Quantcast
Channel: modo de usar & co.
Viewing all 866 articles
Browse latest View live

Vídeo baseado em poema de Philippe Wollney

$
0
0

O vídeo acima, baseado em texto do poeta pernambucano Philippe Wollney (Goiana, 1987), e vocalizado por ele, foi produzido durante a Oficina de Animação Stop Motion, realizada entre os dias 5 e 9 de novembro de 2014, durante a 4ª Mostra Canavial de Cinema, ministrada por Bruno Cabús e Paulo Leonardo.

§


§

sobre o autor



Philippe Wollneyé um poeta contemporâneo brasileiro, nascido na cidade de Goiana, Pernambuco, em 1987. Lançou o livro Poemas de um eu cretino (2014). Tem poemas publicados em antologias como Antologia Poética Goiana Revisitada (Silêncio Interrompido, 2012) e Cem Poetas Sem Livros (2009). Publica trabalhos ainda pelo selo Porta Aberta.

.
.
.

Teresa de Ávila (1515 - 1582)

$
0
0
Postagem sobre a poeta espanhola Teresa de Ávila (1515 - 1582), 
com traduções de José Bento para o português,
preparada por Rubens Akira Kuana.


Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, conhecida como Santa Teresa de Jesus ou Teresa de Ávila, foi uma poeta e freira carmelita, nascida em Ávila, Espanha, em 1515, numa família abastada pela posse de terras e o comércio, com ascendência judaica pelo lado paterno.

Ingressou no Convento da Encarnação, de Ávila, em 1535, tendo professado dois anos depois. Em 1560 iniciou a reforma da sua Ordem, na que encontrou forte oposição, e dedicou a sua vida a essa missão, fundando conventos e procurando incluir neles o seu espírito de uma caridade incansável e ardente. Faleceu em 1582.

Não se pode indicar uma primeira edição de seus poemas, pois só no século XVIII o Padre Andrés de la Encarnación fez pesquisas em alguns conventos e começou a reunir os seus versos; Vicente de la Fuente prosseguiu essas pesquisas e publicou poemas de Santa Teresa no sexto volume de sua edição das Obras (Madrid, 1881)

A introdução e os poemas foram retirados da Antologia Espanhola do Siglo de Oro, primeiro volume - Renascimento, da editora Assírio e Alvim, em seleção e tradução de José Bento.

--- Rubens Akira Kuana

§

POEMAS DE TERESA DE ÁVILA
em traduções de José Bento

Vivo sem viver em mim

Vivo sem viver em mim
e tão alta vida espero,
que morro por não morrer.

Vivo já fora de mim,
depois que morro de amor,
porque vivo no Senhor,
que me quis só para si.
Meu coração lhe ofereci
pondo nele este dizer:
Que morro por não morrer.

Esta divina prisão
do amor em que hoje vivo,
tornou Deus o meu cativo
e livre meu coração.
E causa em mim tal paixão
Deus meu prisioneiro ver,
que morro por não morrer.

Ai, que longa é esta vida!,
que duros estes desterros!,
esta prisão, estes ferros
em que a alma está metida!
Só esperar a saída
causa em mim tanto sofrer,
que morro por não morrer.

Ai, que vida tão amarga,
sem se gozar o Senhor!,
porque, se é doce o amor,
não é a esperança larga.
Tire-me Deus esta carga,
pesada a mais não poder,
que morro por não morrer.

Somente com a confiança
vivo de que hei-de morrer,
porque, morrendo, o viver
me assegura minha esp’rança.
Oh morte que a vida alcança,
não tardes em me aparecer,
que morro por não morrer.

Olha que o amor é forte:
vida não sejas molesta;
pra ganhar-te só te resta
perder-te sem que me importe.
Venha já a doce morte,
Venha já ela a correr,
que morro por não morrer.

A vida no alto cativa,
que é a vida verdadeira,
até que esta não nos queira,
não se goza estando viva.
Não me sejas, morte, esquiva;
só pla morte hei-de viver,
que morro por não morrer.

