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Conto inédito de Gustavo Pacheco

Na série de inéditos, um conto de Gustavo Pacheco.



A emanação

Contam os sábios tibetanos que o Inferno é dividido em dezoito departamentos, dos quais oito insuportavelmente frios e dez insuportavelmente quentes. Esta história começa em um dos departamentos menos quentes, onde dois condenados puxam uma carroça cheia de blocos de pedra. Um tinha sido um salteador que assaltava caravanas nas estepes de Changtang, e era forte como um touro. O outro, magro e esquálido, tinha sido um monge no mosteiro de Takpu, em Nakshö Driru, e foi parar no inferno porque se esmerava em exigir dos outros o comportamento que ele mesmo nunca conseguiu ter.
Os dois infelizes se esforçam para fazer avançar a carroça, mas a coisa vai mal. A todo instante o monge tropeça e cai, exausto, e seu companheiro é obrigado a parar para ajudá-lo, interrompendo o trabalho. As pedras são usadas para construir novos alojamentos para os recém-chegados ao Inferno, que nos últimos tempos tem recebido cada vez mais gente. Não há moradias suficientes para todos e o Rei Shinje, o Senhor dos Mortos, ordenou que os condenados trabalhassem dobrado para reduzir o déficit habitacional. Os capatazes estalam seus chicotes de fogo nas costas do monge, urram e gritam, mas ele mal consegue se mexer, coberto de sangue e poeira.
Atormentado de tanto ver seu companheiro sofrer, o ladrão para de puxar a carroça e fica em silêncio, inerte. Um capataz com cabeça de cachorro se aproxima e o ameaça com um porrete cheio de pregos. O ladrão diz que só voltará a trabalhar se soltarem as correntes que prendem seu companheiro à carroça, pois assim ele poderá puxá-la sozinho e tudo andará mais rápido. O capataz, enfurecido, grita que não recebe ordens de condenados, e esmaga o crânio do ladrão com o porrete.
Como se sabe, no Inferno tibetano a danação não é eterna. Lá, é possível morrer e renascer em outro lugar. E é exatamente o que acontece com o ladrão, cuja compaixão faz com que ele reencarne, com o nome de Li Xun, em uma pequena aldeia no sul da província chinesa de Quinghai. Como ele ainda tem muitos crimes para purgar, o destino se encarrega de que ele se torne um burocrata e leve uma vida enfadonha e repetitiva.
Assim, depois de quase três décadas de uma existência incolor nos meandros do serviço público chinês, Li Xun chega aos cinquenta anos de idade na condição de funcionário nível 10, categoria 22, ocupando o cargo de Subchefe da Divisão de Regulamentação do Departamento de Budismo e Taoísmo da Secretaria Estatal de Assuntos Religiosos (SEAR).
A SEAR é o órgão da República Popular da China encarregado de supervisionar a atuação de grupos religiosos no território chinês, para garantir que atuem dentro da lei. O Departamento de Budismo e Taoísmo tem sob sua jurisdição todos os templos e associações religiosas budistas e taoístas em território chinês. Entre as muitas questões delicadas que o Departamento de Budismo e Taoísmo tem que tratar, a mais delicada é a relação com os budistas tibetanos.
Como Li Xun aprendeu assim que começou a trabalhar na SEAR, desde o Século XVII o líder espiritual e político dos budistas tibetanos é o Dalai Lama, nome dado às sucessivas reencarnações de Avalokiteshvara, o bodhisattva da compaixão. Em 1951, o exército da República Popular da China ocupou o Tibete, reivindicando soberania sobre seu território e deflagrando um conflito que culminaria com a fuga do 14oDalai Lama e seu exílio na Índia. Desde então, embora o Dalai Lama tenha perdido poder político, continua sendo considerado pelos budistas tibetanos como sua máxima autoridade religiosa, o que entra em choque com os interesses chineses.
