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Lúcio Cardoso (1912 - 1968)

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Lúcio Cardoso foi um poeta, dramaturgo e prosador brasileiro, nascido em Curvelo, Minas Gerais, a 14 de agosto de 1912. Um dos autores mais importantes surgidos e ativos nas décadas de 30, 40 e 50, ainda que a historiografia literária do país, por muito tempo, tenha relegado à margem o trabalho de escritores como Cardoso, ou ainda Cornélio Penna e Rosário Fusco, por não se enquadrarem na estética hegemônica do período, com o neorrealismo (excelente) dos regionalistas. Seu trabalho mais conhecido é sua prosa, especialmente com a obra-prima Crônica da Casa Assassinada (1959), mas o autor deixou duas coletâneos de poemas, Poesias (1941) e Novas Poesias (1944), além de inéditos mais tarde reunidos em Poemas inéditos (1982). Esta última publicação ocasionou um ensaio interessante de José Paulo Paes sobre o mineiro. Sua obra poética foi reunida em Poesia Completa (São Paulo: Edusp, 2012), com organização de Ésio Macedo Ribeiro, que já havia dedicado um livro ao autor, seu O Riso Escuro ou O Pavão de Luto: Um Percurso pela Poesia de Lúcio Cardoso, lançado pela NankimDiário Completo (1961) de Lúcio Cardoso é também uma leitura fascinante. O escritor mineiro morreu no Rio de Janeiro, a 28 de setembro de 1968.


"Estranho dom: Deus deu-me todos os sexos."
Lúcio Cardoso, Diário Completo

Numa época que prezava (e ainda preza tanto) pela secura e o mito da objetividade pura, as acusações mais frequentes ao trabalho de Lúcio Cardoso são a de uma estilização exagerada em sua linguagem. Em seu belo ensaio "On style", Susan Sontag trata deste desafio crítico, que por vezes acaba por ver uma espécie de desonestidade em trabalhos que transfiguram, em suposta demasia, a realidade pela linguagem, ou que não a tratam de forma que certos críticos e ideólogos quereriam direta, sem filtros. Quando se usa o adjetivo "impressionista" para um grande escritor como Raul Pompeia, por exemplo, sente-se aí o mesmo preconceito - e falácia. Coincidência serem ambos homossexuais, os primeiros autores visíveis abertamente homossexuais da literatura brasileira? Seria tentador recorrer a Sontag aqui, mais uma vez, e pensar no conceito de camp em literatura. Mas isso poderia ser, concordaria, desencaminhador. Eu prefiro pensar na ideia de travestir da linguagem. Para homens e mulheres como Raul Pompeia ou Lúcio Cardoso, muito do que é tido como natural é visto pelo que é para eles: uma construção hegemônica. A realidade, para estes homens e mulheres, vem inevitavelmente tingida de violência psicológica. Daí, a maior violência de linguagem em autores como Pompeia, Cardoso ou, mais recentemente, Roberto Piva. Esta discussão, no Brasil, é perigosa, pois é vista por alguns críticos e ideólogos como mero efeito colateral do politicamente correto, temerosos que são de um possível revisionismo do cânone. Estou tentando tratar disso em um ensaio mais detido sobre o trabalho de Pompeia, Cardoso e Piva. 



Montherlant diz — e não pode haver testemunho mais insuspeito — 
que o homossexualismo é 'a própria natureza'. No que tem razão, 
pois no ato de duas pessoas do mesmo sexo se unirem, há um esforço 
da natureza para se realizar até mesmo sem os meios adequados.
Lúcio Cardoso, Diário Completo


A conversa é complicada, estou ciente disso, já que é certo que outros escritores utilizam esta violência de linguagem por outras causas e consequências. Mas me parece uma conversa válida e necessária. 

Apresentamos aqui alguns poemas de Lúcio Cardoso, seguidos de um ensaio de Ésio Macedo Ribeiro, analisando o poema "A casa do solteiro".

--- Ricardo Domeneck

§

TEXTOS DE LÚCIO CARDOSO

Amanhecer

A noite está dentro de mim,
girando no meu sangue.
Sinto latejar na minha boca
as pupilas cegas da lua.
Sinto as estrelas, como dedos
movendo a solidão em que caminho.
Logo o perfume da poesia
sobe aos meus olhos trêmulos, cerrados,
ouço a música das coisas que acordam
sôbre o corpo negro da terra
e a voz do vento distante
e a voz das palmeiras abertas em raios
e a voz dos rios viajantes.

E a noite está dentro de mim.
Como um pássaro,
meu sonho ergue as asas no coração da sombra.
Ouço a musica das fiôres que tombam,
o tropel das nuvens que passam
e a minha voz que se eleva
como uma prece na planície solitária.

Então sinto a noite fugindo de mim,
sinto a noite fugindo dos homens
e o sol que avança na garupa do mar
e as nuvens curvas que enchem o céu
como grandes corcéis de fogo côr-de-rosa
desaparecendo sugados pela treva.

§

“Que é o pra sempre senão o existir contínuo e líquido de tudo aquilo que é liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em praias de sensações também mutáveis? Inútil esconder: o para sempre ali se achava diante dos meus olhos. Um minuto ainda, apenas um minuto – e também este escorregaria longe do meu esforço para captá-lo, enquanto eu mesmo, também para sempre, escorreria e passaria – e comigo, como uma carga de detritos sem sentidos e sem chama, também escoaria para sempre meu amor, meu tormento e até mesmo minha própria fidelidade. Sim, que é o para sempre senão a última imagem deste mundo – não exclusivamente deste, mas de qualquer mundo que se enovele numa arquitetura de sonho e de permanência – a figuração de nossos jogos e prazeres, de nossos achaques e medos, de nossos amores e de nossas traições – a força enfim que modela não esse que somos diariamente, mas o possível, o constantemente inatingido, que perseguimos como se acompanha o rastro de um amor que não se consegue, e que afinal é apenas a lembrança de um bem perdido – quando? – num lugar que ignoramos, mas cuja perda nos punge, e nos arrebata, totais, a esse nada ou a esse tudo inflamado, injusto ou justo, onde para sempre nos confundimos ao geral, ao absoluto, ao perfeito de que tanto carecemos.”

(de Crônica da Casa Assassinada)

§

Receita de homem

Depois deve ser alto,
sem lembrar o frio estilo da palmeira.
Moreno sem excesso para que se encontre
tons de sol de agosto em seus cabelos.
E nem louro demais para que, de repente
no olhar cintile algo da cigana pátria adormecida.
E que tenha mãos grandes, para demorados carinhos
e adeuses que se retardem ao peso do próprio gesto.
Pés grandes, também, por que não,
para que os regressos sejam breves
e haja resistência para as conjuntas caminhadas.
Os olhos falem, falem sempre, falem
de amor, de ciúme, de morte ou traição.
Mas que falem. Porque o homem sem a música dos olhos
é como sepultura exposta ao sol do meio-dia.
E que o riso relembre um pouco da infância,
para que se tenha, no fervor do beijo,
uma memória de pitanga e amora esmagadas
Ah, o corpo! Sucedam alvoradas ao longo do tórax gentil,
e escureça a penugem até o sexo velado.
(Mas não definitivamente.)
E o seu passo lembre a dança, mas com firmeza,
e o seu rastro fale de perfume, sem perfume
e escorram pausados rios em seus flancos hieráticos.
E que ele cante, sem cantar
por toda a sua humana contextura,
para que também em torno dele as coisas cantem,
quando, como o primeiro homem,
nu ele se erguer defronte ao mar.

§

Poema do ferro e do sangue

Esqueceram os campos revolvidos
onde vegetam perdidos
os ossos obscuros
calcinados
de dez milhões de mortos.

Esqueceram as cruzes improvisadas
erguendo para o alto
preces de galhos retorcidos.

E esqueceram o rumor das granadas
revolvendo a terra e os vivos
devorando os mortos
destruindo.

§

INTRODUÇÃO À POESIA COMPLETA DE LÚCIO CARDOSO

Ésio Macedo Ribeiro

          Injustamente deslembrado da memória editorial do mercado brasileiro, em boa hora a Editora da Universidade de São Paulo relança a obra poética completa de Lúcio Cardoso.


De imediato, convém mencionar que, não querendo me repetir, dizendo o que escrevi no livro O Riso Escuro ou o Pavão de Luto: Um Percurso pela Poesia de Lúcio Cardoso, trabalho inteiramente voltado à poesia cardosiana e cuja referência mencionei ao início da “Apresentação” da edição crítica da Poesia Completa, achei por bem isolar de toda a obra poética do autor, o poema “A Casa do Solteiro”, do livro Poemas Inéditos (pp. 82-84), por me parecer que, apresenta este texto (que além de enfatizar a relação do autor com o mundo dos infernos e não apenas isso, com a dor, o sofrimento e a morte) os elementos temáticos obsedantes de sua obra. Note-se que, de propósito, não me referi à “obra poética” – e sim, e apenas à “obra” pelo simples motivo de estar convencido de que o mundo onde se trava a “guerra dentro do beco” de Lúcio não é em nada diferente se expressa nessa (verso) ou naquela (prosa) linguagem. Feita esta observação indispensável, passo a transcrever o texto referido e, em seguida, algumas considerações que em torno dele desenvolvo.

A Casa do Solteiro
A Pedro Gallotti
(Por oferecimento de Jayme Bastian Pinto)

A casa do solteiro é alta e de paredes de angústia,
muros escorrem como verdes contornos
e colunas de mármore frio guardam seus limites.
Há quatro anjos sentados no teto solene e casto
5 e com luzes vermelhas, entre ciprestes,
sondam os anjos – guardiões – os fundamentos
que se apóiam com gemidos nos porões e adegas,
no rio escuro e na água morta
de correntes que foram vencidas – despedaçadas.
10 A casa do solteiro é cor de chama,
de silêncio aflito e aurora sem contemplação.
São pedras de crime e de agonia,
são negras pedras de delírio e de remorso.
São duras estacas de alumínio e febre,
15 são traves de cristais e de luxúria.
Há um descampado em torno: nostálgicos,
cemitérios se evaporam no crepúsculo
e ruínas de azul e ópio cintilam,
entre guitarras e navalhas abandonadas.
20 Há flores quentes e de carne, flores mesmas,
cor de whisky, de pêssegos feridos, e raízes
quentes de sofrimento e decomposição.
A casa do solteiro é o sol posto[,]
quando perdemos a fé e o amor se foi,
25 o começo da noite quando não há horizonte,
a quilha partida e a lança sem gume.
A casa do solteiro se abre como a música,
é triste e macia, fechada como a do príncipe,
fechada, entre janelas longas de ferro,
30 enquanto lá fora o vento ruge e há relâmpagos.
Não há vertigem, e nem espaço, e nem sossego,
tudo sucede como se morrêssemos aos poucos,
os móveis andam, e nos olhares estranhos,
como róseos desmaios e garras de ultraje.
35 Se não fossem tão lúcidos, morreriam de cólera,
abraçando manequins de aço, corpos de rampas
em madrugadas de rompimento e viagens.
Esqueceriam as malas – e iriam muito altos,
olhando as hortas onde cresce o mato que assassina.
40 E estão quietas: jogam as cartas verdes
e suspiram impossíveis paisagens de mar.
Quatro anjos grandes velam no alto do telhado,
com quatro rosas voltadas para o mar,
a mais escura é que os guia. Rosas frias,
45 de pétalas aguçadas e de mortal traição.
A casa do solteiro é que eles elegeram,
ilha, jangada no silêncio do céu,
vasto navio abandonado e cheio de tormenta,
escândalo e aflição – a casa do solteiro flutua
50 e é como uma vasta cortina de sangue e maldição,
chorando as tardes, os corpos, o coração perdido,
tudo – neste silêncio único onde existe
como uma grande alma sozinha batendo
na infindável noite que não se acaba
55 e nem se acabará NUNCA,
A CASA DO SOLTEIRO.

