Republicamos aqui o conto do escritor paquistanês Saadat Hasan Manto (1912 - 1955), na tradução e com a introdução de Victor Heringer.
Saadat Hasan Manto foi um escritor paquistanês, considerado um dos maiores contistas da Ásia. Nascido em Punjab, quando ainda era território da Índia britânica, Manto foi testemunha da Partição, que em 1947 dividiu o subcontinente (o Hindustão), dando origem ao Paquistão e ao moderno estado da Índia. “Toba Tek Singh” (1955) é um de seus contos mais conhecidos, cujo título faz referência a uma cidade real do Punjab paquistanês, batizada em homenagem a um santo sikh. Minha versão para o português teve como base a tradução de F.W. Pritchett e a edição da South Asian Citizens. Escolhi manter as falas da personagem principal no “original”, uma mistura de urdu e punjabi, traduzindo somente as partes em inglês.
--- Victor Heringer
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CONTO DE SAADAT HASAN MANTO
Toba Tek Singh
Dois ou três anos após a Partição, os governos do Paquistão e da Índia decidiram que, assim como os criminosos, os loucos também deviam ser trocados: isto é, os lunáticos muçulmanos que estavam nos hospícios da Índia deviam ser enviados ao Paquistão, e os hindus e sikhs nos hospícios do Paquistão deviam ser confiados aos cuidados da Índia.
Se foi uma ideia sábia ou tola, ninguém dirá; em todo caso, a decisão foi tomada por pessoas estudadas e, depois de muitas reuniões de alto escalão, uma data foi marcada para a troca dos lunáticos. Os loucos muçulmanos com parentes na Índia poderiam permanecer lá, o restante foi mandado para a fronteira. Aqui no Paquistão, visto que quase todos os hindus e sikhs já tinham ido embora, nem se pensou na questão. Todos os lunáticos sikhs e hindus foram levados até a fronteira, escoltados pela polícia.
Não havia como saber o que estava acontecendo do lado indiano. Mas aqui no hospício de Lahore, quando a notícia da troca se espalhou, começaram as discussões. Um louco muçulmano que há doze anos lia diariamente o Zamindar foi abordado por um amigo, que perguntou: “Molbi Sa’b, o que é esse ‘Paquistão’?”. Depois de muito pensar, ele respondeu: “É um lugar na Índia onde se fabricam navalhas”.
O amigo ficou satisfeito com a resposta.
Do mesmo modo, um louco sikh perguntou a outro louco sikh: “Sardarji, por que vão nos mandar para a Índia? Nós não sabemos falar a língua desse lugar.”
O outro sorriu: “Eu conheço a língua desses hindustontos ─ esses hindustanos andam empertigados como o demônio!”
Um dia, enquanto se banhava, um lunático muçulmano gritou “Vida longa ao Paquistão!” com tanta força que escorregou e caiu desmaiado.
Também havia alguns loucos que não eram loucos. Muitos desses eram assassinos cujos parentes subornaram as autoridades para que fossem mandados ao hospício, em vez da forca. Eles entendiam mais ou menos por que o Hindustão fora dividido e o que era o Paquistão. Mas também ignoravam a situação atual. Não saía nada nos jornais. Os guardas eram analfabetos e rudes, não havia como tirar nenhuma informação deles. O que se sabia era o seguinte: há um homem, Muhammad Ali Jinnah, que o povo chama de “Qa’id-e Azam”. Ele fez um país separado para os muçulmanos, e o nome desse país é Paquistão. Onde fica, qual a localização ─ isso eles não sabiam. Por isso, no hospício, os loucos que não eram completamente loucos viviam um dilema: estavam no Paquistão ou na Índia? Se estivessem na Índia, então onde ficava o Paquistão? Se estivessem no Paquistão, como é que podia? Não tinham mudado de lugar, e aquele lugar ali era a Índia.