Como, vida, presenteá-lo,
 o meu Deus que vive em mim,
se não perdendo-te a ti,
pra melhor poder gozá-lo?
Quero, morrendo, alcançá-lo,
pois só dele é meu querer:
que morro por não morrer.

§

Sobre aquelas palavras

Toda me entreguei, sem fim,
e de tal sorte hei trocado,
que é meu Amado para mim,
e eu sou para meu Amado.

Quando o doce Caçador
me atirou, fiquei rendida,
entre os braços do amor
ficou minha alma caída.
E ganhando nova vida,
de tal maneira hei trocado,
que é meu Amado para mim,
e eu sou para meu Amado.

Atirou-me com uma seta
envenenada de amor,
e minha alma ficou feita
una com seu Criador.
Já não quero outro amor,
que a meu Deus me hei entregado,
meu Amado é para mim,
e eu sou para meu Amado.

§

Formosura que excedeis!

Formosura que excedeis
mesmo as grandes formosuras!
Sem ferir, sofrer fazeis,
e sem sofrer desfazeis
o amor das criaturas.

Oh, laço que assim juntais
duas coisas tão díspares!
Não sei porquê vos soltais,
pois atado força dais
pra ter por bem os pesares.

Quem não tem ser vós juntais
com o Ser que não se acaba;
sem acabar acabais,
e sem ter que amar amais,
engradeceis vosso nada.

.
.
.

Hugo Milhanas Machado

$
0
0


Hugo Milhanas Machadoé um poeta português, nascido em Lisboa em 1984. Publicou, entre outros, Poema em forma de nuvem (2005), Clave do mundo (2007), As junções (2010), Folas (2011) e Orla (2012). 

Formado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa é, desde 2006, professor do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua na Cátedra de Estudos Portugueses da Universidade de Salamanca. Mantém o programa semanal "Histórias da Música Portuguesa" na Radio Universidad de Salamanca e a coluna "Perder canciones" na Síneris - Revista de Musicologia (Madri). 



Os poemas abaixo foram extraídos de seu novo livro, Onde fingimos dormir como nos campismos (Lisboa: Enfermaria 6, 2014). Hugo Milhanas Machado vive e trabalha em Salamanca, Espanha.

--- Ricardo Domeneck

§

POEMAS DE HUGO MILHANAS MACHADO

Muitos a falar

Querer-te no peito
uma constelação de barcos
e resolver depressa isto
falar limpo como o brilho

Torna porém a imagem
o corpo rodando lento no
soco luminoso de praia
este bração nos lumes

Rasgo valente mas extenuado
tu vens correndo e escrevia
deste lado a areia é muita
molhando num toque d’osso

Dás numa luz de corpo
resoluta e audaz que às vezes lembra
o encorpar a
bater de megafones marados

Cumprimento os amigos
gosto deles e antipatizo
colaboro
e revolvo dentro nas bizarrices

Amanhar depressa isto
falar tiro limpo
como brilho

§

Uma estrela igual

O amor tenta deitado no mar
manhã curta em ombro despido
o ombro tenta deitado do mar

Mas um afoitar que é só nosso
e talhado o mundo por trás
ninguém vai da nossa maneira

Corpo rochoso e reposto
muito lembra tom baço de manhã seca
rotundo capaz que é de ficar

Mas quando faz longe
e tu e eu dobramos no perfume
fica longe e restaurante

§

A pedra da duna

Bateu de torso aquele vento
no regresso salgadão de uns amigos
que barcos novos barcos comidos
nos faz imitar mais formas

Havia aqui cimento disseste
a tinta lascada de outros anos
o faz palavras que não queremos decorar
cimento e que o nome tem cheiros

Depois meteu-se o sono e o vento
dava mais do mar e mais da terra
o que o poema algum dia vai fazer
é chegar o aspecto da gente por aí

§

Folga

Ruça a roupa e o pulo não cresce
mas não parece depois baixar
se uma mão suspende o movimento
traça linho cómodo o recorte