Estruturas e recursos lingüísticos

Poema inédito até 1982, quando foi publicado em Poemas Inéditos, “A Casa do Solteiro”1é composto de uma única estrofe de 56 versos livres, sem evidenciadas preocupações com efeitos sonoros e rítmicos, como se pode ver pela alternância aparentemente aleatória entre versos longos, como os de número 1, 7, 13, 30 e 39, a par de outros bem menores, tais sejam os de número 8, 18, 23, 55 e 56.
Advertido por Antonio Candido de que “Na análise de um poema ‘livre’, o objetivo inicial é a própria articulação da linguagem – fato mais geral e durável que as técnicas contingentes que a disciplinam nos vários momentos da história da poesia.”2, é que vou procurar verificar como as estruturas e recursos lingüísticos se articulam no tratamento da temática da angústia no poema em causa.
Para começar: com a expressão “A casa do solteiro” que dá título ao poema, repetida seis vezes e assim distribuída: nos versos 1 (“A casa do solteiro é alta e de paredes de angústia”), 10 (“A casa do solteiro é cor de chama”) e 23 (“A casa do solteiro é o sol posto”), faz-se, em frases nominais, a descrição da casa; já no verso 27 (“A casa do solteiro se abre como a música”), temos a mesma expressão agora como sujeito da ação expressa pelo verbo; em seguida, no verso 46 (“A casa do solteiro é que eles elegeram”), empregada em sua conotação de lugar onde se mora, enquanto que, e finalmente, no verso que fecha o poema (“A CASA DO SOLTEIRO”) a CASA é tão-somente a universalização do lugar eleito pelo solteiro.
Com respeito ao valor simbólico da “casa” como moradia, Mircea Eliade considera que a imagem dela, casa, tomada com esse sentido, “revela a experiência existencial de ser no mundo, mais exatamente de situar-se num mundo organizado e dotado de sentido”3. Desse modo, “A CASA DO SOLTEIRO”, do verso 56, é um universo no qual o eu, ao mesmo tempo que se isola, dialoga com a realidade.
Ilustra o pensamento do citado ensaísta a presença no texto de imagens e expressões que se repetem de forma igual ou assemelhada, como as que aludem a) à morte e à escuridão: ciprestes (v. 5), negras pedras (v. 13), cemitérios (v. 17), sol posto (v. 23), morreriam (v. 35), mortal traição (v. 45), infindável noite (v. 54); b) bem como a elementos frasais que se repetem, como anjos (v. 4, 6, 42), silêncio aflito (v. 11), silêncio único (v. 52), vasto navio (v. 48), vasta cortina (v. 50), gemidos (v. 7), pêssegos feridos (v. 21), sofrimento (v. 22); e ainda c) imagens/idéias que se opõem ou só aparentemente estão em oposição; no caso: 1. mármore frio (v. 3), flores quentes (v. 20), rosas frias (v. 44), raízes quentes (v. 21 e 22), e 2. A casa do solteiro se abre [...] / [...]fechada como a do príncipe, / fechada [...] (v. 27-29).
De minha parte, quero chamar a atenção para: 1) a presença de metáforas que configuram o-passar-de-um-dia-na-casa-do-solteiro, e são elas: aurora sem contemplação (v. 11), começo da noite quando não há horizonte (v. 25), sol posto (v. 23), noite que não se acaba (v. 54); e 2) bem como para construções e/ou imagens que, rompendo expectativas criadas, desembocam em soluções aparentemente inesperadas. Tal é o que ocorre nos versos 8 e 9: “no rio escuro e na água morta/ de correntes que foram vencidas – despedaçadas.” em que os adjetivos relacionados à palavra “correntes” geram dupla interpretação: o curso das águas, quebrado; e os grilhões, rompidos. A reforçar a idéia de rompimento lá vem aquele travessão separando aqueles dois adjetivos finais.
Continuando com a questão da pontuação, o termo “guardiões”, colocado entre travessões no verso 6, destaca o papel dos “anjos” como protetores da casa. Já no verso 9, o termo “despedaçadas”, após um travessão, funciona como adjetivo de “correntes”, caracterizando-as.
Já entre os versos 38 e 39, o poeta se utiliza do travessão para fazer um acréscimo, descrevendo o eu perante a sua perda de direcionamento em função da viagem alucinógena iniciada no verso 27 (“A casa do solteiro se abre como a música”). Por último, entre os versos 49 e 52, o travessão isola a agonia do eu aprisionado na solidão (“silêncio único”).
Nos dois versos finais do poema (“e nem se acabará NUNCA, / A CASA DO SOLTEIRO.”), o uso da vírgula, ao final do verso 55, reafirma a condição de isolamento da casa do solteiro. A casa não é mais a mesma do início do poema; ela se transformou.
O poema apresenta, além da pontuação, outras estranhezas de construção, como se percebe nos versos 4, 5 e 6, em que o sujeito deslocado dificulta a leitura e o entendimento do período. No verso 32 (“tudo sucede como se morrêssemos aos poucos”); 35 (“Se não fossem tão lúcidos, morreriam de cólera”); 40 (“E estão quietas: jogam as cartas verdes”); e 46 (“A casa do solteiro é que eles elegeram”), a falta de determinação do sujeito dos verbos (em negrito) gera ambigüidades.
O uso da conjunção coordenativa aditiva “e” ocorre de maneira muito significativa, aparecendo em 35 dos 56 versos do poema. Isso conecta uma idéia a outra, mesmo quando estas não estão relacionadas de maneira aparentemente lógica.
O recurso propicia a criação de imagens complexas e de difícil interpretação. O verso 31 (“Não há vertigem, e nem espaço, e nem sossego”), por exemplo, pela multiplicação de imagens, estabelece alegorias que, baseadas no uso do polissíndeto, estruturam-se num processo de fluxo da consciência a desafiar o leitor, criando um ritmo que acentua a percepção dos diversos sentidos e climas do poema.
A menção a “mar”, no verso 43, parece antecipar as imagens de “ilha” e “jangada” (v. 47), só que, surpreendentemente, estas não são situadas no mar, mas no céu. O contraponto entre a infinitude do céu e a limitação da ilha e da jangada, imagens análogas à casa do solteiro, reforçam as imagens de solidão e isolamento presentes no poema.
O recurso lingüístico da anáfora se faz presente de três maneiras: “A casa do solteiro” (seis vezes); “há” (três vezes); e “são”, (quatro vezes). O repetir do “são”, nos versos de 12 ao 15, reforça a idéia principal e dá ao poema estrutura rítmica. Nestes quatro versos, posso detectar o mais elevado grau de musicalidade atingido em “A Casa do Solteiro”:

São pedras de crime e de agonia,
são negras pedras de delírio e de remorso.
São duras estacas de alumínio e febre,
são traves de cristais e de luxúria.

O verso 54 (“na infindável noite que não se acaba”) seria pleonasmo (“infindável” e “não se acaba”), caso o verso seguinte (“e nem se acabará NUNCA”) não funcionasse como uma reiteração (“nem” e “nunca”), acentuando a negatividade destes versos.
Lúcio, em “A Casa do Solteiro”, consegue realizar jogos semânticos que causam um estranhamento, que dificulta a compreensão e costuma levar o leitor a retornar várias vezes ao início do poema em busca de um melhor entendimento. Por meio desse recurso lingüístico, Lúcio gera no leitor um sentimento de angústia, que se torna cada vez mais presente ao longo do poema.
A elaboração metafórica de “A Casa do Solteiro” pode ser verificada no fato das predicações terem grau diverso de pertinência, tendendo para um bom grau de impertinência, de analogias fortemente subjetivas, deslocamentos, imprevistos cuja pertinência só pode ser dada pelo contexto poético, como ilustram os seguintes exemplos:


1. A casa de solteiro é alta (pertinente) e de paredes (a princípio pertinente) de angústia (impertinente, mas de tradução razoavelmente fácil, já que angústia remete a fechamento, constrição) (v. 1);
2. no rio escuro (pertinente) e na água morta (razoavelmente pertinente) (v. 8);
3. A casa do solteiro é cor de chama (relativa pertinência), de silêncio aflito e aurora sem contemplação (impertinente) (v. 10 e 11); e
4. de correntes (à primeira vista, pertinente) despedaçadas (quebra da seqüência, da expectativa, danos à pertinência).

Lúcio se utiliza também do símile. No poema, há sete casos: nos versos 2, 27, 28, 32, 34, 50 e 53, sendo que a maioria deles reporta a imagens agônicas, como “cortina de sangue”, “morrêssemos” e “alma sozinha batendo”.
A presença no poema de um número significativo de impertinências, símiles e metáforas indica a proximidade do texto ao surrealismo, já que este movimento, segundo afirma Antonio Candido “é um modo extremo de não-pertinência, ou de incongruência, caracterizando-se por afastamentos máximos em relação à norma”4. Deriva daí a dificuldade, como foi apontado, do entendimento de algumas passagens, pois elas ocorrem pela justaposição de imagens, não por uma linearidade baseada na pertinência e na lógica prosaica.

Percurso pelos infernos
Procedendo à leitura do poema “A casa do solteiro”, a primeira idéia que se me depara é outro livro do autor, de título muito aproximado – Crônica da Casa Assassinada (1959) –, romance que conta a história de um decadente casarão do início do século passado cujos personagens, carregando sobre os ombros o peso da solidão e da angústia de viver, mas viver en gémissant, são dominados por uma indomável energia de loucura.
Quando falo em solidão e angústia – e aqui caberia menção a outros significantes da mesma área semântica – já estou me aproximando do mundo de “A Casa do Solteiro”, cujas paredes são “de angústia”, com “gemidos nos [seus] porões e adegas”, no “escuro e na água morta / de correntes que foram vencidas despedaçadas.”.
O uso do artigo definido feminino “a”, no título, conota a idéia de limitação, o que é confirmado, logo depois, com a utilização da contração “do” (preposição “de” + artigo “o”), que remete à morada de um dono específico, apontado como sendo solteiro, ou seja, um ser solitário, ensimesmado, que faz da casa o seu universo particular.
A temática da casa na literatura, como aponta Leyla Perrone-Moisés, é enfocada simbolicamente em alguns textos, como as fábulas infantis Hänsel e Gretel e Joãozinho e Maria e nos contos “The Strange High House in the Mist”, de Lovecraft; “The Fall of the House of Usher”, de Edgar Allan Poe; e “A Mensagem”, de Clarice Lispector.5
De acordo com Gaston Bachelard, isto se deve ao fato de que a casa fornece imagens dispersas, podendo assim, por meio da imaginação, dar nova dimensão simbólica à realidade aparente6. O ensaísta aponta ainda que:

Através das lembranças de todas as casas em que encontramos abrigo, além de todas as casas em que já desejamos morar, podemos isolar uma essência íntima e concreta que seja uma justificativa para o valor singular que atribuímos a todas as nossas imagens de intimidade protegida?7

No caso específico de “A Casa do Solteiro”, a resposta à indagação do crítico francês é positiva, e o eu passa então a descrever o universo determinado por uma casa específica, a do poeta em seu descompasso com o mundo. O universo da casa costuma dar ao seu proprietário, segundo afirma Bachelard, a ilusão da estabilidade. Por isso, “distinguir todas as imagens seria revelar a alma da casa; seria desenvolver uma verdadeira psicologia da casa”8.
Reconhecer uma casa, com todos os seus cantos, reentrâncias e passagens internas e externas significa, portanto, penetrar na alma do dono de uma residência, não só física; mas, principalmente, psicológica. Percorrer uma casa corresponde a realizar uma viagem interna, um autêntico autoconhecimento.
Para Bachelard, o papel da crítica é, a partir da análise de uma imagem, descobrir a utopia criada em prosa ou em verso por cada artista. Portanto, segundo Jean-Yves Tadié, a fenomenologia de Gaston Bachelard não analisa mais um objeto, “mas uma ressonância, não uma repetição, mas um fenômeno único”9, fato este que pode ser verificado em “A Casa do Solteiro”, pela ressonância de termos ligados à escuridão, como será posteriormente apontado.
Com versos, às vezes longos e irregulares (“A casa do solteiro é alta e de paredes de angústia” – v. 1); ou, com intensa musicalidade (“e suspiram impossíveis paisagens de mar” – v. 41), o poema desemboca num final pessimista, revelando o tom “escuro” e angustiante que perpassa a obra poética do escritor mineiro, retratada neste poema pela imagem da “casa do solteiro”, que evoca dentro dos princípios apresentados por Bachelard um universo existencial em que predominam a solidão e o emparedamento.
Nos três primeiros versos, aparecem os limites da casa (“paredes de angústia”, “muros”, “colunas de mármore frio”), que indiciam esse cerceamento. Termos como “paredes”, “contornos” e “limites” estabelecem um universo lexical que cria uma atmosfera em que predomina a visão do ser enclausurado. As imagens sugeridas também apontam para a angústia do eu, que é explicitada, nos versos 28 (“é triste e macia, fechada como a do príncipe”) e 29 (“fechada, entre janelas longas de ferro”). O mesmo ocorre nas diferentes visões do inferno de textos clássicos, como a Bíblia, Odisséia, Eneida e A Divina Comédia.
Na Bíblia, existe a referência ao Xeol, único lugar para todos os mortos, sejam retos ou distantes da fé. Ficou conhecido como “a terra de onde não se volta”. Todos os homens iriam para lá depois da morte, mas nenhum voltaria à terra dos vivos. No verso 3 (“e colunas de mármore frio guardam seus limites”), acentua-se o sentimento de abandono (“colunas de mármore frio”) e de introspecção (“guardam seus limites”), temáticas constantes na obra poética de Lúcio. O verso 4 (“Há quatro anjos sentados no teto solene e casto”) pode ser considerado como alusão aos cavaleiros do Apocalipse, que representam os quatro terrores: os animais ferozes, a guerra, a fome e a peste.
Na mitologia grega, Hades é o rei e o deus dos infernos, onde também moravam as boas almas. Num período anterior a Homero, o deus era confundido com a figura dos vermes, pois era tido como um devorador de cadáveres. Em Homero, o Hades é descrito com precisão por Anticléia:

Meu filho, como chegaste a estas nebulosas trevas ainda vivo? É penoso aos vivos contemplar estas paragens; passam de permeio grandes rios de correntezas medonhas; primeiro, o Océano, que ninguém transpõe a pé, mas apenas quem possua um barco bem construído.10

Para os romanos, Plutão era o deus dos infernos e os condenados às penas eternas habitavam o Tártaro e os justos residiam nos Campos Elísios. A porta do inferno romano era guardada pelo cão Cérbero:

Ali ficam as plagas que o enorme Cérbero faz retumbar com as suas três goelas, deitado, horrível, na caverna em frente.11

Considera-se também que, no inferno, havia sete portões situados abaixo da terra, e as descrições do inferno e do céu no mundo islâmico podem ter inspirado as visões de Dante em seu “Inferno” e “Paraíso”:

Se o mal te ferir, fira apressado:
Mais velho me há de ser mais grave e ingrato.
             Partimos: do rochedo alcantilado
             Em nosso ermo caminho e desabrido
Os degraus, em que havíamos descido,
Sobe o Mestre e por ele eu fui levado.
Prosseguimos por entre agras fraguras,
Pelas mãos sendo o pé favorecido.
Inda nalma exacerbam-se amarguras (...).12