Em julho de 2007, Li Xun recebe um memorando informando sobre a publicação da Ordem nº 5 Medidas para a Administração da Reencarnação de Budas Vivos no Budismo Tibetano. Como ele não pertence à cúpula de dirigentes, não esteve envolvido na preparação do documento, mas já tinha ouvido rumores sobre ele e a publicação não o surpreende. Não é um texto muito extenso, nem muito diferente de tantos outros documentos burocráticos: apenas quatorze artigos, que determinam, em linguagem seca, uma série de condições e procedimentos que precisam ser atendidos para que alguém seja reconhecido oficialmente como um Buda reencarnado.
Alguém poderia pensar que, mesmo para um barnabé dócil e apagado como Li Xun, deve ser bizarro ver um governo comunista e oficialmente ateu legislando sobre assuntos teológicos. No entanto, esse alguém estaria desconsiderando o longo histórico das relações entre o Dalai Lama e o governo central em Beijing, que remonta a vários séculos, e a própria visão chinesa do tempo e da história. Para uma nação que existe há mais de quatro mil anos, tem uma sólida tradição de governo centralizado e a burocracia mais antiga do mundo, a Ordem nº 5 não chega a ser um ponto fora da curva.
        Como Subchefe da Divisão de Regulamentação, Li Xun é encarregado de transmitir aos escritórios regionais da SEAR as novas regras para a administração de Budas vivos reencarnados. Ele sabe que, na prática, a Ordem nº 5não vai mudar muito o curso dos acontecimentos em território chinês. Beijing já controla de fato os rumos do budismo tibetano na China e nada acontece sem o conhecimento e a anuência do governo central. Mesmo um barnabé dócil e apagado como Li Xun sabe que o verdadeiro alvo da Ordem nº 5 é o 14oDalai Lama, que está ficando velho e, como todos nós, algum dia irá morrer.
           A comunidade tibetana fora do Tibete reage com indignação às novas regras, mas em um mundo com tantos problemas essa resistência não tem grande repercussão, nem representa ameaça alguma a Beijing. O governo chinês não tem pressa, sabe que o tempo está a seu favor. Mais alguns anos e a escolha do 15oDalai Lama será feita sob o controle total e absoluto da China.
            Quatro anos se passam, e tudo continua igual na vida de Li Xun. Ele não tem qualquer razão para supor que os rumos de sua existência mudarão drasticamente, mas é exatamente isso que vai acontecer. O 14oDalai Lama acaba de publicar uma longa e detalhada declaração explicando como seu sucessor será escolhido.
            A essência de um ser iluminado é composta por numerosos corpos, físicos e não-físicos, que constituem manifestações diversas da mesma natureza sagrada, diz o Dalai Lama. Há muitas maneiras de perpetuar essa essência, a mais conhecida das quais é a reencarnação do ser iluminado após a sua morte. Contudo, antes mesmo da morte do ser iluminado essa essência pode se manifestar em outros seres, através de um processo chamado emanação.Embora essa possibilidade não seja comum, não se trata de algo exatamente inédito na história do budismo tibetano. A emanação pode se manifestar em qualquer pessoa, a critério exclusivo do ser iluminado. Antes ou depois de sua morte, é Ele, e apenas Ele, quem pode escolher o que acontecerá com sua essência divina. Nenhuma outra pessoa ou instituição tem o direito de fazer isso.
O comunicado do Dalai Lama gera longos debates internos na SEAR. A ideia de que ele possa indicar seu sucessor antes de sua morte é algo que não havia sido previsto e ameaça toda a estratégia de sucessão concebida por Beijing. O Chefe da Divisão de Regulamentação reúne uma equipe de monges, técnicos e advogados e ordena que preparem um relatório, o mais minucioso e erudito possível, para identificar inconsistências teológicas na declaração do 14oDalai Lama. Li Xun coordena os trabalhos da equipe. Mesmo com a consciência embotada por muitos anos de trabalho no serviço público, não lhe passa despercebida a ironia de a burocracia comunista parecer muito mais preocupada com a manutenção das tradições do budismo tibetano do que o próprio líder dessa religião.
