁVEIS II

Grã-estrelas quebradiças
esfarelam-se na noite armazenária 
de um céu com dobradiças

Muito e pouco
distam das estrelas
e da lua terra-a-terra de strass
que sobre a mesa de um camelô o sol mela

“A BBC sonhava com tudo o que eu — mas eu
só comigo sonhava!” gritou o Sousa pelo oniaudiente
megafone estrelado instalado em sua mente

Pela TV se vê
que para atrair os índios, um espelho
foi deixado brilhando no matagal

Mas quem afasta
verdes feixes de elétrons
e penetra
no vibrante capinzal distante

— sou eu —

índio trânsfuga que acha
a trânsfuga estrela no chão

§

MASSA ESTELAR

Após questão condominial envolvendo
— vizinhazinha — versão subjetiva
 da estreiteza objetiva do encanamento predial,

atira-se exausta no sofá
e na TV 
o Cosmo vem revelar
em seu brilhante semblante
sombria faceta algo familiar:

“estrelas da morte” — superstars
dotadas de buracos negros que as devoram
até a explosão fatal
com emissão de raios gama
num raio de não sei mais qual astronômica distância
esterilizando sua inteira vizinhança estelar

— Ora, se não somos mesmo
“feitos de massa estelar” — ela considera
— Ora, se nesta vida
contraída por solidão, medo, rotina,
mais e mais não se repete
a visita germicida do universo em expansão
quando em tal canal aporto apertando este botão

(Logo, plagas do sono
— multiforme nebulosa, vizinhança bem diversa
igualmente longe e perto —
acolhem com sonhos opacos o seu eterno regresso)

§

TSUNAMI E VIZINHANÇA

Então, a mulher e a criança
seguiram uma serpente que nadou para terra firme
e conseguiram se salvar

A mulher 
era só certa vizinha a quem a mãe, antes de morrer
confiara a criança

A serpente terá sido, 
de repente, uma espécie de vizinha também
Vizinha de outra espécie

§

NEWTON E O NATAL

Na foto só aparece
um arco-íris sobre a casa
onde Newton nasceu no dia de Natal

Mas a gente o imagina lá dentro com o prisma
fazendo um raio de sol dar à luz
no quarto escuro seu próprio arco-íris

A foto é bonita como um presente de Natal
que se pudesse vida afora ganhar e desembrulhar

§

MANHÃ DE PRATA

Manhã nublada, a caminho da praia
passa-se pelo cemitério
— praia —
banhada de cruzes

Pulando
de túmulo em túmulo, escalam o céu
meninos empinando
pipas que chamadas “papagaios”
mais bonitas ficam

Alcançada a praia-praia
entre vívidos corpos nos banha a estranha
luz de Juízo Final que lá se ensaia

— Imagina
quantos íntimos ritos de autoanistia,
quantos instantâneos
autobatismos não se veriam

caso algum novo tipo de raio ou
propriedade fotocrômica da prata
nos franqueasse 
contemplar mentes ao mar

§

MONUMENTO NA NÉVOA

Deste sofá, basta em geral erguer os olhos para achar
a estátua magnânima no alto
da floresta magnífica

Hoje, porém, quem olhar para cima
nem sombra do Filho de Deus verá; um turista extraterrestre
duvidará da sua presença lá
como alguns humanos duvidaram já da existência do mar
e outros apostam ainda que na Lua não pisamos

Enquanto nos descortina
a China no Rio de Janeiro, o nevoeiro
talvez omita
em algum Guia Instantâneo para Marcianos
a existência do Cristo de concreto...
invisibilizado tão perfeitamente que suspende
minha descrença de rotina

O corpo vivo, a carne do Redentor
terá nascido de raro tipo de poder-de-esconder
análogo (no mínimo) à névoa que no momento,
além do seu monumento, envolve
um trio espremido neste sofá para dois
— o marciano, eu, você