Em “A Casa do Solteiro”, a partir do verso 4 (“Há quatro anjos sentados no teto solene e casto”), onde apesar da presença aparentemente paradisíaca de anjos, flores e cristais, entre outros, há elementos que integram o campo semântico do infernal, como o vermelho (“cor de chama”), por exemplo.
Alguns destes elementos estão presentes no “Inferno”, de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, criação literária em que personagens reais, míticos e imaginários pagam seus pecados por meio das mais diversas formas de sofrimento. Podemos citar, no poema de Lúcio, entre outros fatores, os gemidos, os porões e as adegas (v. 7). Juntam-se a esse universo de trevas, o rio escuro e a água morta (v. 8).
A conquista da liberdadealudida no verso 9 (“de correntes que foram vencidas – despedaçadas”) aponta para a obra de um ser dilacerado que vivencia o inferno na própria existência e procura se libertar dessa condição de prisioneiro de uma realidade adversa.
A poesia de Lúcio espelha os conflitos de um ser que toma como metáfora da própria existência a casa, que, segundo Bachelard, funciona como um grande arquivo de lembranças pessoais. Corredores, porão e sótão, por exemplo, funcionam como locais em que a psique humana guarda informações e as (re)trabalha num autêntico teatro em que a vida íntima e o espaço se entrelaçam, ou, como diz o crítico francês: “Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido”13.
Para Bachelard, a casa é “nosso canto no mundo”, “nosso primeiro universo”14. Sob essa óptica, cada casa é um verdadeiro cosmos em que se estabelece uma relação entre o eu e a realidade circundante. A casa, portanto, segundo Bachelard, não pode ser considerada apenas um espaço físico, mas a metáfora da própria existência. Em “A Casa do Solteiro”, podemos observar os elos entre a casa e o eu pela enumeração dos elementos concretos (“casa”, “muro”, “malas”) e abstratos (“angústia”, “aflição”, “nostálgicos”) que preenchem o poema e lhe dão um tom dantesco.
O espaço da casa de solteiro é definido como “cor de chama”, “de silêncio aflito e aurora sem contemplação”. Estes três elementos evocam imagens infernais consagradas na história da literatura ocidental, seja pela chama incandescente, pelo silêncio mortificante ou pela total falta de esperança. Esta, aliás, deve abandonar todos aqueles que penetram no inferno, máxima expressa no pórtico do inferno de Dante, um universo em que a dor é eterna.
No poema de Lúcio são arrolados sentimentos que aparecem nas descrições do inferno (“agonia”, “delírio”, “remorso”, “febre”, “luxúria”), como se observa nos versos 12 a 15 (“São pedras de crime e de agonia / são negras pedras de delírio e de remorso. / São duras estacas de alumínio e febre, / são traves de cristais e de luxúria.”). Nos três versos seguintes (“Há um descampado em torno: nostálgicos, / cemitérios se evaporam no crepúsculo / e ruínas de azul e ópio cintilam”), impera a solidão (“descampado”) e o sentimento de que algo se perdeu, o que é reforçado pelo uso de termos que evocam a nostalgia e as trevas dos cemitérios.
No verso 18, ocorre a referência direta ao ópio: “e ruínas de azul e ópio cintilam”. É esse tom alucinógeno que dá ao poema boa parte de seu mistério, pois às imagens infernais começam a se mesclar outras, oriundas de um estado de delírio, como, por exemplo, “guitarras e navalhas abandonadas” (v. 19).
A imagem de sofrimento e decomposição perante a nova realidade que se apresenta é acentuada a partir do verso 22 (“[raízes] quentes de sofrimento e decomposição”). “O sol posto” (v. 23) é utilizado como predicativo do sujeito “a casa do solteiro”. Por isso, a quilha (v. 26), que poderia indicar direções, está partida; e a lança (v. 26), provável saída violenta para os conflitos interiores, revela-se sem corte. Predomina, assim, a inutilidade, o vazio, o nada, a angústia.
A partir do verso 27 (“A casa do solteiro se abre como a música”), inicia-se uma viagem interior, o que sugere ter sido gerada por algum tipo de alucinógeno. As paredes, anteriormente limitadoras, agora se abrem, e toda a angústia do universo interno do eu traspassa para a natureza (“o vento ruge e há relâmpagos” – v. 30). A noção de tempo se torna mais lenta (“aos poucos” – v. 32) e a imagem dos “móveis [que] andam”, instaura um clima surrealista no poema, graças à livre associação de idéias.
Este é outro ponto para o qual chamo a atenção. Estamos diante de um texto surrealista, do que não há o que duvidar. Vejamos como apresentam a literatura desse gênero dois dos seus principais teóricos: “A beleza surrealista é explosiva ou não será”15(Breton); e “A poesia é por essência tempestuosa e cada imagem deve produzir um cataclisma”16(Aragon).
Ou, como diz Dirce Riedel: “A essência do mistério do universo enigmático só é apreensível no processo da busca, da interrogação, caracterizada pela ausência de resposta”17. Aqui pergunto: quem são “eles” que elegeram a Casa do Solteiro? Voltando à professora Riedel: “[...] a imaginação deve ser liberada, ela é que torna as coisas reais, já que as imagens surrealistas são como o ópio: oferecem-se espontaneamente, despoticamente, ao homem, que se vai convencendo aos poucos de sua realidade suprema”18.
O verso 34 (“como róseos desmaios e garras de ultraje”) introduz um universo de sonho, uma atmosfera em que a razão parece desaparecer em nome de imagens que são aglutinadas por relações que brotam do inconsciente, num fluxo da consciência. Como bem define, Octavio Paz, “Um poema surrealista é, quase sempre, uma sucessão de proposições justapostas, um desenrolar de imagens”19.
O sujeito do verbo ser, no verso 35 (“Se não fossem tão lúcidos, morreriam de cólera”), não é definido com clareza, gerando uma série de indagações, capazes de propiciar uma reflexão sobre os limites entre o real e o imaginário, que continua no verso 37 (“em madrugadas de rompimento e viagens”), que seja ou não uma “viagem”, motivada ou não por alucinógenos, perfaz um universo onírico, mundo em que a ficção e a realidade se diluem.
O suspiro por “impossíveis paisagens de mar” (v. 41), assim como os anjos que velam “no alto do telhado” (v. 42), apontam para um mundo que se localiza num plano alheio à realidade tangível. Anjos, seres divinos, e rosas – graças aos seus espinhos, símbolos do amor, da paixão e também do sofrimento conjugam-se num processo de analogias que cria vínculos entre o tangível (flores) e o intangível (anjos).
Os anjos transformam, assim, a casa do solteiro em “jangada no silêncio do céu”, tornando-a o lugar onde os solitários vivem sepultados no silêncio. A partir do verso 47, surgem indícios de desespero (“escândalo”, “aflição”, “cortina de sangue”, “maldição”, “chorando”, “coração perdido”, “alma sozinha batendo”, “infindável noite”), acentuando o delírio da suposta “viagem alucinógena”, perante um universo marcado pela dor infinita do existir, sentimento destacado no verso 54: “na infindável noite que não se acaba”.
O penúltimo verso propicia o diálogo intertextual com o poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe20. Enquanto este opta pela repetição “Nevermore”, Lúcio utiliza o “NUNCA” ao final do verso, todo com maiúsculas, instaurando uma dimensão ilimitada e um microcosmo em que a negatividade e o pessimismo predominam. Os elos entre Poe e Lúcio dão-se ainda pelo fato de os dois poetas cultivarem o mistério e, ainda, por aludirem em seus textos a questões que propiciam diversas camadas de interpretação.
O verbo “acabar”, conjugado no presente (“na infindável noite que não se acaba”– v. 54) e no futuro do indicativo (“e nem se acabará NUNCA,” – v. 55), aponta também para a continuidade da dor e do desespero. O advérbio de negação “NUNCA” permite ainda mais uma leitura: universaliza a dor e, principalmente, ressalta o sentimento de que o solteiro conviveu, convive e conviverá com uma solidão lancinante.
No último verso (“A CASA DO SOLTEIRO.”), a casa reforça sua dimensão simbólica e existencial. Portanto, a “viagem” do eu chega ao fim, e esse fim é um recomeço. O poema “A Casa do Solteiro” transforma-se em “A CASA DO SOLTEIRO” e esse uso de maiúsculas evidencia um reinício, mas sob nova perspectiva, mais ampla, universal, ilimitada e marcada pela circularidade. Ou seja, o eu percorre e descreve a casa e estabelece numerosas relações entre elementos concretos e imaginários. As imagens entrelaçam símbolos e objetos do dia-a-dia, numa seqüência onírica próxima ao surrealismo; mas, ao mesmo tempo, integrante de um universo mental de evocações que possibilitam ao eu alçar vôo pela imaginação e transformar a casa individual em casa universal.
Reforçando o que acabo de dizer, Mircea Eliade afirma que o Homem “deve criar seu próprio universo e assumir a responsabilidade de conservá-lo e renová-lo”21. Curiosamente, em “A Casa do Solteiro”, isso se dá de forma abrupta. Por exemplo, no verso 25 (“o começo da noite quando não há horizonte”), as paredes da angústia se abrem e, já no verso seguinte (“a quilha partida e a lança sem gume”), justamente na metade do poema, instaura-se o ultrapassar dos limites desse cerceamento.
O poema intitula-se “A Casa do Solteiro” e, significativamente, começa e termina com referências a esta. Desse modo, há a predominância do encasulamento do eu, havendo referências ao número quatro (“quatro anjos” nos versos 4 e 42; e “quatro rosas”, v. 43), que significa um universo fechado em que predomina a concentração de forças poderosas, evocando “o sólido, o tangível, o sensível”22.
O eu de “A Casa do Solteiro” movimenta-se num limbo em que os espaços interno e externo começam a se mesclar até se fundirem num microcosmo marcado pela agonia existencial, característica primordial da obra em versos de Lúcio. Só que, enquanto os infernos de Homero, de Virgílio e de Dante, situam-se num espaço físico determinado, longe do eu, o de Lúcio, em “A Casa do Solteiro” é marcado pelo desconcerto no mundo e pela inútil busca de paz interior, fato já apontado por Vinicius de Moraes, que afirma que a alma do autor de Poemas Inéditos era “Uma grande mansão aberta onde tudo penetra vivamente e quando sai continua misteriosamente permanecendo”23.

Um caminhar solitário
O poema se dá sob o signo do contraponto entre o sujeito, limitado pelo mundo circundante, e o desejo de atingir a liberdade. A casa é qualificada como “alta”, cercada de “paredes”, “muros” e “colunas”. Tem como “guardiões” quatro (número da limitação) anjos “sentados” (estáticos) num teto qualificado como “solene e casto”, que sugere austeridade, respeito e uma atmosfera onde predominam a pureza e as relações formais, indiciando a ausência de espaço para tudo aquilo que seja dionisíaco, ou seja, o riso, a exaltação e o prazer. É nessa atmosfera de “silêncio aflito” que se estabelece o poema.
Quanto aos fenômenos da natureza, é mencionada a “aurora sem contemplação”, marcada pela preposição “sem”, que indica falta, ausência, agonia e angústia. As pedras mencionadas no texto são “de crime”, “agonia”, “delírio” e “remorso”. As estacas citadas são “duras” e as “traves” aparecem relacionadas à luxúria, numa alusão fálica.
Em torno da casa, há “descampado”, “nostálgicos cemitérios” e “crepúsculo”, além de “ruínas”. Constitui-se assim um universo amplo e vazio ao mesmo tempo, semelhante ao de dentro da casa. Guitarras e navalhas “abandonadas” compõem o cenário lúgubre, quebrado pela menção a flores e raízes “quentes”, condição de temperatura que alude ao inferno, já que as raízes, símbolo da sustentação psicológica, são associadas, no poema, ao sofrimento e à decomposição.
O sol está “posto”, e o amor e a fé estão perdidos. No começo da noite, não há horizonte, a quilha está “partida” e a lança está “sem gume”. São metáforas da casa que acentuam o sentimento de negatividade (“não”) e vazio (“sem”). O espaço é amplo e o eu do poema mergulha num grande nada que é tudo o que lhe resta.
Fora da casa, o vento “ruge” assustadoramente e há a presença de “relâmpagos”. Dentro dela, há móveis que “andam” e olhares “estranhos”. O que evidencia a existência de “vertigem” e a inexistência de “espaço” e de “sossego”. Quando é introduzido o tema da mudança, com a “viagem” ou o “rompimento”, explicita-se o ato de “esquecer”, vale dizer, de levar o passado para uma nova situação, o que implica na passagem da realidade opressiva que ele conhece (“a casa do solteiro”) para a que ele desconhece (“madrugadas de rompimento e viagens”).
A negatividade se acentua com “impossíveis paisagens de mar” e pouco ou nada pode ser feito. O mar não oferece oportunidade de mudança. As quatro rosas que surgem estão voltadas para o mar, mas são “frias” e estão associadas a uma “ mortal traição”.
Em conseqüência, a casa do solteiro, repleta de objetos e de movimentos por dentro, com espaço aberto ao redor e cercada por situações pouco favoráveis, assustadoras, funciona metaforicamente como uma “ilha”, cercada de água por todos os lados, ou como uma “jangada”, que vivenciam a mesma situação de isolamento e de silêncio.
Restam ao eu solteiro que habita a casa a “tormenta”, o “escândalo” e a “aflição”. Tal qual um navio abandonado, “A casa do solteiro” navega a esmo, flutuando sobre o mar ou no céu, marcada pela “cortina de sangue e maldição”. O resultado é o choro durante as “tardes”, vale dizer, o final daquela existência individual.
O coração se perde nesse caudal de sofrimento, assim como o corpo. “A casa do solteiro” vence o “silêncio único” “como uma grande alma” permanece “sozinha” na “infindável noite”. Assim, permanece e continua infinitamente a marcar seres torturados, culpados pelo simples fato de existir. Inerte por dentro, rodeada pela intempérie, acentua a solidão e a negatividade, caracterizando o universo do ser solteiro, abandonado e marginal, desajustado ao e no mundo.
Lúcio, aprisionado e cerceado pela vida, encontrou liberdade na obra poética, um universo que, menos estudado do que a sua prosa, oferece certamente pistas instigantes para uma melhor compreensão da sua criação literária. Por esse prisma, o poema “A Casa do Solteiro” pode ser visto como a residência do marginal, do excluído, daquele que busca na palavra a força de expressão que o afaste da mísera existência e da loucura.
Ao eu de “A casa do solteiro” resta somente a angústia, que, segundo Cleusa Rios, pode ser considerada “um dos modos por meio dos quais o sujeito sustenta sua relação com o desejo”24. Sozinho, agoniado em seu processo criativo, Lúcio transforma sua casa de solteiro pessoal em força criadora.
Liberta-se, assim, das amarras dos relâmpagos, paredes e muros que cercam a sua casa, podendo criar, com suas ricas imagens, um outro universo que ele, como criador, domina e delimita como julga melhor. Walmir Ayala, ao comentar os elos da vida do escritor mineiro com o conjunto da sua obra, comenta: “Lúcio Cardoso está irremediavelmente vinculado ao mundo que criou. Jamais vi tamanha integração, tamanha fidelidade, tão obsedante destino”25.
Concluindo. É da Casa do Solteiro que parte o poeta em sua jornada pelo mundo da palavra, um caminho pouco aprazível, marcado por vicissitudes. Solitário, mas, como apontava Robert Frost, em seu célebre poema (“The Road not Taken”), mais prazeroso, pois digno de dar ao viajante o gosto do caminhar.

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Referências bibliográficas
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BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal & Lídia do Valle Santos Leal. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca, s/d.
CANDIDO, Antonio. Na Sala de Aula – Caderno de Análise Literária (1988). 3. ed. São Paulo: Ática, 1989.
CARDOSO, Lúcio. Crônica da Casa Assassinada (romance). Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
---. Poemas Inéditos. Apresentação e edição de Octávio de Faria. Prefácio de João Etienne Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
---. “Poesias” (484). S.I., s/d., 484 fls. In: Arquivo Lúcio Cardoso, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, pasta LC 28 pi.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos(1982). 5. ed. Coordenado por Carlos Sussekind. Tradução de Vera da Costa e Silva et alii. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
ELIADE, Mircea. Ocultismo, Bruxaria e Correntes Culturais – Ensaios em Religiões Comparadas. Tradução de Noeme da Piedade Lima Kingl. Belo Horizonte: Interlivros, 1979.
HOMERO. Odisséia. Tradução direta do grego, introdução e notas por Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, s/d.
INVENTÁRIO do Arquivo Lúcio Cardoso. Organizado por Rosângela Florido Rangel & Eliane Vasconcelos Leitão. Rio de Janeiro: FCRB/MEC, 1989. (Série CLB, 4).
MORAES, Vinicius de. “Lúcio Cardoso, Poeta e Romancista” (manuscrito). Campo Belo – MG, 1936, 10 fls. In:Arquivo Lúcio Cardoso, Arquivo Museu de Literatura Brasileira, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, pasta LC 18 pit.
PASSOS, Cleusa Rios Pinheiro. “Poesia e Devaneio: A Mágica Ciranda de Rondó do Capitão de Manuel Bandeira”. In: Confluências – Crítica Literária e Psicanálise. São Paulo: Nova Alexandria / EDUSP, 1995.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “A Fantástica Verdade de Clarice”. In: Flores da Escrivaninha – Ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
RIBEIRO, Ésio Macedo. O Riso Escuro ou o Pavão de Luto: Um Percurso pela Poesia de Lúcio Cardoso. Pref. de Ruth Silviano Brandão; apres. de Valentim Facioli. São Paulo, Nankin/Edusp, 2006.
RIEDEL, Dirce. “A Crise do Conceito de Literatura no Surrealismo”. In Cadernos da PUC/RJ: 1º Encontro Nacional de Professores de Literatura. Série Letras e Artes 08/75; Caderno nº 26. Rio de Janeiro, PUC/RJ, 1975, p. 113.
TADIÉ, Jean-Yves. A Crítica Literária no Século XX (1987). Tradução de Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.
VIRGÍLIO. Eneida. Tradução e notas de David Jardim Júnior, introdução de Paulo Rónai. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d.