Ela apanha do lado regenera
e quando senta quer aliviar
ela pára porque já está torta
bola retoma numa estrela igual

Risco esse risco e faço branco
num lugar do rolo e mais branco
porque o descanso é o aquece
fala e só fala decide e sacode

E branco longe uma estrela igual
lá no recosto chegado do calor
e o braço visualiza em acontecimento
o talento do pulo maluca

Dentro duramos mais folgados
e mantemos até certa comodidade
quando apouca a conversa distraímos
a ocorrência feita dicção é selvagem e

Aquela rua lá na rua da guitarra
faz aragem de quando passamos
na maneira um dia de passarmos
pisar é pisar não se vai por fora

Pois o mexer tem essa categoria
é de saltar o rijo bom nas pernas
falamos e tudo com muita força
deve ser do mexer e vai parecer

Uma terra lembrada de nós
mas se alguém afinal avança
o entusiasmo é conservador
parecemos muita gente a falar


.
.
.





"Mo Boma", cantiga de ninar do povo Aka

$
0
0


"Mo Boma"é uma cantiga de ninar do povo Aka, do Congo. Aqui, cantada por meninas. Os Aka são também conhecidos como Bayaka e Babenzele, um dos povos nomádicos conhecidos como Mbenga, pigmeus do Congo, Gabão e Camarões. Deixe-se ninar. Boa noite.


.
.
.

Poema inédito de Rodrigo Damasceno

$
0
0


No Caribe, a tarde é outra

                    depois de Langston Hughes, Augustus Pablo 
                    e Russo Passapusso

o próximo
passo,
pensa,
é impossível-
porém:
em fuga
e finta
desatenta
desta tarde
esquisita,
faço-
falsifico
paisagens
que nos
lançam
às margens
e mares
das ilhas
soltas
ilhargas
largadas
no Caribe:
suas plantas
sãs sagradas,
o papel-
-bíblia
feito
fita
de filme
(enredo:
Sansão,
o rasta,
já não deixa
rastro,
vai livre
de dalila),
seu céu
aceso
azul
de seda
preciso;
o próximo
pássaro,
pensa,
dá preguiça-
porém avança,
esvoaça
entre teus
dedos, teus
dentes, foge
aturdido
e desatento
desta tarde
esquisita

§


§

sobre o autor

Rodrigo Damascenoé um poeta, tradutor e crítico brasileiro, nascido em Feira de Santana, Bahia, em 1985. Traduziu Raimbaut de Vaqueiras, e.e. cummings e Amiri Baraka, entre outros. Aqui na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., participou ainda dos ciclos críticos dedicados a Caio Valério Catulo e Guido Cavalcanti. Teve poemas publicados também na revista impressa. É autor do livro de ensaios Borges e Bioy (Tulle, 2007). 

.
.
.

Poema inédito de Renato Negrão

$
0
0
Série de inéditos, com texto do autor mineiro 
Renato Negrão (n. 1968).



o arco
descrito

este traço
da medula
ao mito

risca 
um movimento 
sutil 

dançar que só 

entre escombros
e trapézios 
se percebe



                                 para iago passos


§


§

sobre o autor

Renato Negrãoé um poeta, compositor, artista visual e professor brasileiro, nascido em Minas Gerais em 1968. Publicou os livros No Calo (1996), Dragões do Paraíso (1997, com Daniel Costa), Os Dois Primeiros e um Vago Lote (2004) e Vicente Viciado (2012). Produziu: Tributo a Paulo Leminski (1999) e Reciclo Geral – Mostra de Composições inéditas (2002). Participou, dentre outros, dos Festivais Internacionais de Arte Digital, de Arte Negra, de Teatro de Palco e Rua de Belo Horizonte, da Zona de Invenção & Poesia, da MIP2 – Manifestação Internacional da Performance e do projeto Muros Territórios Compartilhados, dentre outros e das exposições "Esse estranho objeto, o livro" (1999), Centro Cultural da UFMG; Dadaísto dadaquilo, dada (2004), no Centro de Cultura de Belo Horizonte, 1ª- Mostra interna Galeria da Escola Guignard (2008) e da Individual Refeitura, na galeria da Casa Una de Cultura (2012).