Um dos loucos se perdeu tão fundo no círculo do Paquistão e da Índia, e da Índia e do Paquistão, que ficou ainda mais louco. Um dia, enquanto varria o chão, resolveu subir numa árvore e, sentado num galho, proferiu um discurso de duas horas sobre a delicada questão Paquistão-Índia. Quando os guardas o mandaram descer, ele trepou ainda mais alto e disse “Eu não quero viver nem no Paquistão, nem na Índia. Vou viver aqui mesmo nesta árvore.”
Foi difícil fazê-lo descer, mas uma hora o ardor passou. No chão, o louco abraçou seus amigos hindus e sikhs e chorou. A ideia de vê-los partir para a Índia enchia seu coração de tristeza.
Um mestre em radioengenharia, que era muçulmano e costumava passear o dia inteiro no jardim, completamente afastado dos outros loucos, também sentiu a mudança. Ele tirou a roupa toda, deu a um dos guardas e passou a andar nu.
Havia um louco corpulento de Chiniot, membro fervoroso da Liga Muçulmana, que se banhava quinze ou dezesseis vezes por dia. De repente, abandonou o hábito. Como seu nome era Muhammad Ali, um dia proclamou ser ele próprio o Qa’id-e Azam Muhammad Ali Jinnah. Imitando a loucura alheia, um lunático sikh prontamente se tornou o Master Tara Singh. O caso quase terminou em banho de sangue, mas os dois foram declarados “loucos perigosos” e trancafiados em quartos separados.
Outro louco, este um advogado hindu, perdeu a razão após uma rejeição amorosa. Quando soube que Amritsar era agora uma cidade da Índia, ficou desolado. A garota por quem ele havia se apaixonado era de lá e, mesmo depois de rejeitado, mesmo louco, o advogado jamais a esquecera. Por isso, ele xingava todos os líderes hindus e muçulmanos responsáveis pela divisão do Hindustão em duas partes ─ sua amada se tornara indiana e ele, paquistanês.
Quando começou a conversa sobre a troca dos loucos, muitos tentaram consolar o advogado. Ele seria mandado para a Índia ─ a mesma Índia onde vivia a sua amada. Não precisava se mortificar. Mas o advogado não queria ir embora de Lahore, porque tinha certeza de que em Amritsar não seria um profissional tão requisitado.
Na ala dos europeus, havia dois loucos anglo-indianos. Quando souberam que os ingleses libertaram a Índia e foram embora, ficaram chocados. Passaram horas conversando em segredo, imaginando qual seria seu status no hospício dali em diante. Ainda haveria uma ala dos europeus ou seria abolida? Ainda lhes dariam café da manhã ou não? Em vez de pão, seriam obrigados a engolir os malditos chapattis indianos?
Havia um sikh que estava no hospício fazia quinze anos. Tudo o que dizia vinha num dialeto misterioso: “Upar di gur gur di annex di be dhyana di mung di daal da lanterna“. Ele não dormia, nem de dia, nem de noite. Os guardas diziam que em quinze anos nunca o viram dormir, nem por um momento. Mas às vezes, verdade seja dita, ele se escorava na parede.
Como ficava de pé o tempo todo, seus pés incharam. Os tornozelos também. Mas, apesar do desconforto, ele não deitava para descansar. Ouvia com atenção as conversas sobre Paquistão-Índia e a troca dos lunáticos. Se alguém pedia sua opinião, ele respondia com muita seriedade: “Upar di gur gur di annex di be dhyana di mung di daal do governo do Paquistão".
Mas logo a parte “do governo do Paquistão” foi substituída por “do governo de Toba Tek Singh”, e ele começou a perguntar aos outros loucos onde estava Toba Tek Singh agora, porque sua casa ficava lá. Mas ninguém sabia se se tornara parte do Paquistão ou da Índia. Quando tentavam explicar, também ficavam perplexos: Sialkot costumava ficar na Índia e agora diziam ficar no Paquistão. Quem saberia dizer se Lahore, que hoje está no Paquistão, amanhã não iria parar na Índia? Ou se a Índia inteira de repente não viraria Paquistão? Quem podia garantir que ambos, Paquistão e Índia, não desapareceriam completamente um dia?