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Rafael Mantovani

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Rafael Mantovanié um poeta e tradutor brasileiro, nascido em São Paulo em 1980. Formado em Linguística pela Universidade de São Paulo, tem poemas publicados nas revistas Opiniães, Rubato, Lado7 e Rosa. Estreou com o volume Cão (São Paulo: Hedra, 2011). Vive e trabalha atualmente em Berlim, onde estuda Filosofia na Humboldt Universität. Os poemas aqui apresentados são inéditos.

--- Ricardo Domeneck

§

POEMAS DE RAFAEL MANTOVANI



um braço comprido o bastante

um braço comprido o bastante
pra já lavar toda a louça da semana seguinte
pra riscar tarefas em listas que ainda não são necessárias
pra garantir comida suficiente até a próxima encarnação
pra apagar tudo o que eu um dia vou ler e não gostar
pra digitar mensagens aceitando todos os convites
de todos os homens que eu ainda não conheço

pra reservar abraços pra todas as notícias tristes futuras
pra aprender a matéria inteira de cor antes que seja a prova
pra que tudo esteja arrumado quando o furacão chegar.

§

gengibre

o braço divino de gengibre
entrava pela boca muito aberta
(aberta até dar cãibra)
arrancava do pulmão uma raiz marrom espessa
peguenta
que se destacava com resistência, como ventosas
ou pelos sendo arrancados à cera

não estava ali o manancial da vontade
mas estava ali toda a extensão da colônia de vícios
(os vícios eram fungos, instalados em volta)
ali estava a cidade inteira dos vícios
e seus prédios úmidos de muitos andares, suas infinitas pontes
ruas e lixões, dormitórios, usinas onde funcionavam os 
               [extratores de vontade
escritórios onde os vícios projetavam outros vícios mais eficientes, 
                [autossustentáveis
onde armazenavam seus diferentes modelos, alguns praticamente 
                [obsoletos
seus grossos dutos de alimentação

toda essa colônia era desentupida com o arrancamento da raiz
pelo braço de gengibre
prosseguia-se ao escoamento das sujeiras, um enxágue
que durava vários anos
a garganta dos séculos dizia um ahã, um meu deus, um nossa.

 §

ninguém no éden


 o um inteiro, o outro ainda remisso

a solidão de adão
com os cães                                                          
(e com deus) antes de eva

a solidão de deus
com o caos
antes de eva e adão

eva (e adão), pois é:
mesmo depois de eva
você continua só

com a livre escolha entre o fruto
permitido
ou o crime cometido sem cumplicidade

o crime começado e posto
de lado, o fruto que alimenta pela
metade

(e deus vê você assim
e diz que assim está bom
mas você acha que não).

§

berl

alguma coisa acontece no meu coração
que saio à procura de amor em kottbussetão
é mais fácil encontrar uma sombra pra fazer xixi
pergunto quem são os clientes da loja de flores
que fica aberta a noite inteira entre o olfe e o roses

amiga o david bowie não vem mais aqui  
(ou só pra inaugurar a exposição)
alguma coisa acontece na minha bunda
que não acontecia na estação barra funda

tentei te sorrir mas você desviou o seu rosto
achei você tosco, alemão, gostoso mas tosco
eu que já vi seus pentelhos pelo gayromeo
narciso morreu afogado porque o salva-vidas não era gay
vou-me embora pra pasárgada, lá sou amigo do rei

se fosse questão só do preço
da cerveja ou do ingresso
mas quem não pode chorar por falta de catarse
acorda mais tarde com tempo de suicidar-se
só porque é possível possível possível possível

a simon-dach tem farofa, cuvrystrasse tem favela
na rossmann tem tudo que você precisa mas você 
                  [não precisa de nada
a moça do caixa não quer que saibam o nome dela
eu vejo astronautas mendigos subindo pro espaço
tuas camisetas de ir em festa, teu cavalo na chuva

idílio de adultos aspirantes, glória do electrobrega
berço de start-ups ou viveiro de zumbis
e os brasileiros comprando palmilhas pra neve
e nem parece o mesmo céu onde o sol já esteve.

§

pinguim

de travesseiro em você
(pinguim)
parto desse
dia curto
em que ganhei dinheiro

não me detenho em ser
assim
meus prazeres
são mais truco
do que trunfos verdadeiros

sei que amanhã me encaixo
(de volta)
na engrenagem dos defeitos

mas passo o envelope por baixo
da porta
com a foto da chave dentro.

 §

precedente

queimar-se como camponeses
achando que o anticristo vem
e virá de fato, meu bem
porém já veio outras vezes

lá haverá ranger de dentes
porém já rangeram antes —
o inferno do outro instante
o inferno atrás e à frente.

 §

o presente é o pasto

se o êxtase proporciona a ocasião
e a conveniência determina a forma
recorrerei a ti, marianne moore
como quando na cama de dois desconhecidos
entendi a frase pintada na porta
estava escrito — e acho que repito as palavras exatas
“o clímax
é o próprio desfecho” (o resto
é lavar o rosto, conferir os bolsos, e sair sem quebrar nada).

 §

sobre mim
  
miguilim
chapolin
fridolin
míchkin.


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Centenário de Julio Cortázar

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Julio Cortázar teria completado 100 anos hoje. 
O grande homem gentil segue entre nós.

 


§

El encubridor
Julio Cortázar

Ese que sale de su país porque tiene miedo, 
no sabe de que, 
miedo del queso con ratón, 
de la cuerda entre los locos, 
de la espuma en la sopa. 
Entonces quiere cambiarse como una figurita, 
el pelo que antes se alambraba 
con gomina y espejo lo suelta en jopo, 
se abre la camisa, muda de costumbres, 
de vino, de idioma. 
Se da cuenta, infeliz, que va tirando mejor, 
y duerme a pata ancha. 
Hasta de estilo cambia, 
y tiene amigos que no saben su historia provinciana, 
ridícula y casera. 
A ratos se pregunta como pudo esperar 
todo ese tiempo 
para salirse del río sin orillas, 
de los cuellos garrote, 
de los domingos, lunes, martes, miércoles y jueves. 
A fojas uno, si, pero cuidado: 
un mismo espejo es todos los espejos, 
y el pasaporte dice que naciste y que eres 
y cutis color blanco, nariz de dorso recto, 
Buenos Aires, septiembre. 
Aparte que no olvida, 
porque es arte de pocos, 
lo que quiso, 
esa sopa de estrellas y letras que infatigable comerá 
en numerosas mesas de variados hoteles, 
la misma sopa, pobre tipo, 
hasta que el pescadito intercostal 
se plante y diga basta. 
Antes, después
como los juegos al llanto
como la sombra a la columna
el perfume dibuja el jazmín
el amante precede al amor
como la caricia a la mano
el amor sobrevive al amante
pero inevitablemente
aunque no haya huella ni presagio

aunque no haya huella ni presagio
como la caricia a la mano
el perfume dibuja el jazmín
el amante precede el amor
pero inevitablemente
el amor sobrevive al amante
como los juegos al llanto
como la sombra a la columna

como la caricia a la mano
aunque no haya huella ni presagio
el amante precede al amor
el perfume dibuja el jazmín
como los juegos al llanto
como la sombra a la columna
el amor sobrevive al amante
pero inevitablemente

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"Odes de Horácio: tirar a poeira", por Guilherme Gontijo Flores

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Guilherme Gontijo Flores, especial para a Modo de Usar & Co.



Em geral, as leituras de poesia antiga ainda permanecem sisudas: acadêmicos e leitores leigos encaram poetas gregos e romanos como figuras sérias, moralizantes — naquele sentido que menos interessa aos nossos dias — e, pra resumo de conversa, chatos. A exceção são os casos da poesia amorosa (Anacreonte, Safo, Catulo, Ovídio) ou de ataque ridículo (Arquíloco, Marcial e, por vezes, Juvenal), quando a leitura nos permite com mais facilidade deixar de lado toda a poeira que queremos impor sobre os antigos. Infelizmente alguns poetas, como Virgílio e Horácio, hoje sofrem mais o peso da palavra “clássicos”.
Decidi escolher um poema pouco conhecido das Odesde Quinto Horácio Flaco, em especial um poema um pouco difícil — que geralmente levaria leituras apressadas a considerar como enfadonho ou pedante — que permite uma leitura mais instigante, por meio da paródia de gêneros elevados e de um uso sutil do aparato mitológico. Por isso, uma introdução e as notas, para além da tradução poética.
Esta ode tem um desenvolvimento complexo: abre-se (vv. 1-8) com uma invocação ao deus Mercúrio e à própria lira para dar poderes ao poeta na sedução da jovem Lide; a partir das associações míticas de Mercúrio com o Orco (como podemos ver na ode 1.10, inteiramente dedicada ao deus), Horácio passa a maior parte do poema descrevendo efeitos de Mercúrio no mundo dos mortes e parte para a narrativa exemplar das Danaides e de Hipermestra, um mito que serve no convencimento de Lide, ou seja: a própria realização do pedido feito nas duas primeiras estrofes.
Há quem veja na origem desta ode uma causa séria, como uma homenagem ao templo de Apolo consagrado por Augusto (Villeneuve), onde havia imagens das Danaides (cf. Propércio Elegias2.31, onde o poeta elegíaco descreve o templo). De qualquer modo, o que vemos é um recurso similar ao de outras odes, como 3.5 e 3.27, em que o espaço (amoroso) da lírica cria um modo de englobar temas narrativos comumente tratados na épica e na tragédia. Com o exagero da invocação a Mercúrio e o tom elevado do tema mítico (com ameaças de sofrimento eterno à jovem infiel) em contraste com o simples objetivo erótico de Horácio, é possível então lermos a ode inteira como uma espécie de “paródia da manipulação inescrupulosa dos argumentos de machos predatórios” (West, p. 108) sobre algumas virgens. Certamente não se trata de uma proposta de casamento a Lide, mas de uma estrutura argumentativa que busca alcançar o corpo (como aquela “meta física dos metafísicos” indica por Augusto de Campos): a diferença é que aqui, pelo exagero, o próprio movimento argumentativo passa a ser objeto da autoironia tão comum em Horácio.

guilherme gontijo flores


3.11


Mercuri – nam te docilis magistro
mouit Amphion lapides canendo –
tuque testudo resonare septem
callida neruis,


nec loquax olim neque grata, nunc et 5
diuitum mensis et amica templis:
dic modos, Lyde quibus obstinatas
adplicet auris,


quae uelut latis equa trima campis
ludit exsultim metuitque tangi 10
nuptiarum expers et adhuc proteruo
cruda marito.


Tu potes tigris comitesque siluas
ducere et riuos celeres morari;
cessit immanis tibi blandienti 15
ianitor aulae;


Cerberus, quamuis furiale centum
muniant angues caput aestuetque
spiritus taeter saniesque manet
ore trilingui; 20


quin et Ixion Tityosque uultu
risit inuito; stetit urna paulum
sicca, dum grato Danai puellas
carmine mulces.


Audiat Lyde scelus atque notas 25
uirginum poenas et inane lymphae
dolium fundo pereuntis imo
seraque fata,


quae manent culpas etiam sub Orco:
inpiae – nam quid potuere maius? – , 30
inpiae sponsos potuere duro
perdere ferro.


Vna de multis face nuptiali
digna periurum fuit in parentem
splendide mendax et in omne uirgo 35
nobilis aeuum,


'surge' quae dixit iuueni marito,
'surge, ne longus tibi somnus unde
non times detur; socerum et scelestas
falle sorores, 40


quae uelut nactae uitulos leaenae
singulos eheu lacerant: ego illis
mollior nec te feriam neque intra
claustra tenebo.


me pater saeuis oneret catenis, 45
quod uiro clemens misero peperci,
me uel extremos Numidarum in agros
classe releget:


i pedes quo te rapiunt et aurae,
dum fauet nox et Venus, i secundo 50
omine et nostri memorem sepulcro
scalpe querelam.'




3.11


Ó Mercúrio (mestre, ensinaste a Anfíon
um suave canto que move pedras),
tu, testude astuta, que pelos sete
nervos ressoas,


antes nem loquaz nem querida e agora 5
mais amada em templos e mesas ricas:
conta os modos para que o duro ouvido
preste-me Lide,


que tal égua jovem por amplos campos
brinca e pula e teme que alguém a toque, 10
sem perícia em núpcias, essa imatura
de homem fogoso.


Tu contigo levas os tigres, selvas,
podes refrear os velozes rios;
já cedeu à tua carícia o guarda 15
do hórrido reino,


Cérbero, o cachorro que cem serpentes
furiais carrega na testa e queima
repelente alento e veneno traz na
boca trilíngue. 20


Mesmo Tício e Ixíon contrariados
se sorriram, a urna por um instante
ressecou-se, enquanto num doce canto
alegras Danaides.


Ouça Lide os crimes, a conhecida 25
punição das virgens na vil vasilha
que vazia livra-se da água e os Fados,
inda que tardos,


aguardando as culpas debaixo do Orco.
Ímpias — quem faria maiores males? — 30
ímpias foram, pois que com duro ferro
matam maridos.


Uma dentre muitas merece o facho
nupcial, pois contra seu pai perjuro
mente lindamente essa nobre virgem, 35
eternamente;


“Anda, acorda!”, disse ao marido moço,
“Anda acorda! Logo um longevo sono
vem de quem nem temes; engana o sogro
e as falsas cunhadas, 40


que tais, ai!, leoas laceram cada
bezerrinho à vista; mas sou mais mole
que elas — não consigo ferir-te nem te
quero cativo.


Que meu pai me prenda em cruéis correntes 45
porque fui clemente com meu marido,
que me lance longe aos numídios campos
numa barcaça:


vai-te aonde a brisa e teus pés levarem,
no favor da noite e de Vênus, vai-te 50
auspicioso e lembra do meu sepulcro:
grava um lamento!”