.
.
.

Poema inédito de Ana Martins Marques

$
0
0
Na série de inéditos, texto da poeta mineira 
Ana Martins Marques (Belo Horizonte, 1977).



Tenho quebrado copos

Tenho quebrado copos
é o que tenho feito
raramente me machuco embora uma vez sim
uma vez quebrei um copo com as mãos
era frágil demais foi o que pensei
era feito para quebrar-se foi o que pensei
e não: eu fui feita para quebrar
em geral eles apenas se espatifam
na pia entre a louça branca e os talheres
(esses não quebram nunca) ou no chão
espalhando-se então com um baque luminoso
tenho recolhido cacos
tenho observado brevemente seu formato
pensando que acontecer é irreversível
pensando em como é fácil destroçar
tenho embrulhado os cacos com jornal
para que ninguém se machuque
como minha mãe me ensinou
como se fosse mesmo possível
evitar os cortes
(mas que não seja eu a ferir)
tenho andado a tentar
não me ferir e não ferir os outros
enquanto esgoto o estoque de copos
mas não tenho quebrado minhas próprias mãos
golpeando os azulejos
não tenho passado a noite
deitada no chão de mármore
estudando as trocas de calor
não tenho mastigado o vidro
procurando separar na boca
o sabor do sangue o sabor do sabão
nem tenho feito uma oração
pelo destino variado
do que antes era um
e por minha força morre múltiplo
tenho quebrado copos
para isso parece deram-me mãos
tenho depois encontrado
cacos que não recolhi
e que identifico por um brilho súbito
no chão da cozinha de manhã
tenho andado com cuidado
com os olhos no chão
à procura de algo que brilhe
e tenho quebrado copos
é o que tenho feito

§

sobre a autora

Ana Martins Marques nasceu em Belo Horizonte em 1977. Publicou A vida submarina (Scriptum, 2009) e Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011). Com Da arte das armadilhas, recebeu o Prêmio da Fundação Biblioteca Nacional e foi finalista do Portugal Telecom.

.
.
.

Poema inédito de Mariana Botelho

$
0
0
Série de inéditos, com texto da mineira
Mariana Botelho (Vale do Jequitinhonha, 1983)



a distância entre nós,
amor
o sangue jorrando

avião que parte
de nossas cabeças
para o planalto central

eis aqui o tão longe
para onde venho –

magra como meu passado –

chorar a voz
do meu antigo nome

§


§

sobre a autora

Mariana Botelho nasceu em Padre Paraíso, no Vale do Jequitinhonha, interior de Minas Gerais, a 7 de abril de 1983. O silêncio tange o sino, seu primeiro livro, foi publicado pela Ateliê Editorial em 2010. Tem poemas publicados na revista Ciência e Cultura (SBPC), no Suplemento Literário de Minas Gerais e em várias revistas digitais.

.
.
.

Texto inédito de Tatiana Faia

$
0
0
Hoje, na série de inéditos, um texto em prosa
da portuguesa Tatiana Faia (n. 1986).