Enquanto isso, os serviços de inteligência chineses investigam todos os monges tibetanos de primeiro e segundo escalão, dentro e fora do Tibete, todos os funcionários do governo tibetano no exílio e suas famílias, e todas as pessoas próximas ao Dalai Lama, para tentar identificar os nomes mais prováveis para a sucessão. Já que o Dalai Lama demonstrou ser criativo na sua interpretação das tradições, a investigação inclui também mulheres. No fim das contas, são identificadas trinta e duas pessoas, que passam a ser seguidas vinte e quatro horas por dia. Se o Dalai Lama anunciar qualquer uma delas como seu sucessor, os serviços de inteligência a sequestrarão imediatamente.
             A elaboração do relatório sobre a declaração do Dalai Lama está em seus estágios finais. Li Xun está em sua sala corrigindo a primeira versão quando um de seus assistentes bate à porta. O Chefe da Divisão está chamando a todos para a sala de reuniões do segundo andar. Quando Li Xun chega à sala, já há duas dezenas de pessoas sentadas em silêncio em frente à grande tela onde aparece a imagem em movimento do 14oDalai Lama. Li Xun senta-se ao lado do Chefe da Divisão, que sussurra: ele convocou uma coletiva de imprensa para anunciar seu sucessor.
                 Li Xun tem um conhecimento rudimentar de inglês. Não consegue entender quase nada que o Dalai Lama diz, mas percebe que ele está falando mais de religião do que de política. As frases são entremeadas com algumas palavras e expressões em tibetano. Li Xun observa a expressão do Dalai Lama e pensa: ele parece estar sempre sorrindo. Deve ser cansativo sorrir o tempo todo.
                 Depois de quase vinte minutos falando, o Dalai Lama menciona pela primeira vez a palavra Chinae os flashes dos fotógrafos começam a estourar todos ao mesmo tempo. O Chefe de Divisão arqueia as sobrancelhas. Será que entendi bem?, pensa Li Xun. Ele disse mesmo que seu sucessor está na China? Sim, ele disse isso mesmo, é o que parece responder o olhar curioso do Chefe de Divisão, que não desprega os olhos da tela.
             O Dalai Lama continua a falar, e agora usa a palavra Beijing. Ele fala por mais alguns minutos e faz uma pausa. É então que Li Xun ouve um som muito familiar sair dos lábios do Dalai Lama: o som de seu próprio nome. Os colegas se viram para ele, começam a rir e a fazer brincadeiras.                    
              O Chefe de Divisão, que não ri quase nunca, também sorri e parece se divertir com a situação. Nos próximos dias, pensa Li Xun, as centenas de Li Xun que vivem em Beijing também vão ouvir gracinhas dos vizinhos e colegas de trabalho. O mais famoso deles, o lateral direito do Yanbian F. C., já deve estar recebendo as primeiras chamadas de jornalistas. Será que alguém também vai querer me entrevistar? Eu nunca fui entrevistado por ninguém. Mas que estranho, ele não escolheu um tibetano. Por quê?
               O Dalai Lama continua a falar, e de repente todos ficam em silêncio. Li Xun estava distraído e não ouviu o que o Dalai Lama acabou de dizer. O que houve?, ele pergunta ao Chefe de Divisão. O Chefe se vira e, ainda em silêncio, olha-o sério e concentrado, com os olhos apertados, como se fosse um médico examinando uma radiografia. Venha comigo, diz o Chefe.
               O Chefe se levanta e Li Xun o acompanha, sob o olhar mudo dos colegas. Os dois entram no elevador privativo dos dirigentes e o Chefe de Divisão aperta o botão do décimo segundo andar. Apesar de trabalhar na SEAR há mais de trinta anos, Li Xun nunca entrou neste elevador nem esteve no décimo segundo andar, mas sabe muito bem aonde está indo: ao gabinete do Diretor Geral.