NOTAS

Metro: estrofe sáfica.

v. 1-2: Mercúrio é associado à mentira e muitas vezes aparece como cúmplice de Júpiter nos seus adultérios (o tema pode ser cômico, se pensarmos no Anfitrião de Plauto). Anfíon (filho de Júpiter e Antíope, portanto, fruto de um adultério) é o poeta mítico que teria erguido os muros de Tebas apenas com o poder do canto e da lira (dada por Mercúrio), que as pedras obedeciam. Se Mercúrio foi capaz de ensinar Anfíon a demover o símbolo da insensibilidade — as pedras — ele também poderá ajudar Horácio com uma mulher.

vv. 3-4: A testude é a lira feita com um casco de tartaruga, as cordas eram geralmente feitas com tripas ou nervos de animais.

vv. 7-12: O nome Lide (do grego Λύδη), além de se associar com o nome da amada de Antímaco, que deu esse nome a um livro de elegias, poderia evocar associações com a Lídia, uma região da Ásia Menor que, no imaginário romano, esta cheia de associações ao prazer. Aqui Lide é descrita como uma virgem, que ainda não se casou. Sua comparação com uma égua jovem pode nos remeter a Lucílio (1042 Marx):
anne ego te uacuam atque animosam
Tessalam ut indomitam frenis subigamque domemque?

E a ti que és feroz e liberta
feito uma égua tessálica devo domar-te no freio?

O fragmento de Lucílio, por sua vez, aponta para Anacreonte, frag. 417 Campbell.

vv. 13-24: Embora Horácio pareça se dirigir à própria lira, os feitos mencionados nestas estrofes estão ligados ao mito de Orfeu (cf. Virgílio, Geórgicas, livro 4, a narrativa sobre Orfeu e Eurídice), que guiava animais e plantas ao som do seu canto à lira. Também a descida ao inferno em busca de Eurídice faz parte dos feitos órficos.
Cérbero é o cão que guarda a entrada do Orco, o mundo dos mortos. Em geral, é representado com 3 cabeças; na ode 2.12 Horácio faz referência a 100 cabeças, que, apesar de ter respaldo na poesia grega (tal como em Píndaro frag. 249b), resultaria numa conta de 200 ouvidos (em Hesíodo, Teogoniav. 312, ele tem 50 cabeças), o que parece reforçar ainda mais o exagero de Horácio: aqui o mesmo acontece com a descrição das serpentes e do hálito fatal. As serpentes em sua cabeça são “furiais” porque as Fúrias são descritas com cabelos de serpentes, tal como a Medusa
Ixíon, rei dos lápitas e pai de Pirítoo, foi condenado ao Tártaro por tentar estuprar Juno, a esposa de Júpiter; assim ele é castigado numa roda que gira sem parar.
Tício era um gigante filho da Terra (cf. Odisseia11.576), que, por ter tentado estuprar Latona, acabou fulminado pelo próprio pai (em outras versões, ele teria sido morto por Febo e Diana, filhos de Latona com Júpiter) e lançado ao Tártaro, onde águias comeriam eternamente o seu fígado.
As Danaides são as cinquenta filhas de Dânao, que, ao se casarem com cinquenta filhos de Egito, mataram-nos todos na noite de núpcias, por ordens de seu pai. A única que o desobedeceu foi Hipermestra, que assim salvou seu marido Linceu. As quarenta e nove criminosas foram condenadas a encher um poço sem fundo após a morte.
Esta última menção mítica abre o poema para sua narrativa e sua função exemplar. É importante notar como todos os mitos, embora reunidos por suas penas após a morte, ainda estão ligados por indicarem o adultério.

v. 34: O pai perjuro é Dânao, que quebra o juramento feito a Egito de casar o suas 50 filhas, ao ordenar que estas matem os genros.

vv. 45-52: Segundo parte dos mitógrafos, Hipermestra teria sido presa e depois liberta pelos juízes de Argos (cf. Apolodoro 11.1.15 e os comentários de Sérvio à Eneida10.497). Os campos numídios aqui indicam simplesmente uma região remota. Certa de sua morte, a jovem apenas pede ao marido uma inscrição tumular como monumento à sua fidelidade de esposa. Temos uma inscrição tumular na pirâmide de Gizé, feita no tempo de Trajano, que parece ecoar a estrofe horaciana (Carmina epigraphica 270 Bücheler):

Vidi pyramidas sine te, dulcissime frater
Et tibi quod potui lacrimas hic maesta profudi
Et nostri memorem luctus hanc sculpo querelam.

Vi sem ti as pirâmides, ó meu irmão mais querido,
tudo que pude fazer por ti foi verter o meu pranto
para em lembrança do luto que sinto gravar um lamento.


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"Mercúrio em Conjunção com o Ascendente", Érica Zíngano apresenta o trabalho de Luísa Nóbrega

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Érica Zíngano, especial para a Modo de Usar & Co.
com uma apresentação do trabalho de Luísa Nóbrega


Mercúrio em Conjunção com o Ascendente, 


Luísa Nóbrega, nascida em São Paulo em 1984, é artista, mas isso, por si só, não explica muito, “há muitos tipos de artista, como há muitos tipos de cabelo”, gosto de dizer, e a força do seu trabalho talvez venha por ela circular entre a literatura, a parapsicologia e as artes visuais. A partir desses 3 vértices, que se abrem e se fecham, constantemente, como num triângulo amoroso, onde os pontos estariam sempre a mudar de posição rearticulando-se, lembrando-nos que a vida se constitui nesse exercício de gerar fluxos e refluxos também, Luísa se movimenta, dedicando-se especialmente à performance, à poesia e ao vídeo, embora tenha começado a realizar experimentos com hipnose e telepatia, em alguns trabalhos recentes. O seu campo de trabalho (de contato, como talvez eu prefira chamar), à medida que se movimenta, está sempre a expandir-se, incorporando.



"gorge", de Luísa Nóbrega

Parece-me que certas palavras mal nasceram e já estão cansadas de existir, mas repetir o cansaço da palavra performance, por exemplo, serve também para pensá-la como um gesto de resistência (e por isso mesmo de rexistência): uma das coisas que mais admiro, na forma como Luísa começou a entender a sua prática artística, foi a quebra de fronteira entre o que aprendemos a chamar de vida e, como se esta fosse uma instância separada daquela, arte. Penso que, desde que ela decidiu não ter mais morada fixa, há mais de 2 anos, passando a dividir o seu tempo entre residências artísticas e casas de amigos, em diferentes lugares do Brasil e do mundo, Luísa começou a vivenciar uma prática mais radical do seu próprio trabalho (da sua própria vida), conseguindo resignificar esse cansaço acimentando da performance.



  “ventríloquo ou talvez tudo já tenha sido dito” - 2012
ação em que passou 21 dias em silêncio, se comunicando
apenas por faixas pré gravadas em um gravador digital


Talvez o seu gesto, que insiste em não mais querer separar, venha nos evidenciar uma tautologia, o corpo nunca deixou de ser a nossa única morada, mas ao focar-se exatamente nesse ponto, porque não há outro retorno possível, simplesmente dilatação e mover-se, uma série de camadas residuais, que nunca deixaram de ser pele, começaram a mostrar-se relevo. É como se ela estivesse aprendendo a usar uma lupa e compartilhando radiografias que vai imprimindo da sua superfície. Não me parece, portanto, equivocado ressaltar como o seu próprio corpo (e as suas deficiências biológicas congênitas) tornaram-se suas matérias de trabalho (quer dizer, de contato). Em muitas das performances que começou a realizar, Luísa vale-se da sua própria deficiência auditiva ou da sua dificuldade articulatória para extrapolar-se, testando os limites da linguagem como um medium e da sua única morada, o corpo, esse conjunto informe de farelos.


foto: julio callado

“degredo ou nunca aprendi a falar” - 2011
ação em passou por uma semana de surdez completa
voluntária, com o auxílio de tampões de ouvido, sem ter qualquer contato
com a linguagem verbal - sem ler, escrever ou falar.


Através do programa de exposições do Centro Cultural São Paulo, Luísa está agora em residência na Casa do Sol - Instituto Hilda Hilst e se propôs a repetir todas as noites, durante as madrugadas, os experimentos de EVP (Eletronic Voice Phenomena), conhecidos também como “transcomunicação”. Tais experimentos foram iniciados por Friedrich Jurgendson e a própria Hilda também os realizou durante muitos anos, procurando identificar vozes de mortos entre as gravações que fazia da estática do rádio. Durante dois meses, Luísa permanece em silêncio quase absoluto, usando a voz apenas para fazer perguntas aos mortos. Além disso, querendo ouvir outras ressonâncias dessas vozes, Luísa convidou alguns artistas/escritores para escutarem também extratos das gravações que está fazendo e escreverem relatos dessa experiência. O material será colidido e publicado brevemente, e o título, ainda provisório, é: Vá dormir, Margarete.




§



"A proposta é alternar dois métodos diferentes de EVP: 1. gravar programas de rádio, bem como o som de estática, quando nenhuma estação específica está sintonizada; 2. deixar um gravador conectado a um microfone em um espaço silencioso.
O fundamental, porém, é a escuta dessas gravações, e a tentativa de identificar palavras e frases em meio ao ruído branco. Mais do que testar a validade desses fenômenos, a idéia é usá-los como uma estratégia para pensar a respeito de tecnologia, voz e linguagem, tomando a escuta como um ato ativo, que interfere e modifica os ruídos que escutamos.
A escuta, aqui, se torna ela mesma um espaço transitório, um ato de tradução, infiel, imperfeito.
O quanto a comunicação guarda de aleatório?" --- Luísa Nóbrega


Luísa Nóbrega é Bacharel em Filosofia, pela Universidade de São Paulo, e seus trabalhos podem ser consultados na sua página pessoal. Separamos alguns de seus poemas, do livro Pathétique, ainda inédito, para esta postagem na Modo de Usar & Co.


--- Érica Zíngano


§

POEMAS DE LUÍSA NÓBREGA

meu salto engancha
em escadas rolantes
derrapa, enfático
sobre pisos úmidos

quase sempre
 mantenho o equilíbrio
- o difícil é que eu queria tentar
algo de vidro


chaleira, leiteira
tem que poder ir no fogo
tenho respostas-reflexo
de modo que não chega
a haver tombo


não rolei da escada
graças à risonha destreza
dos meus dedos mindinhos


faz a conta:
o que de mim se conserva?

.

para não ter um filho esmagado
Inga, da Bielorússia
ergueu um carro vermelho
de uma tonelada.

estourou as fibras musculares.
será que o vidro é impossível?

.

meu caso é menos dramático
não há garotos soterrados
a resgatar

.

vez ou outra arremesso a testa
contra um muro de tijolos

(será que é muito complicado
caminhar para trás?)


§


ode a Laura Wingfield


na primeira versão do tennessee
a cabeça do jim tinha formato de ovo
e teu pai tinha se apaixonado
por ligações interurbanas.

eles esfolavam gatos no fundo da casa diariamente
e quem morria era você.

como é que a gente se livra de um caixão
sem tirar nenhum preguinho?
vai, tom, tenta logo o truque do whisky.

ninguém te conta como datilografar
faz mal para o estômago –
faltei na décima segunda aula
para visitar os pingüins.

.

laura, quem foi o idiota que inventou os porta-retratos?
não quero atender a porta


§


não sei mais dirigir



pode sair de perto no momento exato para não se sujar de graxa,

eu deixo.


vou parecer uma daquelas gaivotas ou baleias manchadas 

que aparecem em documentários alarmantes em defesa
[dos ecossistemas marinhos –


esses documentários genéricos

que passam nos canais de tv por assinatura

com voz em off, dublados

e que eu não assisto nunca.


§


zenão


ou seja: o movimento é impensável, porque qualquer móbil deve atingir primeiro o meio do percurso, em seguida o meio do que falta percorrer, em seguida o meio do meio e assim sucessivamente aproximar-se-á sem cessar do fim, mas nunca poderá atingi-lo. desta última expressão pensava zenão poder concluir que o tempo total para percorrer a distância entre A e B seria, necessariamente, infinito, pela razão de o número de termos parciais da soma ser infinito. tratava-se, então, da impossibilidade de percorrer uma dada distância. aliás, qualquer distância, por curta que fosse.


A-----B3-----B2----------B1----------------------------B

.

parte-se da suposição de que uma certa distância tem infinitos pontos,
     [e que um corredor
(ou uma tartaruga)
teria que passar por todos eles antes de atingir a linha de chegada.

.

o corredor nunca atinge seu objetivo.
nada é tão inútil quanto um alvo.

se a flecha está parada, como poderia estar em movimento?

.

Aquiles, perdoe-me.
Não gaste os teus calcanhares.


§


tive a prova definitiva da existência de deus


marcas de sisal nos antebraços que não esticam nunca.

qualquer outro teria passado indiferente:
eu paro, por falta do que fazer.

.

o cotovelo dele não vira ao contrário, como o meu.
parece um monstro sem cabeça, mas é só um sujeito
algo franzino
com o pescoço apoiado no espaldar de madeira.

tem resignação de uma cabeça aplainada
que espera a guilhotina.

.

dois nós firmes nas extremidades da corda esticada
perturbada de quando em quando
por pequenos, nítidos socos.

tudo é mórbido. essa é minha última grade ou portão.

.

os pés dianteiros são morcegos que esvoaçam.
esticam e encolhem num movimento irregular/ atordoado
como se alguém sacudisse escandalosamente
um livro de salmos.

ah, esses mamíferos cegos de radar infalível –
sua precisão é insuportável.

.

agacho atrás de uma moita para não fazer xixi nas calças.
enquanto minhas coxas se molham
cantarolo uma ode

- qualquer coisa que esgarce a oposição entre
carne mortificada x
espírito eterno e sublime.


não dá muito certo, mas sinto uma espécie de alívio.
anacrônico, não faz mal.

.

não espero salvação. a gente não se livra de um susto assim tão fácil.

.

por falta de milagres, faz tempo que eu não durmo –
quisera ter a convicção grosseira dos santos.

.

mas entenda:
é imprescindível que haja uma grade ou portão fechado.
duas colunas. um gancho.
qualquer coisa capaz de suportar dignamente
esses nós paralelos intermináveis.

.

de olhos fechados
o grunhido cheio de muco de um
penitente


nenhum céu adiante
nem mesmo inventado

.
.
.


Poema inédito de Ítalo Diblasi

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Na série de inéditos da Modo de Usar & Co.,
um texto de Ítalo Diblasi.