Esse louco sikh quase já não tinha cabelos, porque ele raramente tomava banho, mas os esparsos pelos finos da cabeça se juntaram com os da barba. Era uma figura assustadora, mas inofensiva. Em quinze anos de hospício, jamais brigou com ninguém. Os funcionários mais antigos sabiam somente uma coisa sobre sua vida: ele foi um próspero dono de terras em Toba Tek Singh, até que perdeu a cabeça. Os parentes o acorrentaram e o trouxeram para o hospício. Essas pessoas vinham visitá-lo uma vez por mês, para saber como estava. Depois da confusão Paquistão-Índia, nunca mais apareceram.
Seu nome era Bishan Singh, mas todos o chamavam de “Toba Tek Singh”. Ele não fazia a mínima ideia de que dia era, nem o mês, nem quantos anos se haviam passado. Mas quando os seus vinham visitá-lo, ele parecia pressentir. Costumava dizer aos guardas que seus parentes estavam chegando. No dia, tomava um bom banho, se esfregava com sabão, passava óleo nos cabelos e se penteava, vestia roupas novas para recebê-los. Mas, durante a visita, não falava quase nada, de tempos em tempos dizia: “Upar di gur gur di annex di be dhyana di mung di dal da lanterna“.
Ele tinha uma filha, que a cada mês ganhava um dedo de altura. Em quinze anos, já se tornara uma mocinha. Bishan Singh não a reconhecia. Quando criança, ela chorava ao ver o pai; quando crescida, as lágrimas ainda corriam.
Assim que a história do Paquistão e da Índia começou, ele passou a perguntar aos outros loucos onde estava Toba Tek Singh. Sem uma resposta definitiva, sua agitação crescia. E agora nem as visitas apareciam mais. Antigamente, ele sabia quando elas estavam chegando. Mas agora era como se a voz no seu coração, que anunciava a vinda dos entes queridos, tivesse emudecido.
Seu maior desejo era que aquelas pessoas viessem visitá-lo, aquelas que se mostravam tão atenciosas, que traziam frutas, doces e roupas. Precisava saber onde estava Toba Tek Singh agora, e elas certamente diriam com certeza se estava no Paquistão ou na Índia. Porque, na cabeça dele, essas pessoas vinham da própria Toba Tek Singh, onde ficavam suas terras.
No hospício também havia um louco que dizia ser Deus. Quando um dia Bishan Singh lhe perguntou se Toba Tek Singh estava no Paquistão ou na Índia, Deus caiu na gargalhada, como era seu costume, e disse: “Nem no Paquistão, nem na Índia, porque nós ainda não demos a ordem”.
Muitas vezes Bishan Singh pediu a Deus, bajulou e implorou que desse a ordem, para que a perplexidade acabasse. Mas ele estava muito ocupado, tinha muitas ordens a dar. Um dia, irritado, Bishan Singh o confrontou: “Upar di gur gur di annex di be dhyana di mung di dal of hail a Guruji e Khalsa, e vitória a Guruji! Quem disser isso prosperará ─ o Deus verdadeiro é eternamente vivo!”
Talvez isso queira dizer: “Você é o Deus dos muçulmanos! Se fosse o Deus dos sikhs, certamente ouviria meus apelos!”
Poucos dias antes da troca, um muçulmano de Toba Tek Singh, amigo de Bishan Singh, veio visitá-lo. Ele nunca tinha vindo antes. Quando Bishan Singh o viu, virou as costas e saiu andando, mas os guardas o impediram.
“Ele veio ver você. É o seu amigo Fazal Din”.
Bishan Singh olhou para Fazal Din e começou a murmurar algo. Fazal Din se aproximou e pôs a mão no ombro do amigo. “Há muito tempo penso em lhe fazer uma visita, mas nunca conseguia… Sua família está bem; foram para a Índia… Ajudei como pude… Sua filha Rup Kaur…”
Ele parou no meio da frase. Bishan Singh puxou um fio da memória: “Filha Rup Kaur”.
Fazal Din disse, hesitante: “Sim… ela… ela também está bem… Ela foi com eles.”