§

RIO CONGELADO

Raro Rio frio: 
em manhã marinha do Leblon
na esquina da Delfim com Rainha Guilhermina
beleza do Real — ferina — urdida em azul onipresente
violado por bandeiras de alerta vermelhas, amendoeiras tremeluzentes...
latões de lixo laranja, passantes, velas ao longe
e — sim — um perfeito senão: 
este cão
preto com pata
engessada — quebrada? torcida? Cão manco
em preto e branco no coração da realidade hipercolorida
Tudo tão vívido engendrado pelo DJ do Acaso
que nenhum disco de Newton 
jamais irá girar e gerar
saldo amnésico
síntese cinza

§

UM RIO CHINÊS

Nessa baía
tantas baleias evoluíam que um belo dia
ao pé do Morro da Urca, ampla matança tornou de vez
Praia Vermelha a areia

Nessa baía que a pele repele
a gente hoje só se banha
em teoria:
só os olhos
no azul se molham
e encharcados de telescopia
a linha do bondinho puxam até a China —

até penedos verde-jade primos do azulíneo
Pão de Açúcar daqui — antes batizado Pote de Manteiga
no café da manhã de gigante
do viajante Léry

Primos chineses
próximos-distantes
também da altibaixa
sinfonia do “mar de morros”
em Minas — China de cá —
que em meio a névoa e melancolia
o pincel de Guignard soube orquestrar

§

LUZES AO LONGE
(ABRIL DE 2003)

Agora, é como se desse pedaço de vidro negro
com que pintores monocromatizam reduzindo
a tons, só tons a paisagem
(“vidro de Claude”)
vasta mortalha derivasse, nuvem íntima
da tinta que o polvo-mor tanto aspira,
petróleo

derramado sobre as 1001 cores de Bagdá
respingando
o Rio
da vida inteira quando na fila dos alvos de cá
sua vez
chegar enegrecendo o Corcovado verde-jade
enegrecendo
palmeiras e azulejos do passado árabe-português
enegrecendo
o Pão de Açúcar — sonho celeste chinês,

de tal maneira que não possas mais
preferir ver ao anoitecer
“noite, esperança e pedraria” através
do amado verso de Mallarmé
(teu vidro de Mallarmé)
porque
só em tempo de paz
segregam esperança as reentrâncias da pedraria;
só em tempo de paz
luzes ao longe — algum remoto bem
anunciam mesmo a quem o desespero tangencia

§

BRILHO DE ALMAS

Alma, obsoleta
medida demográfica vigente
nas povoações brasileiras de outrora.

Hoje sobrevivente
quando anoitece, quando se acendem
as lâmpadas das casas
e reanimam-se as cidadezinhas
repovoadas
de almas que luzem ao longe — ao largo da estrada.

Não luzem
na mondrianesca quadriculescência da urbe,
no boogie-woogie noturno tão belo da urbe
ou em qualquer refulgente
favela nela incrustada.

Gente demais
apaga a lâmpada da alma
— ela ao redor
requer
vazio que reacenda
a sua aura — elétrica na era
da reprodutibilidade eletrônica.

Chama para a qual
é clara condição
a solidão
chama-se alma.

§

COMPASSO-CORPO

Como o compasso-corpo de um camelô que na praça
traça círculos de carne em torno de si,

ou curva tesoura
para poda curvilínea de jardim japonês

é e não
da ordem do Corpo

esse Midas fugaz que em nós
mesmos nos muda

Um modo
de estar no instante o propicia

Um uno e elástico
modo que ao milímodo mundo se alia

§

COMO CASA JAPONESA

— Alma —
como casa japonesa
leve sejas

Possa em volta de ti
— a cada instante, a cada gesto —
haver
não falta ingrata, mas vazio tutelar
com valor similar
àquele ao redor
das coisas no país
“do sol nascente”

Possa em volta de ti
properar
como sol nascente
o vazio
como elogio
ao puro ato
de estar no espaço,
ser, existir, respirar

E corpo — quem me dera —
alimentando o esprit de finesse de um gastrônomo esguio
nutrisses tal vazio;
quem me dera em alta — a alma — assim mantivesses

§

O QUE SE JUNTA À GEMA
(A Aníbal Cristobo)

Se quando se frita um ovo
o que se junta à gema — além de sal —
é pensamento,

pode-se então tudo juntar, juntar até
a lembrança de outra gema

descoberta
por um teleaventureiro
munido de savoir faire irrestrito

ou bom farsante dublê
de guia intrépido do inóspito, mas
who cares?