Gaia Ciência 

é proibido
cuspir
no prato

é proibido
dormir
no asfalto

é proibido
trepar
no mato

é permitido
açoitar
as massas

é permitido
erigir
as farsas

é permitido
morrer
às traças

paremos, portanto, de fingir
que Nietzsche estava errado
quando enlouqueceu às portas
de explicar esse caralho




§





Ítalo Diblasié um poeta brasileiro, inédito em livro, nascido no Rio de Janeiro em 1988.

.
.
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Mariana Collares

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"Isto" - Direção, poema, voz e teclados: Mariana Collares.
Direção de Arte, Edição e Mixagem: Marcello Sahea.
Música: sample de "I Feel Love" - Donna Summer.
HD video | 4'30"
2014

Mariana Collaresé uma escritora e performer brasileira, nascida em Pelotas, Rio Grande do Sul, em 1972. Publicou Devaneios Literários, Crônicas, em 2010. Publica textos em sites e portais literários no Brasil e exterior. É colunista na revista Benfazeja Comunidade Literária (digital) e desenvolve os projetos Fridas (autorretratos), Eu sou uma outra (multileituras) e performances site specific. Seus vídeos já participaram de mostras de vídeo-poesia e ilustraram revistas digitais. É apresentadora do programa Entre Umas & Outras, da Rádio Elétrica, e prepara o seu primeiro romance - Manhãs de Abril (ainda sem editora).

Sobre o vídeo aqui apresentado, Mariana Collares escreve: "Em outubro de 2013 fiz um convite a algumas mulheres via facebook. Havia escrito um poema que tratava da coisificação da mulher e pretendia ilustrá-lo através de um vídeo, contando com a participação de outras mulheres que tivessem o mesmo pensamento. Daí surgiu o projeto que finalmente encerro, não somente eu, mas com a ajuda e a direção sempre certeira de Marcello Sahea. Agradeço às mulheres que ousaram participar do projeto, enviando fotos de seus arquivos pessoais. Agradeço também a quem, mesmo de longe, compartilha deste nosso anseio de contribuir para o início de uma efetiva conscientização acerca deste tema, ainda tão polêmico, e que hoje encontra seu ápice através de diversas manifestações no mundo todo."






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Centenário de Nicanor Parra, viva o vivo.

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Nicanor Parra nasceu a 5 de setembro de 1914, em San Fabián de Alico, no Chile. Formou-se em matemática e física em Santiago do Chile no ano de 1938, logo após estrear com o volume Cancionero sin nombre (1937). Sua influência gigantesca e tão saudável sobre a poesia do continente americano começa com o lendário volume Poemas y antipoemas (1954), sem dúvida um dos livros de poesia mais influentes do século XX. A este seguiram-se La cueca larga (1958), Versos de salón (1962), Manifiesto (1963), Canciones rusas (1967), Obra gruesa (1969), Los profesores (1971), Artefactos (1972), Sermones y prédicas del Cristo de Elqui (1977), Nuevos sermones y prédicas del Cristo de Elqui (1979), El anti-Lázaro (1981), Plaza Sésamo (1981), Poema y antipoema de Eduardo Frei (1982), Cachureos, ecopoemas, guatapiques, últimas prédicas (1983), Chistes para desorientar a la policía (1983), Coplas de Navidad (1983), Poesía política (1983), Hojas de Parra (1985), Poemas para combatir la calvicie (1993), Páginas en blanco (2001), Lear Rey & Mendigo (2004) e Discursos de Sobremesa (2006).


--- Ricardo Domeneck

§

POEMA DE NICANOR PARRA
em tradução de Jorge de Sena.


"Me retracto de todo lo dicho"

Antes de despedir-me
tenho direito a um último desejo:
Generoso leitor
                      queima este livro
não representa o que eu quis dizer
apesar de ter sido escrito com sangue
não representa o que eu quis dizer.

A minha situação não pode ser mais triste
fui derrotado pela própria sombra:
as palavras vingaram-se de mim.

Perdoa-me leitor
leitor amigo
que não possa despedir-me de ti
com um abraço fiel:
despeço-me de ti
com um triste sorriso forçado.

Pode ser que eu não seja mais do que isso
mas escuta a minha última palavra:
retracto-me de tudo o que disse.
Com a maior amargura do mundo
retracto-me de tudo o que disse.


(tradução de Jorge de Sena)

:

Me retracto de todo lo dicho
Nicanor Parra

Antes de despedirme
Tengo derecho a un último deseo:
Generoso lector
                      quema este libro
No representa 1o que quise decir
A pesar de que fue escrito con sangre
No representa lo que quise decir.

Mi situación no puede ser más triste
Fui derrotado por mi propia sombra:
Las palabras se vengaron de mí.

Perdóname lector
Amistoso lector
Que no me pueda despedir de ti
Con un abrazo fiel:
Me despido de ti
con una triste sonrisa forzada.

Puede que yo no sea más que eso
pero oye mi última palabra:
Me retracto de todo lo dicho.
Con la mayor amargura del mundo
Me retracto de todo lo que he dicho.

de Obra gruesa (Santiago, Universitaria, 1969)

§

DOCUMENTÁRIO (EM 3 PARTES) SOBRE NICANOR PARRA








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Sosígenes Costa (1901 - 1968)

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Sosígenes Costa foi um poeta brasileiro, nascido em Belmonte, Bahia, a 11 de novembro de 1901. Teve  parte de seu trabalho reunido no volume Obra Poética (1959), mas foram os esforços críticos de José Paulo Paes que trouxeram maior atenção ao trabalho do poeta baiano, quando, em 1978, Paes passa a trabalhar com a obra do poeta. O longo poema Iararana, escrito em 1933, seria editado em 1979, com ilustrações de Aldemir Martins. Em 2001, a sua produção poética foi reunida num volume único, Poesia Completa, publicado pelo Conselho Estadual de Cultura da Bahia. Sosígenes Costa morreu no Rio de Janeiro, a 5 de novembro de 1968.

Foi contemporâneo de poetas brasileiros como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Henriqueta Lisboa e Cecília Meireles, trazendo algo muito seu à poesia da geração.

Ainda preciso dedicar maior atenção à sua obra, mas intuo haver em Sosígenes Costa uma poesia singular, em que vários aspectos do Modernismo brasileiro parecem encontrar um luminoso ponto de equilíbrio. De passagem pela Baía de Todos-os-Santos, quis prestar esta homenagem a um poeta brasileiro por quem nutro um interesse que vem desde a leitura de textos críticos de José Paulo Paes sobre o autor e a descoberta de alguns poucos poemas disponíveis na Rede. Parece-me um poeta de um coisismo particular, numa linguagem marcada por sua localidade, como no mineiro Dantas Motta, poetas que, ao lado de outros – como o paulista Orlando Parolini, a mineira maravilhosa Henriqueta Lisboa e o paraense Max Martins, precisam ser re/lidos e voltar (ou passar) a circular, permitindo-nos enriquecer nossa visão sobre a poesia brasileira moderna.

--- Ricardo Domeneck

§

POEMAS DE SOSÍGENES COSTA

A chuva vem cair na Ingauíra


Cada pingo d'água
é um cabelo da chuva.
Cada gole de água do arco-íris
é um aguaceiro.
Essa lagoa é o copo
por onde bebe um gigante.
Para a boca do arco-íris
só uma taça redonda.

Para a sede de um gigante
só a água de um pote rodeado de flores.
É na Lagoa dos Cocos
que o arco-íris bebe água.
Fui ver um dia
esse copo de flores.

Estômagos cheios
da água de um coco,
as nuvens vêm vindo.
Barriga pesada
com a água de um coco,
as nuvens vêm vindo.
Lagoa dos cocos,
Bandeja redonda cheia de copos de água.

Hi! vem chuva como cabelo de sapo.
Cada pingo d'água
é um cabelo da chuva.
Cada gole de água do arco-íris
é um aguaceiro.
E cada gota de orvalho
é um diamante pingo d'água.

Hi! vem chuva como cabelo de sapo.
Aqueles pássaros enormes,
que não podem voar direito,
de tanta água na barriga,
vão cair nesta volta do rio.

Adília, minha irmã, prepare-se:
Sobre a nossa casa vão cair do céu
sete copos de água.

Teu banho de hoje, Sinhá,
será dentro de um copo d'água.

§

O pavão vermelho

Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.

§

Duas festas no mar

Uma sereia encontrou
um livro de Freud no mar.
Ficou sabendo de coisas
que o rei do mar nem sonhava.

Quando a sereia leu Freud
sobre uma estrela do mar,
tirou o pano de prata
que usava para esconder
a sua cauda de peixe.
E o mar então deu uma festa.

E no outro dia a sereia
achou um livro de Marx
dentro de um búzio do mar.

Quando a sereia leu Marx
ficou sabendo de coisas
que o rei do mar nem sonhava
nem a rainha do mar.

Tirou então a coroa
que usava para dizer
que não era igual aos peixinhos.
Quebrou na pedra a coroa.

E houve outra festa no mar.

§

O pôr-de-sol do papagaio

O papa-vento nos jardins de maio
e o verde no seu mar de leite.
O mar já não é azul, é verde-gaio
num clarão que é relâmpago de azeite.

Se o mar é belo sem que a tarde o enfeite
quanto mais se o enfeitar o sol de maio.
O mar do papa-vento é o papagaio
e o céu do verde papa é o papa-leite.

Latadas cristalinas em desmaio.
Tombam flores do céu, meu papagaio.
E o papa-vento é de cristal e leite.

Deite leite, meu mar, pro papagaio.
Que o papagaio em verde se deleite
e não se enfeite de outra cor em maio.

§

A Cabeleira da Musa

No teu cabelo há tardes outonais
amarelando o rio e os arvoredos.
Há cidades de mármores e rochedos
de açúcar-candi, bronzes e cristais.

No teu cabelo rútilo há milhões
de abelhas roxas fabricando favos
para o mel que roubam dos craveiros bravos
dos jardins levantinos de anões.

No teu cabelo há trêmulos trigais
de espigas fulvas e há gentis vinhedos
que molhas de perfume com teus dedos
com trinta anéis de pérola ovais.

No teu cabelo se abrem dos pavões
as estreladas caudas, dentre as rosas.
E brilham nela as pedras preciosas:
rubis, safiras, sárdios, cabuchões.

Nele há brondões, revérberos, fanais.
Pois isso atrai cornígeros besouros.
Por isso pombas e canários louros,
sempre de noite, feiticeira atrai.

No teu cabelo há reinos de sultões.
Teu cabelo relumbra como uns matos
cheio de olhos fosfóricos de gatos
e de escamas de fogo dos dragões.

Na tua cabeleira há catedrais.
No teu cabelo rola e ferve estranha
cascata de falerno e de champanha
por entre alabastrinos jasminais.

No teu cabelo vive uma serpente
que descasca por hora uma imponente
pele conteúdo bíblica signais.

No teu divino e esplêndido cabelo
rugem tigres de azul-celeste pêlo
e de unhas de ouro, lúcidas, fatais.

No teu cabelo. Musa Helena e saiba,
queimam-se incenso e nardo azul da Arábia
e outras sortes e espécies aromais.

No teu cabelo há um céu com muitas luas
iluminando cem mulheres nuas
que se banham num lago entre juncais.

No teu cabelo há sílfides e bruxos
dançando dentro dos jorros de repuxos
e há templos de âmbar louro e há muito mais:

Há globos de ouro e estames de açucenas
e cem faisões de prateadas penas,
- Filha do sol, princesa dos corais!

§

do poema longo Iararana

Esse bicho da Oropa tinha parte com o diabo.
Esse bicho da Oropa foi o diabo neste rio

Ele fez guerra com espingarda aos cabocos do mato

tinha corpo de cavalo e andava de quatro pés

Mas ele dava na gente de taca e facão
e ensinou a gente a tirar broto de cacau
e o cacau desbrotado ficou parrudo
e bonitão como danado.

(Roda)

E o cacau foi chamado o alimento do céu,
a baba-de-moça comida na lua.
E o cacau ficou na coroa da lua,
e os meninos fizeram a roda na rua,
pedindo à lua manjar do céu.

         Carinha de anjo,
         moça do céu,
         bença, dindinha,
         me dê chá do céu,
         me dê chocolate,
         me dê bombom,
         baba de lua
         com manuê.

         Chá de santinho
         me dê me dê,
         café de anjo
         me dê me dê.

Dindinha, lua,
carinha de anjo,
me dê chá da lua
mais uma broa
pra meu pintinho
que saiu do ovo
que pinta pôs,
vestido de pelo
como um morcego,
feito uma poncã
de pó-de-arroz.

Me dê chocolate,
me dê bombom,
a teobroma
de seu Linneu.

A lua batiza
menino que nasce
depois que o cavalo
andou na lua
botando aquilo
que faz bombom.

         E o retrato do cavalo ficou na lua
         e ainda se vê o bichão na lua
         que está redonda como um botão.
         Não é S. Jorge que está na lua.
         Quem está na lua é aquele bichão.

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Palhaço verde

Palhaço verde, o mar na areia ruiva
grita e gargalha, salta e cabriola,
como quem sofre, lírico, da bola.

E, querendo assombrar as moças, uiva,
brama, arremete e explode, o mariola,
abrindo uma alvacenta ventarola.

O mar é sempre o mesmo rapazola!
O mar é sempre o mesmo brincalhão
que, todo verde pela areia ruiva,
faz-se palhaço, bobo e valentão.

Vinde ver o bufão de roupa verde,
ver o bobo da corte de Netuno.

Na tarde cor-de-rosa, a roupa verde
do mar parece o tal pavão Juno.

Cai a noite. Do mar a roupa verde
fica de um verde negro, verde bruno.

Crianças, vinde à corte de Netuno
ver o palhaço verde gracejar.

Crianças, vinde ver cabriolar
pela areia amarela o verde mar.

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Michelle Mattiuzzi

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Michelle Mattiuzzié uma escritora, pesquisadora do corpo e performer brasileira, nascida em São Paulo, em 1980. É mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia. Criadora de performances como Merci Beaucoup, Blanco! (2012) e Pérolas aos porcos (2013), colabora ainda com os coletivos GIA (Bahia) e OPAVIVARÁ (Rio de Janeiro), além de ser residente permanente da Baluar7e Casa de Arte-BA.



Participou da III Mostra de Performance na Galeria Cañizares, da Residência Capacete, do 3º Encontro das Redes das Artes Visuais no Recôncavo, do Perfor1 - Fórum da Performance no Centro Cultural da Espanha, e ainda do projeto da artista Paula Carneiro, série “Para o herói: experimentos sem nenhum caráter - Corpo Sobre Papel”. A artista vive e trabalha em Salvador.



Conheci a artista em Salvador, em minha última passagem pela cidade, num acaso que não pode ter sido acaso. Começo a entrar no universo de suas poderosas intervenções agora, e esta postagem será um trabalho-em-progresso.

