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Excerto de "Deus-dará", romance em curso de Alexandra Lucas Coelho

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A Modo de Usar & Co. publica com exclusividade um excerto de Deus-dará, romance em curso de Alexandra Lucas Coelho, lisboeta nascida em 1967 e autora dos romances E A Noite Roda (Lisboa: Tinta-da-China, 2012) e O Meu Amante de Domingo (Lisboa: Tinta-da-China, 2014).


Deus-dará (excerto)

                                                                    15:00, Cosme Velho


Gonadotrofina coriônica humana, anota Noé, céu branco de onde ela o vê, quase à altura do Corcovado. Coisa de favela mesmo: chiado de rato, um calor de matar e a melhor vista do Rio de Janeiro.
Ela já anotara vários nomes até chegar a esse: a hormona que só um embrião gera, detectável na tirinha ensopada, uma linha, negativo, duas linhas, positivo, qual a menina que não foi na farmácia com a amiga, esperou a urina da manhã, ficou lá no banheiro, copinho na mão, todo o peso nos joelhos, 240 mil imagens na cabeça, um filme acelerado dez vezes. Poema-foda tem que ser o filme na cabeça dessa menina, pensa Noé, ainda segurando o folheto do teste de gravidez, camiseta com versos de Leminski à altura do umbigo


(Isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além).



Está a escrever um filme desde ontem à noite, quando a segunda linha apareceu na tirinha dela, nem esperou a urina da manhã.
Desde Setembro que só pensava na chacina dos seis garotos na Baixada Fluminense, Christian, Douglas, Glauber, Josias, Patrick, Victor Hugo, auxiliares de pintores e de pedreiros entre 16 e 19 anos: num sábado saem de um campeonato de pipa para uma trilha de cachoeira que além de tatus, pacas e guatiricas está cheia de traficantes; confundidos com membros de uma facção rival, são sequestrados, torturados, mortos e enterrados; os corpos aparecem nus, de mordaça na boca, enrolados em lençóis; têm cortes no pescoço, marcas de pancada com objectos, cada um levou três a cinco tiros; para o funeral embrulham-nos em bandeiras tricolores. Porque isso de o Flamengo ser o clube do povo é quando é, eles eram fanáticos do Fluminense e moravam no bairro de Cabral, Nilópolis. O que há de mais notório sobre Nilópolis é ser sede da Beija-Flor, a escola que ganhou o Carnaval de 2011 com Roberto Carlos de azul e branco no cimo do último carro


(Meu Beija-Flor chegou a hora

de botar pra fora a felicidade

da alegria de falar do Rei!).


Centenas de milhões sambam com a Beija-Flor; televisões, cervejas, bancos facturam milhões; depois sambistas, passistas, porta-bandeiras, toda a bateria, umas quatro mil pessoas no total, voltam a Nilópolis para viver o resto do ano, cruzam-se na rua com os Christian, os Douglas, os Glauber, os Josias, os Patrick, os Victor Hugo, eles são os garotos do vizinho, do tio, do primo, do irmão, os próprios filhos. Onde estava no Carnaval de 2011 aquela mãe que no sábado da chacina foi procurar o filho e ouviu de um jovem trafica: “Tia, vou ser sincero, o Foca enterrou ele na mata.” Fora recém-chegados, todo o mundo se conhece num bairro de Nilópolis, nome tão brasileiro quanto Moisés ou Washington, e que garoto não gostaria de ressuscitar Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira?


(O futebol é a quadratura do circo

é o biscoito fino que fabrico

é o pão e o rito o gozo o grito o gol

salve aquele que desempenhou

e entre a anemia a esperança

a loteria e o leite das crianças
se jogou
com destino e elegância dançarino pensador

sócio da filosofia da cerveja e do suor

ao tocar de calcanhar o nosso fraco a nossa dor viu um lance no vazio herói civilizador

(o Doutor))