Bishan Singh ficou em silêncio. Fazal Din continuou: “Eles me pediram para ver como você está, para vir de tempos em tempos. Agora fico sabendo que você vai para a Índia… Mande meus cumprimentos ao irmão Balbesar Singh e ao irmão Vadhava Singh… E à irmã Amrit Kaur também… Diga ao irmão Balbesar que os búfalos que ele deixou para trás, que um deles teve um bezerro… O outro teve uma bezerra, mas ela morreu com seis dias de idade… E… Se tiver algo que eu possa fazer por você, me diga; estou a seu dispor… Trouxe doce de arroz”.
Bishan Singh entregou o doce a um guarda que estava próximo e perguntou a Fazal Din: “Onde está Toba Tek Singh?”
Fazal Din respondeu, espantado: “Onde? Está onde sempre esteve!”
Bishan Singh perguntou: “No Paquistão ou na Índia?”
“Na Índia. Não, não, no Paquistão”, Fazal Din estava confuso.
Bashan Singh foi embora murmurando: “Upar di gur gur di annex di be dhyana di mung di dal de Paquistão e Hindustão do sai pra lá, tagarelão!“.
Tudo estava pronto para a troca dos lunáticos. As listas dos loucos que viriam de cá para lá, e de lá para cá, haviam chegado e o dia da troca estava marcado.
Fazia muito frio quando os caminhões cheios de loucos hindus e sikhs partiram do hospício de Lahore, escoltados pela polícia. Os guardas do hospício também foram. Na fronteira de Wagah, os superintendentes das duas partes se encontraram. Após as primeiras burocracias, a troca começou, e durou a noite inteira.
Tirar os loucos dos caminhões e confiá-los aos guardas do outro lado da fronteira não era tarefa fácil. Alguns se recusavam a descer. Os que desciam tentavam sair correndo. Quando punham roupas nos que estavam nus, eles logo as tiravam e jogavam longe. Alguém xingava, alguém cantava. Os loucos brigavam entre si, choravam, murmuravam. Ninguém conseguia ouvir ninguém ─ e o clamor das loucas era algo de outro mundo. O frio era tanto que todos batiam os queixos.
A maioria dos loucos era contra a troca. Não conseguiam entender porque foram arrancados de onde estavam e levados assim, sem mais nem menos, para outro lugar. Os que ainda tinham algum entendimento gritavam “Vida longa ao Paquistão!” ou “Morte ao Paquistão!”. Duas ou três brigas começaram e foram apartadas, porque muçulmanos e sikhs, ao ouvir os gritos, ficavam irados.
Quando chegou a vez de Bishan Singh, ele desceu e perguntou ao oficial do outro lado da fronteira, que escrevia seu nome num documento: “Onde está Toba Tek Singh? No Paquistão ou na Índia?”
O oficial riu e disse: “No Paquistão”.
Ao ouvir isso, Bishan Singh deu um pulo e saiu correndo para se juntar aos companheiros do lado paquistanês. Os guardas o agarraram e tentaram trazê-lo de volta, mas ele se recusava. “Toba Tek Singh está aqui!” E ele gritou tão forte, tão penetrante: “Upar di gur gur di annex di be dhyana di mung di dal de Toba Tek Singh e Paquistão!”
Tentaram persuadi-lo: “Olha, agora Toba Tek Singh foi para a Índia! E, se não foi, vamos mandar agora mesmo para lá”. Mas ele não acreditou. Quando tentaram arrastá-lo à força, ele se manteve firme, as pernas inchadas fincadas na terra, como se nada no mundo pudesse tirá-lo dali.
Como o homem era inofensivo, não usaram mais de força. Deixaram-no parado ali, enquanto a troca seguia.
Logo antes de amanhecer, quando tudo estava em silêncio e paz, a garganta de Bashan Singh soltou um grito que penetrou o céu… Alguns oficiais vieram correndo e viram aquele homem, que durante quinze anos ficara de pé, caído no chão. Ali, atrás do arame farpado, estava a Índia. Aqui, atrás do mesmo arame farpado, estava o Paquistão. Entre um e outro, naquele pedaço de chão que não tinha nome, estava Toba Tek Singh.
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