Gema de ovo de corvo
em alto penedo disposto
e alcançado
a duras penas...

Tanto que após fritá-lo
sobre nua pedra quente no deserto do Colorado,
este homem confessou ter ingerido
“mesmo sem sal”
o ovo
mais delicioso da sua vida
— o qual
de metáfora nos sirva
sabendo, decerto, a sal do deserto,
sal do difícil
— íntimo, pessoalíssimo —

§

ESCAFANDRO PARA NARCISO

No século das luzes, assombrou um luminar da razão
que até no fundo do oceano, “onde o olho humano
raramente chega”,
chegasse a beleza
Hoje
com nosso olhar extra-humano
em troncos rochas seixos nuvens,
em vasos sanguíneos
mergulhando
fundo
— tão fundo que via mapas
de Sherazades-geômetras
chegamos
ao âmago, aos mananciais
de arabescos fractais —
hoje mais
que a própria
serpenteante
beleza recém-nascida
(proliferando sob medida
de transbordante em transbordante
represa incontida)
intriga é que ela ostente
a cada autossemelhante
salto da sua
correnteza de surpresas,
essa razão
inesgotável, uma razão
obsessiva
como se
não de um século, e sim
de todos, de tudo
do“duro cerne da beleza”
jorrassem já as luzes

§

UMA NOVA BELEZA
(A Pedro Meirelles)

Compreende-se por que
depois de conhecer a “magnífica desolação” da Lua
o astronauta nunca mais se queixou
do tempo que faz

Descoberta a beleza sideral da Terra através
do espelho lunar — oxalá nosso futuro
não apareça nessa arquiadmirada
bola de cristal — de perto, empoeirada
sem cheiro, sem atmosfera, sem nada além de crateras

Quando o dedo da moça do tempo na TV
roça a face azul da Terra apontando lugares
e a música do tempo toca enquanto se sabe
que o planeta terá frentes frias e quentes
canícula neve tufões tempestades...

e na vasta colcha mutante são emendados
os céus de rosas os céus nublados
o sol brilhando as nuvens pingando sobre grandes cidades
— Londres Lisboa Tóquio Los Angeles...
Rio de Janeiro Madri Istambul Buenos Aires

— tudo junto gera
sensação estranha — lágrima impessoal climática
que rola pelo ser afora
como as profecias da meteorologia contornando
a bola de sonho em que dia após dia acordamos

§

FELLINI E A AURA RUANTE

O pavão abrindo o leque
se chama “ruante”

 É como toma
a tela inteira de Amarcord
transbordando
 em lento-imenso instante

Eu queria agora
um poema assim

Semelhante 
àquele navio esplendoroso 
irrompendo 
como um sonho inebriante   
  
 ― um navio ruante ―
                                                                       
Um poema assim
 eu queria agora 

(só com meia mea culpa se meio ruim) 

§

SURSIS
(com c. Veloso) 

Brasil do triste extravio 
No Rio de dezembro de 1973 
o avesso da neve ressoa em inglês 
in the hot sun of a Christmas day 

Calçando meias de led fosforescentes 
alheias ao ranger das botas 
palmeiras 
são como sempre 
inocentes 

Cúmplices da maresia 
aromas 
de marijuana e patchouli 
o Natal não policia 
L’air du temps tem seu sursis

§

FLASH FORWARD 
(com B. dylan) 

Knocking on heaven’s door 
knock knock knockin’ 
aos trinta aos sessenta aos cem 

alguém se cansa 
outra sorte de desejo 
bate forte em sua porta 

o desejo de outra sorte 
sem Terra sem céu 
sem estrela nenhuma à vista 

Nada além do puro Nada 
- esse horizonte - 
de perfeição inaudita

.
.
.


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