Ser bom de bola no Brasil é o grande lance contra acabar enterrado pela polícia, pela milícia, por algum tribunal do tráfico antes dos 20. A violência é a principal causa de morte antes dos 20 no Brasil, e a Baixada Fluminense é a região mais violenta do estado do Rio de Janeiro, Noé conhece as pesquisas: grupos de extermínio pagos por empresários que querem segurança, disputas de território pelo que a Olimpíada move, absorção de traficantes em fuga, tudo isso está no que ela tem anotado desde Setembro.
Mas ontem à noite apareceu essa segunda linha na tirinha do teste, e depois a aceleração de partículas que desencadeou o filme, nem pânico nem euforia, uma clareza extrema.
Como a mãe ia dormir cedo para levantar de madrugada, Noé só contou a Gabriel, logo dizendo que não era drama nenhum, faltava um trimestre para a gradução, ele estava mudo. Aí perguntou se era isso mesmo que ela queria, ela respondeu que era a última coisa que planeara, trepada de um dia que parecia sem risco, besteira de pôr e tirar camisinha, nem ficou ligada quando a menstruação atrasou, comprou o teste de farmácia no automático, queria descartar essa hipótese antes de ir ao médico. Mas no momento em que viu a segunda linha teve a certeza, não houvera plano e não havia dúvida: ia ter esse bebé.
Gabriel quis saber se o cara era alguém que ele conhecesse, ela disse que não, galera da PUC, amigo de amigo, tinham-se conhecido numa festa, fumado uns, bebido pra caramba, acabaram na casa do pai dele em São Conrado, um negócio no meio da floresta, ela acordara com um toc-toc na varanda, quando foi ver era um tucano, caraca, nunca vira um tucano no Rio de Janeiro, um tucano batendo na porta com aquele bico, parecia um intervalo no tempo, só ela e o tucano por um segundo, e ele sumiu num abrir de asas como se viesse só para ser visto, nem um rasto no céu. Ela ficou olhando os parapentes descendo da Pedra Bonita, apanhou a roupa no chão sem acordar o cara, um gato, quase grego, lindo demais, foi pela estrada das Canoas até achar um ônibus, e nesse dia mesmo o gato achou-a no Facebook, mandou mil mensagens, ela é que dera um gelo, fazia tempo que não trepava, tinha sido até bom mas não queria ficar trepando. Não queria ficar trepando ou não queria ficar trepando com ele, perguntou Gabriel, ela repetiu que não queria ficar trepando, tirava muita energia dela, estava bom de vez em quando.
Gabriel disse que ela tinha que ter ouvido a conversa que ele tivera antes dessa, ela perguntou se tinha sido com a dama do Cosme Velho, ele disse que a dama parecia nascida para trepar, ela disse maravilha, só não era a sua praia, tanta coisa para fazer. É, disse ele, por exemplo, criar um filho aos 21 com graduação por terminar, mestrado emendando em doutorado, uma arca de poemas na cabeça, fora a revolução.
Noé respirou fundo, perguntou se Gabriel já engravidara alguma mulher além da mãe do filho dele, ele respondeu que sim, duas vezes que soubesse, as duas tinham decidido tirar antes mesmo de falar com ele, ela perguntou onde, ele respondeu uma no Rio e uma em Lisboa fazia pouco tempo, ela perguntou se ele tinha ido junto, ele respondeu que em Lisboa não, a moça tinha família em Portugal e o aborto era legal lá, mas no Rio sim, tinham acabado no Miguel Couto com uma hemorragia depois da abortadeira, a moça morrendo de medo que a denunciassem.
Noé disse que essa era só uma das razões para fazer uma revolução nesse país que vive ligado em sexo mas persegue mulher que aborta e botou na presidência uma ex-guerrilheira que fica puxando o saco dos evangélicos sem coragem de dizer que aborto é questão de saúde pública.
Gabriel perguntou se não seria melhor pensar um pouco, exactamente porque aborto para ela não era uma questão moral, pensar em tudo o que tinha para fazer, em como esse bebé ia ser criado, no cara com quem ainda ia ter de falar, ela não achava? Noé disse que sempre achara que nunca ia engravidar, que talvez por isso tivesse deixado pra lá a camisinha, que se agora tirasse o bebé não correria mais o risco. Portanto talvez tivesse de acontecer agora, esse era o bebé que seria para ela ter. E, sim, ia falar com o cara justo por isso, pra lhe dizer que com ele ou sem ele faria tudo o que era pra fazer, graduação, mestrado, doutorado, filme da chacina da Baixada, a própria da revolução e criar esse filho.
Então vamos lá, pensa Noé, amarrotando o folheto do teste de gravidez, camiseta Leminski colada nas costas


(Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha).


Que putacalor, Dezembro.


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