Leia abaixo o texto "Breviário sobre uma ação performática: só entro no jogo!", de Michelle Mattiuzzi, extraído de sua página pessoal.

--- Ricardo Domeneck

§



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TEXTO DE MICHELLE MATTIUZZI


Breviário sobre uma ação performática: só entro no jogo!

por Michelle Mattiuzzi

Escrever sobre as experiências, impressões e pensamentos é um exercício de vida, uma ação que me contextualiza no tempo/espaço. Aprecio quando essa escrita deriva de situações informais como conversas de mesa de bar e dos encontros furtivos, onde os devaneios transformam-se em produção de subjetividade. Valorizo também as palavras que me saem como uma escrita automática, despojadas de nexos de sentido, pois elas borram e tracejam fragmentos do que penso como ação, performance e vida. A escrita é uma maneira de confabular com os meus (dís)pares sobre performance art e entender seus deslocamentos e diálogos nas conjecturas lançadas. Para isso abordarei impressões e etapas do processo de criação sobre a minha maneira de pensar a performance.

Começo a contar sobre a minha existência na Bahia.

Salvador, Vinte e Oito de Fevereiro de Dois mil e Doze. Oito horas da manhã é verão. Meu corpo transpira na cama, essa transpiração é como uma gosma que cola no lençol. Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Começa a minha angústia, acordo assustada me levanto. Meu corpo nesse momento palpita como um sino que acaba de badalar; ando de um lado para o outro. Andar naquele momento fazia meus pensamentos se deslocarem, como o meu corpo, de um lado para outro. Era importante andar para refletir, refletir em movimento. A casa tinha sensação térmica de um forno à 210°C, um calor imenso. Nesse momento, vivo na comunidade Vila Eliseu, no centro de Salvador; sou uma forasteira nesse lugar, fazem menos de seis meses que vivo aqui, qualquer movimento/ação/intenção que muda o cotidiano provoca alteração no espaço e aumenta a capacidade de diálogo/comunicação com as pessoas que vivem nele.

Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou... Quais seriam as ações que efetuaria naquela cidade? Como produzir um diálogo? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou, não vou!? Vou...

As ações começam a serem esboçadas, a performance é lançada no papel da vida. É assim que construo todos os dias, uma camada de vida que diz muito sobre a minha subjetividade  e também sobre as minhas escolhas na performance art. Além de compor com intenções ideias e experiências, é assim, amontoando vida e performance que ando por espaços que constroem e destroem meus afetos, lapidam minhas memórias e bagunçam minhas escolhas. Meus pés ocupam as frestas, eles sentem cada passo; somente a experiência do meu corpo pode dar conta de tudo isso que vivo durante as ações performáticas e principalmente diante a vida/arte ou arte/vida. Meu corpo modifica-se a cada instante de tempo. Meu corpo pulsa. Meu corpo age, meu corpo performa. Como efetuar deslocamentos de ações? Como relacionar corpo, estética e política através de micro-ações? Como criar poéticas com micropolíticas?  Como não falhar, sabendo que isso pode acontecer a qualquer momento. Essas questões são propulsoras para o planejamento das minhas ações em arte e vida. Elas pulsam a todo minuto, a todo momento as respostas saem como outras questões.E muitas vezes elas tornam-se ações. Será que existe apenas uma resposta para a mesma intenção?

Tinha certeza que praticaria performance e que seria um momento de lançar minhas questões sobre arte , vida e política. Essa é a maneira que estabeleço um diálogo, sendo  assim pressuponho, que  posso dinamizar nossas relações e maneiras de pensar com  o corpo seu contexto e fortalecer uma das potências da performance: ação em tempo real. Não sabia muito sobre o meu destino, sabia que haveria a terceira edição de um encontro (FIAR – 3º  Festival de Intervenções e Artes do Recôncavo) ; conhecia pouco a cidade de São Félix, mas já havia apreciado sua vida noturna em outra ocasião. Com tenacidade lancei-me a ação de andar com peruca e óculos escuros. Esse é um dos meus programas . Ação performática como possibilidade de experimentar estados, provocar contaminações, reinterar o caos e gerar instabilidades de diversos graus. Eu acreditava que poderia provocar uma intervenção no espaço, mas não sabia que a minha provocação seria recebida com tanta intensidade.  Ao sair de casa a vizinhança intriga-se com olhares curiosos e soltando algumas piadinhas, os moradores da comunidade manifestam-se  com a minha presença:  “Que porra é essa?”; “Que que isso?”; “Por que você está fantasiada, se acabou o carnaval?”; “Pra quê você vai sair vestida desse jeito?”; “Qual a função dessa peruca?”; “Isso né mulher ...” – esses foram os ruídos que apareceram durante a primeira aparição na rua,ou melhor, na comunidade em que morava. Ali começo construir a ação.

Após essas primeiras interferências públicas, meu corpo começa perceber quais os possíveis diálogos,  e se prepara para traçar  uma atitude para defrontar com o desconhecido. Sinto meu corpo palpitar, o tônus se modifica a minha presença no espaço também, parece que foi ativada uma bomba relógio; as sensações corpóreas eram as intensidades que serviam de potência para atitudes e conversas estabelecidas com as pessoas em trânsito e que de alguma forma estabelecia um contato (olhar, falar, seguir, xingar). A memória que cada interlocutor acessava diante dessa figura (eu) deslocada em seu tempo/espaço eram também argumentos para o meu posicionamento, como as pessoas reagiam diante as provocações são os agentes da proposição, esses que ativam a existência e um diálogo eminente no fazer da performance que proponho; um diálogo em tempo real.

  Na rodoviária, no guichê para comprar passagem para São Félix, as atendentes se espantam com o meu visual, elas comentam entre si alguma coisa. Não posso ouvir o que elas dizem, mas os olhares denunciam que não compactuam com a minha imagem, apesar de serem cúmplices da minha ação. Na espera do ônibus para São Felix as pessoas na rodoviária comentam umas com as outras sobre o meu modo de estar. Com peruca branca estilo colonial e óculos escuros, provoquei curiosidade em todos que ali transitavam. A ação performática, como um acontecimento naquele tempo/espaço, modificava a rotina daquele ambiente de chegadas e partidas. Ser e estar deslocada dos padrões estabelecidos pela normatividade social, causava um incomodo geral.

“[...] Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso Corpo Sem Órgãos, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria.” (DELEUZE e GUATTARI 1992, p.11)

Meu corpo vibra. Performar um programa de ações é uma possibilidade de lançar questões, ou melhor, me lanço no espaço,  aproveito todas as fissuras coloco meu corpo em risco diante todos os preconceitos  e questiono todos os adjetivos lançados sobre ele. Provoco o diálogo em tempo real. Nessas ações ressalto meu corpo nu , e incito um posicionamento político e estético diante as normas vigentes. Lanço meu corpo, exibo minhas partes mais íntimas, questiono todos os adjetivos lançados sobre ele de forma artística e convido quem estiver por perto para ser cúmplice da minha ação.                                                      
“Quê que é isso?” – Uma grande fofoca se instala na rodoviária. Meu percurso até São Félix foi movido por interferências de várias naturezas, o diálogo foi estabelecido com os outros passageiros durante a viajem. A cada parada, durante o trajeto, qualquer  pessoa que se deparava com a minha figura  demonstrava estranheza. Ação em tempo real sendo alimentada por todos, a performance  estabeleceu um diálogo, criou relações  e possibilidades de pensar o corpo e seu contexto. Foi a viagem mais divertida que fiz em toda a minha vida.

Ao descer do ônibus em São Felix, sigo caminho ao Centro Cultural Dannemann, até chegar no espaço, percebo e sinto os olhares curiosos das pessoas da cidade. Os olhares eram como metralhadora de guerra, sentia por todos os poros de forma a atravessar minha percepção. Nesse momento, meu corpo se modifica, se apresenta de outra forma.Meu corpo cria uma estratégia de guerra para defrontar com o desconhecido. Minhas mãos suam, meu corpo treme. Ele se impõe no espaço, de forma a confrontar com os padrões. Sigo andando!  “Quê que é isso?”

Só entro no jogo.

Chego ao Centro Cultural Dannemann, é hora de bate-papo. O tema é “As redes colaborativas de arte”, os debatedores são participantes de coletivos, respectivamente na ordem de apresentação: Milena Durante – EIA/SP; Patrícia Francisco – RS e Rosa Apablaza – Desislaciones/Chile. Acompanho as conversas, me distraio. Vejo um olhar, meu rosto está suado e uso óculos escuros. Ouço uma risada. Vejo e finjo que não é comigo, continuo com o mesmo semblante e sentindo meu corpo transpirar, pulsar, tremia de medo. Lançar num ambiente, em que a discussão é intervenção urbana me causou um pequeno desconforto. Sentia os olhares de todos os presentes. Meu corpo se transforma numa bomba de ansiedade, fico roendo unhas. Após a apresentação de cada um dos participantes no bate-papo, houve a abertura para o público ali presente. Aproveitei o ensejo, e fiz algumas perguntas. E ficava um mistério no ar, quem é essa figura de peruca branca e óculos escuros? Porque ela está assim? O que é isso? Pra que serve isso? Isso é arte? – Foram essas perguntas enunciada pelo “senso-comum”, espantadas com a minha presença, e outros tipos de interferência que surgiram na pequena cidade de São Félix - Recôncavo Baiano.

No segundo dia de FIAR, me lancei no espaço de forma excêntrica. Atravessei a cidade de forma sensual, andava rebolando. Usando peruca rosa, óculos escuros e um corpete de oncinha. Seguia sempre andando e rebolando em direção à São Félix, passava pela rua sem olhar as pessoas, mas percebia seus movimentos em relação a minha presença sensual. As pessoas falavam, gritavam. Um grupo de homens que estava sentado em frente a rodoviária me aplaude. É o ápice da interação. Sair na rua usando corpete de oncinha e peruca rosa, tornou-se um acontecimento. Meu corpo é um acontecimento. Meu corpo invadiu aquele espaço, e interviu de forma a atacar o cotidiano das pessoas das cidades de Cachoeira e São Félix. Aqui utilizo a palavra ataque, porque a experiência que estava provocando naquele ambiente  possuía uma força bélica. Meu corpo nesse momento era uma imposição para aqueles que o defrontava.

Todos os dias meu programa de ações alterava-se, pois lançava-me a uma experiência desconhecida, de acordo com a interferência das pessoas meu corpo tomava outra posição no espaço, alterava o tônus. Além disso, esbocei a ação pensando em alternar as perucas com cores e cortes diferentes; corpete de oncinha, óculos e sapato sempre o mesmo. No terceiro dia do encontro, foi a maior sensação intervir nesse espaço que a cada dia ficava mais conhecido para o meu corpo. Estava sendo observada por todos, fazia microações durante esse trajeto. Arrumava a peruca, abria bolsa, acende cigarro, retirava parte do corpete da bunda, enfim “tocava o terror” com pequenas ações. Quando queria interagir com as pessoas, perguntava as horas, ou pedia informações para me localizar na cidade. Nesse dia, aconteceu algo inusitado. Era fim de turno de uma escola, apareceram 50 crianças de aproximadamente 8 à 12 anos de idade que me acompanharam até a rua principal de Cachoeira rindo muito da minha aparência e falando coisas de seu imaginário – “Olha a sereia do mar”, “Credo o cabelo dela é roxo”, “ Que roupa feia”, “Tia, você vai onde assim?”- Foi um dia curioso, não esperava o fim de turno da escola. No terceiro dia, já acostumada com a cidade, tive que lidar  com essa interação inesperada. Meu corpo se reorganiza novamente com essa nova informação, minhas mãos e pés suam. Sempre submeto meu corpo a  situações, confronto meu corpo à reação da audiência; um componente chave dessa experiência na forma de atenção mental ou até mesmo efetiva: tocar na obra (em mim). No momento da caminhada, tive a sensação que poderia ser tocada por uma das crianças. Era muita euforia, era muita interferência sonora, eram olhares.

“O performer não improvisa uma idéia: ele cria um programa e programa-se para realizá-lo (mesmo que seu programa seja pagar alguém para realizar ações concebidas por ele ou convidar espectadores para ativarem suas proposições). Ao agir seu programa, desprograma organismo e meio.” (Eleonora Fabião 2008,p.237)

As interferências das pessoas sobre o meu corpo e as experiências que, no momento da ação, me atravessavam, são as respostas da comunicação que estabeleci durante o  percurso na cidade de São Félix. O meu corpo é a minha fala e o espaço que ocupo compõem os modos de comunicação.
No mesmo dia após atravessar a ponte entre as cidades, me deparo com um grupo de homens sentados em frente à uma borracharia, eles me olham, desejam o meu corpo suado era assim que via os seus olhares, de desejo sobre o meu corpo. Num primeiro momento senti um incômodo, mas segui meu caminho andando, rebolando, provocando mais a situação de ser desejada. Chego ao Centro Cultural Dannemann, ia acontecer o último bate-papo do encontro. Sento numa cadeira de praia coletiva, acho engraçado e logo imagino que é um objeto de intervenção urbana. Chegam mais pessoas, começamos uma aproximação. Conversas sobre o calor, sobre a cidade e as atividades que estavam acontecendo começaram a rolar,  pareciam não ter nexo, tudo o que estava acontecendo ali. Mas era a maneira que as coisas estabeleciam naquele lugar. Nesse instante, um rapaz começa a amarrar uns toneis com cordas, minha curiosidade não permite o silêncio logo pergunto: “O que você está fazendo?” – Ele sorri e se apresenta: “Muito prazer eu sou Piton”- Eu faço um trocadilho e dou risada: “Sem prazer, Michelle.” Em seguida, vejo o grupo de homens na borracharia. Eles estão acenando. Me levanto e vou até lá, eles estavam realmente acenando pra mim.