             Li Xun sente o coração bater mais rápido e se lembra, mais uma vez, que dois anos antes o médico havia ordenado que ele parasse de fumar e cortasse a comida gordurosa. Seu tio e seu avô morreram de infarto do miocárdio. Talvez eu não tenha a mesma sorte, pensa Li Xun. Não sei o que está acontecendo, mas a chefia também não sabe. Eles vão me investigar e não vão encontrar nada, porque não há nada a encontrar. Ou há? Eu só estive no Tibete duas vezes, a última vez há três anos, e sempre acompanhando o Chefe de Divisão o tempo todo. Mas isso não quer dizer nada, eles sempre podem inventar alguma história e meter uma bala na minha nuca antes do resto do mundo ficar sabendo.
              Todos os seres humanos, ou pelo menos os seres humanos adultos e em pleno gozo de suas faculdades mentais, têm consciência de que vão morrer um dia. Apenas uma minoria, contudo, tem capacidade de entender as implicações brutais desse fato e viver de acordo com esse entendimento. Li Xun acaba de se juntar a essa minoria. Suando frio em pé no elevador, ele enfim se dá conta de que vai morrer, e bem mais cedo do que esperava. Embora a viagem de elevador dure apenas alguns minutos, este é um daqueles momentos em que, por força das circunstâncias, o tempo se comporta de forma caprichosa e permite que Li Xun passe em revista sua vida inteira. As décadas de trabalho no serviço público vêm à sua mente, e o que ele vê são centenas, milhares de dias muitíssimo parecidos uns com os outros, idênticos como grãos de areia que escorrem em uma ampulheta, sem grandes dores, sem grandes amores. Como acontece com tanta gente, a eminência da morte provoca em Li Xun a descoberta de que ele poderia ter vivido sua vida de forma diferente. Como acontece com tanta gente, Li Xun entende também que essa descoberta chegou tarde demais.
O Diretor Geral tem todas as razões para desconfiar de Li Xun, mas ao vê-lo entrar em sua sala uma estranha e instantânea simpatia brota em seu coração. Acontece que o Diretor Geral não era outro senão a reencarnação do monge que puxava a carroça no começo desta história, e um lampejo de consciência consegue transpor o véu do esquecimento e chegar à sua mente. É assim que, em vez de ordenar a execução sumária de Li Xun, o Diretor Geral determina que ele fique em prisão domiciliar enquanto seu caso é analisado.
O assunto é levado até o Conselho de Estado. O Diretor Geral defende a ideia de que, ainda que não esteja claro porque o Dalai Lama escolheu um burocrata chinês como seu sucessor, não há qualquer possibilidade de Li Xun se comportar contra os interesses chineses. Trata-se de um funcionário modelo, sem qualquer mancha em sua longa e disciplinada carreira no serviço público. Na verdade o Dalai Lama nos poupou tempo, diz o Diretor; em vez de escolhermos uma criança qualquer como sucessor e treiná-lo por anos para que ele possa desempenhar suas funções do jeito que queremos, temos alguém já treinado, de total confiança, alguém que fala chinês, conhece os rudimentos do budismo tibetano e está acostumado a lidar com seus praticantes. O que mais poderíamos desejar?
Naquela noite, Li Xun sonha com o 14oDalai Lama. Ele acorda no dia seguinte confuso e não tem certeza se entende ou se acredita em tudo o que o Dalai Lama lhe disse. Mas, no meio de sua confusão, ele sente brotar uma sensação familiar e tranquilizadora: a serenidade de quem não tem outra opção a não ser cumprir ordens.



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sobre o autor

Gustavo Pacheco nasceu no Rio de Janeiro em 1972. É doutor em antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ. Traduziu as Águas-fortes cariocas de Roberto Arlt (Ed. Rocco, 2013) e as Prosas apátridas de Julio Ramón Ribeyro (Ed. Rocco, 2016). Diplomata de carreira, trabalhou nas Embaixadas do Brasil em Buenos Aires e na Cidade do México. Publicou contos nas revistas Lado 7 (Rio de Janeiro) e Coyote (Londrina) e na revista virtual Flaubert.

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