Chego na borracharia, todos se apresentam pra mim. Não lembro o nome de ninguém, mas lembro da nossa conversa. Eles estavam comemorando aniversário, tomando cerveja e celebrando a vida. Foi quando um deles me perguntou: “Porque você está na rua gostosa, desse jeito?”. Novamente sinto meu corpo palpitar, estava defronte a uma situação delicada não sabia como resolver, e responder imediatamente o que aquele homem havia me perguntado. Isso que descrevo, foram apenas segundos. Pois logo, lancei a resposta. “ Pra saber se os homens sabem se comportar diante uma figura gostosa.”- Todos riem nesse momento, aqueles segundos de tensão é quebrado. Eles me oferecem um copo de cerveja e uma cadeira. “Aproxime-se fica um pouco conversando com a gente, não vamos fazer nada. Só vamos te desejar com os olhos.” Aceitei o convite. Ficamos conversando sobre: a minha roupa, de onde sou, porque sou, e sobre a performance. Foi quando me posicionei diante aqueles homens que me desejavam com o olhar. Como performer, utilizo elementos da minha biografia como situação fundamental. Gosto de lançar meu corpo para o outro, gosto de saciar o desejo do corpo com o corpo do outro. Essa e outras proposições com o meu corpo, evidenciam minhas características, exibem meu tipo, ou melhor, o estereótipo social que cabe a mim dentro das classificações sociais. Esse foi o meu discurso, sem essa formalidade. Realmente um encontro notável, estive sentada em frente à borracharia com corpete de oncinha, peruca e óculos escuros  com um grupo de homens me desejando, eu ali falando sobre a minha experiência de vida e falando sobre a performance. Antes de sair dessa conversa, tirei fotos com todos eles. Foi uma experiência no mínimo curiosa, queria saber o que passava na cabeça dos transeuntes diante aquela situação.Diante a minha provocação.  Após essa experiência, que durou aproximadamente quarenta minutos, voltei ao Centro Cultural Dannemann. Voltei a conversar com os participantes do encontro, continuamos o nosso bate-papo de aproximação. Foi fundamental essa conversa, pois tinha acabado de experienciar uma situação diferente, ou melhor, não convencional. Estar em ação e as pessoas que são cúmplices, participarem dela sem pudor, mas com muita curiosidade. Foi uma novidade. Estava falando sobre performance com os homens da borracharia de forma sedutora, deslocava a fala acentuando as palavras de forma a torná-las sensuais, falava de posicionamento político e o desenvolvimento de zonas de desconforto com ações performáticas: do jeito mais sedutor. Depois dessa conversa, com pessoas que não conhecia muito bem,  quis saber mais sobre esse flutuador (Intervenção Urbana GIA – 2008). Foi assim que descobri quem eram os coletivos GIA-Ba e OPAVIVARÁ-RJ. Iniciei trocas e parcerias com os coletivos, no FIAR. Tudo começou com uma conversa, logo tornou-se parte da intervenção. Com a Intervenção do Flutuador (GIA), no Rio Paraguaçu, me tornei musa. Foi assim, que surgiu a existência da Musa Mattiuzzi na Bahia.

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Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1999.

FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Revista Sala Preta. Vol.8, n.1. São Paulo: 2008. http://revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/263

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"Copacabana Mon Amour" - Rogério Sganzerla

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Copacabana Mon Amour (1970) - direção de Rogério Sganzerla.


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al-Khansā’ (século VII)

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Tumāḍir bint ʿAmr ibn al-Ḥarth ibn al-Sharīd al-Sulamīyah, melhor conhecida como al-Khansā, foi uma poeta árabe do século VII. Nascida em Néjede, hoje na Arábia Saudita, é uma das mais importantes autoras do século e foi contemporânea de Maomé, convertendo-se eventualmente ao Islã. Famosa por seus cantos fúnebres, venceu várias competições públicas, especialmente com os que escreveu aos irmãos mortos em guerra, Ṣakhr e Muʿāwiyah. 

Contou-me o compositor palestino Samir Odeh-Tamimi, ao recomendar a mim o trabalho da poeta, que ela não descansou até que seus irmãos fossem vingados. É uma das mais famosas poetas da língua. Os poemas foram extraídos do livro Vozes femininas: gêneros, mediações e práticas da escrita, com organização de Flora Süssekind, Tânia Dias e Carlito Azevedo, mais precisamente de um texto de Alberto Mussa sobre a poesia árabe feminina.

Mesmo em tradução, percebe-se a força da linguagem de al-Khansā, seu coisismo e precisão de vocabulário, a força afetiva que não desanda em choramingo, mas alça-se em potência vingativa.

Dedico esta postagem a meu amigo Samir Odeh-Tamimi.

--- Ricardo Domeneck


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POEMAS DE AL-KHANSA


28.


Se não és capaz de controlar tua emoção, nem de 

                 te consolares
Eis inúmeras viagens noturnas de Yalban até al-Uqda, 
                 em lombos jovens de camelas magras
Disse eu a um companheiro assustado: presta atenção 
                 nos cavalos
E chama por um dos grandes quando tiveres alcançado 
                 o ponto mais alto do mirante, então observa:
Verás de imediato, logo abaixo, um cavaleiro vagando.
Enfia então os açoites nos flancos arredondados desse 
                 puro-sangue, tal uma camurça de cor cinza;
E corre; e afunda nele as pernas até que a água brote e 
                 transborde, como da vasilha carregada pela 
                 mão esquerda.


§

31.


Filhos de Sulaym! Quando deparardes os homens de Faqas 

                  num lugar estreito e de difícil acesso
Cumprimentai-os com vossos sabres, vossas lanças e uma
                  saraivada de golpes, na noite negra de alcatrão.
Fazei deles hordas debandadas, à memória de Sakhr, cuja
                  morte ainda não foi vingada,
E à de nossos cavaleiros, mortos lá embaixo, numa batalha
                  decidida apenas pelo destino.
Ele enfrentou Rabia no combate, e este lhe mergulhou no 
                  peito
Uma lança reta, de nós flexíveis, de ferro aguçado como a 
                  cabeça de um abutre.
E Rabia, neste mesmo instante, salvou-se, não interrom-
                  pendo a corrida desvairada.
Um cavalo esbelto e delgado levou-o para longe das lanças
                  de ferro cortante, como uma águia que abando-
                  na o ninho
De Khalid nos apoderamos, mas Awf o protegeu e libertou,
                  por sua própria conta.
Se em relação a Khalid houvessem seguido nosso conselho,
                  não continuaria ele a infligir tão duro tratamento 
                  aos cavalos, até o fim dos tempos.


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Octavian Paler (1926 - 2007)

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Octavian Paler foi um poeta e jornalista romeno, nascido na cidade de Lisa, Romênia, a 2 de julho de 1926. Formado em filosofia pela Universidade de Bucareste, foi perseguido pela polícia secreta de Nicolae Ceauşescu por suas atividades contra o regime comunista. Publicou, entre outros, Umbra cuvintelor (Sombra de palavras, 1970), Mitologii subiective (Mitologias subjetivas, 1975),  Polemici cordiale (Polêmicas cordias, 1983) e Viaţa ca o coridă (Vida como toureiro, 1987), Don Quijote în est (Don Quixote no leste, 1993) e Autoportret într-o oglindă spartă (Autorretrato ante o espelho quebrado, 2004), do qual foi extraído o poema abaixo, em tradução de João Monteiro.

Dedico esta postagem a minha amiga romeno-brasileira Dorothy Lenner, que me apresentou o trabalho do poeta.

--- Ricardo Domeneck

§

POEMA DE OCTAVIAN PALER

Autorretrato ante o espelho quebrado [Autoportret într-o oglindǎ spartǎ]
Octavian Paler

Quando finalmente seriam os sonhos mais tangíveis, dei-me conta: também as paixões envelhecem. Não sou capaz de assegurar minhas próprias vontades. Não me faltaram, decerto, metas falsas e entusiasmos pueris. Jamais minha imaginação concebeu um mundo sem ti. Ainda que não assumas o comum e paranóico orgulho de imaginar-te ao centro do mundo, algo sempre duro de admitir, faltou-te inteligência ou capacidade para aceitar que ninguém ensina o que quer que seja, exceto retratos amarelados, velhas fotos lançadas à lixeira tão logo partas. Aos outros, somos marionetes bufas, personagens melhores [ou atuantes patéticos]. Todas as certezas que já tive esvaíram-se, sem ressalva alguma. Também as alegrias passadas assumem tom melancólico na lembrança. O passado é vivo, integra o presente e o influencia na proporção do conflito diário. “Daqui a pouco” transforma-se em “mais tarde”. Comecei a perceber que, de atores em cena, tornamo-nos figurantes. E a memória revolve-se em perdão. A lembrança tem um dom estivo, dá-nos o verão como estação de destino. Hoje, sobram-me dúvidas; fito o céu apenas com a esperança de um guarda-chuva, como todos aqui em Bucareste, que, sob nenhum lirismo, admiram e respiram fumaça [quando chove, inevitavelmente pisamos em poças múltiplas]. Associando-me a outros, a atmosfera, de tão dura, não me permite integrar, e acabo sempre só. Porque busco alguma coisa [pouca coisa mas algo] e sou errante num mundo de tudo que te dá nada. A humanidade tomou o lugar do próprio homem. Hoje, preciso apenas de um muro para levantar e, por não o encontrar, eis o desespero. Uma vida medíocre é justificável. A mediocridade das ilusões, todavia, é inescusável. E continuamos sonhando, mais e mais [sem limites]. Por quê? Talvez, possa-me abandonar sobre a imagem quebrada do espelho, sem o temor do pecado. Soube que há uma língua atualmente falada por um homem apenas. Como discutir? O mistério mais sutil é a banalidade. Nesse cotidiano, guardo contigo meu segredo supremo. Seria a criação do universo uma obra banal? As estrelas apontam, todas as noites, nossa morte [ou vida constelada emudecida]. Deus criou o homem e confiou ao diabo a tarefa do desfazimento. O diabo não tem limites. Seria a linguagem o extremo dessa falta?

Atentei-me demais ao detalhe, perdi o foco?
[vou reescrever]


(tradução livre João Monteiro)

(in Autoportret într-o oglindǎ spartǎ, Ed. Albatros, Bucareste, 2007)

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São Paulo: a "Modo de Usar & Co." no Hussardos nessa sexta, com Garcia & Domeneck, e os colaboradores Calixto, Villa, Zeytounlian, Faleiros, Heringer & cavaloDADA

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Na IV edição do SARAU DOS HUSSARDOS, nesta sexta-feira - dia 26 de setembro, os editores convidados são Ricardo Domeneck e Marília Garcia, da Modo de Usar & Co. 

Leitura e conversa com os dois editores, e ainda dos colaboradores da revista:

Fabiano Calixto
Dirceu Villa
William Zeytounlian
Fabiana Faleiros
Victor Heringer
Reuben Da Cunha Rocha

Apresentação vocal: Sandra Ximenez (Axial)

O SARAU DOS HUSSARDOS, organizado pelos editores Vanderley Mendonça (Selo Demônio Negro) e Eduardo Lacerda (Editora Patuá), no Hussardos Clube Literário, reúne poetas, prosadores, editores, artistas e interessados em literatura para leituras e apresentações, encontros, perfomances, debates e cerveja para promover o encontro entre os diversos agentes da cadeia do livro, possibilitar acesso à publicação e pôr frente a frente escritores iniciantes e editores que têm protagonizado as novas tendências do mercado editorial brasileiro.

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Estratão de Sardes (floruit século II)

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Estratão de Sardes foi um poeta que produziu durante a apropriadíssima época do reinado de Adriano (117 - 138), aquele que amou Antínoo. Neste momento indecoroso da política nacional, retorno ao versos da "Musa Puerilis", um dos livros da Antologia Palatina. Aqui, um poema de Estratão de Sardes em tradução de Tatiana Faia.

Aos amigos, digo, recorrendo ao grande João Apolinário e à canção dos Secos & Molhados:

Que essa maioria nos enfrente.
Temos a primavera nos dentes.

Contra os fascistas de todos os tempos, o riso da poesia.

--- Ricardo Domeneck

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POEMA DE ESTRATÃO DE SARDES


«Comecemos com Zeus», dizia Arato;
mas, Musas, hoje não vos aborreço.
Se amo rapazes e com eles me meto,
as Musas do Hélicon, que têm com isso?

:

Ἐκ Διὸς αρχώμεστα, καϑὼς εἴρηκεν Ἄρατος·
ὑμῖν δ᾿, ὦ Μοῦσαι, σήμερον οὐκ ἐνοχλῶ.
εἰ γὰρ εγὼ παῖδὰς τε ϕιλῶ καὶ παισὶν ὁμιλῶ,
τοῦτο τί πρὸς Μούσας τὰς Ἑλικωνιάδας;


Nota da tradutora:

*O texto grego que serviu de base a esta tradução é o que foi fixado por R. Aubreton, F. Buffière e J. Irigoin no Tomo XI (Livro XII) da edição da Anthologie Grecque preparada para as Belles Lettres. Os poemas são os da Musa Paedika. A edição de que me servi é a de 2002. 


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"Sotigui Kouyaté: um griot no Brasil", documentário de Alexandre Handfest

TRÓIADES ::: de Guilherme Gontijo Flores

Comunicado

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"Não é possível, não se pode continuar com a Palavra todo-poderosa, a Palavra que impera sobre tudo. Não se pode seguir admitindo-a em toda casa, e ouvi-la em todos os cantos descrevendo-nos e descrevendo eventos, dizendo-nos como votar, e a quem devemos obedecer..."
Henri Chopin 

Com esta citação, informamos aos leitores da Modo De Usar & Co. que a partir de amanhã, e até o dia 27 de outubro, só haverá poetas vocais e do nonsense na revista.




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Khunashtar-ool Oorzhak (1932 - 1993)

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Khunashtar-ool Oorzhak foi um khoomeizhi de Tuva, nascido na vila de Mungash-Ak em 1932. Um  khoomeizhié um artista vocal do khoomei, o canto gutural de Tuva. Após uma passagem pelo exército soviético, viveu por muitos anos como pastor de ovelhas. É considerado um mestre dos estilosygyt e kargyraa, e tornou-se um dos mais famosos khoomeizhi de Tuva no século XX.

A cena acima foi extraída de um documentário de Werner Herzog, Bells from the Deep: Faith and Superstition in Russia (1993).


Agradecemos a Eduardo Sterzi, que postou o vídeo nas redes sociais, levando-nos ao grande poeta de Tuva. Leia mais sobre Khunashtar-ool Oorzahk nesta página.

Começam hoje os 20 dias de poesia vocal e do nonsense nesta quitanda. Quem tiver ouvidos, que ouça.

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Joan La Barbara

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Joan La Barbaraé uma poeta vocal e compositora norte-americana, nascida em Philadelphia em 1947. Estudou com a soprano Helen Boatwright na Universidade de Syracuse e com a contralto Marion Freschl na prestigiosa Juilliard School, de Nova Iorque.

Desde então, acumulou um repertório que inclui, além das próprias composições, colaborações com John Cage, Robert Ashley, Morton Feldman, Philip Glass, Larry Austin, Peter Gordon, Alvin Lucier, e com seu marido, o compositor Morton Subotnick. Trabalhou também com o coreógrafo Merce Cunningham e o poeta Kenneth Goldsmith. 

As composições acima são do álbum Voice Is the Original Instrument: Early Works (1976). Outros trabalhos incluem Tapesongs (1978), As Lightning Comes, In Flashes (1983), Sound Paintings (1991), 73 Poems (com Kenneth Goldsmith, 1994), e o mais recente io: atmos (2009). Joan La Barbara vive e trabalha em Nova Iorque.



Só voz e nonsense até o dia 27 de outubro. 
Ouça.


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