Hotel Agamémnon

O pequeno hotel dá para uma praça. O jardim, sempre trancado a cadeado ao entardecer, enche-se de neve. A estátua de mármore, um Apolo esburacado e suburbano a agarrar a harpa, os bancos, as grandes folhas nos plátanos que ignoraram o aviso do inverno expiam agora a teimosia com a cegueira antipática do gelo. Kadaré escreveu melhor sobre a neve. Em O Acidente o albanês fala de uma Europa dividida, acidentalmente unida pela mão pesada da neve. Alexandre podia concordar que este paleio sobre gelo se aplica afinal aos amantes que são o par no centro da acção do livro.
Uma circunstância criou a aparência de que o que permanece inevitavelmente separado se junta por uma pressão exterior. Tendo em conta o que se sabe do gelo, o que parece unido agora não vai durar. Mas rigorosamente nada é mais importante do que o erro. Errar serve para nos lembrar de que precisamos de merecer o amor dos outros.
Sentou-se na cama, de frente para a janela. Não tirou a roupa, não descalçou os sapatos. Uma raposa, como um presságio, atravessou o círculo do jardim. De patas enterradas na neve, parecia nadar, e só o torso laranja sobre a luz amarela era visível. Estava completamente acabado. Fechou os olhos. Não era ainda a imagem dessa mulher que punha batom vermelho e usava o cabelo curto e tinha enfiado um vestidinho vermelho com um colete dourado. Era outra coisa mais funda, antes disso. Alguma coisa que tinha criado o seu próprio espaço e o seu próprio tempo e caminhado para o seu próprio sentido, não a mulher da encenação, com a acne por baixo da base. Ela estava lá como os gregos tinham os seus mitos. Perséfone e a romã. Orfeu e Eurídice.
Tudo tinha começado a mudar devagar. Ele estava entre. Nada estava a acontecer. Por baixo disto, havia ainda alguma coisa para ser dita. Um homem cheio de deveres para com as suas sílabas articuladas em palavras, mesmo até para com os seus monossílabos. Durante muito tempo pensou que a função de dizer coisas era arrumar coisas. Agora sempre que falava estava à procura de alguma coisa, havia no meio disto uma grande necessidade. Ela tinha visto isto antes.
Naquele dia em que lhe tinha feito um telefonema e falado durante horas. Estava a ligar-lhe de um quarto de hotel em Berlim. Ela disse-lhe que precisava de lhe falar sobre a infância. Ele disse-lhe, és maluca. Ninguém nunca ia saber como ela tinha crescido, ela tinha parado de falar sobre isso mal tinha entrado na idade adulta. Tinha enterrado tudo. Na verdade toda a gente: pai, mãe, tios, primos. Ele sempre tinha pensado que ela não tinha qualquer família. Tinha pensado nela como uma unidade solitária e autónoma. Calmamente tinha ligado isto às contingências da sua relação. Se não nos contarem histórias, é muito difícil que a nossa lealdade ou a nossa solidariedade se vejam implicadas no enredo. Não sabendo nada do passado dela, do que tinha acontecido antes, evitava sentir-se completamente parte da sua vida. Era confortável. Ele não queria sentir-se completamente parte da vida de ninguém. Ela começou a falar e ele lembrou-se de como adormeciam juntos. A consequência disto é que ele parou de a ouvir. Ela dormia com os braços e com as pernas esticadas, como uma pintura egípcia ou uma estudante de karaté. Na verdade, isto impedia-o de se chegar perto dela. Adormecidos, o único ponto em que os seus corpos se tocavam era quando ela esticava o pé até ao calcanhar dele.
À medida que ela falava a impressão do pé a tocar-lhe no calcanhar voltou. Ele estava num lugar chamado Hotel Agamemnon. Não conseguia pensar naquela mulher noutro papel que não o de amante. Uma ternura imperfeita. Ela para ele não existia como mulher, filha, mãe ou irmã. Hotel Agamemnon é um hotel de beira de estrada, na estrada que vai de Micenas a Náfplio. Kytmnaestra, Elektra, Ifigénia. Ela podia ser qualquer uma. Mas não era nenhuma.
Ele queria dizer-lhe, “não preciso de saber”, mas saiu-lhe antes um esfíngico, escolar e impessoal “a personalidade não existe, apenas os seus efeitos”. A impessoalidade implica perspectiva, o que implica distância e uma certa vantagem. Foi já depois de ter dito isto que percebeu o que queria isto dizer. Dizer a alguém “a personalidade não existe” significa simplesmente que não queremos saber dessa pessoa para nada.
De acordo, ela disse-lhes, “isto era sobre nós”, e desligou o telefone. O pulso disparou, o sangue subiu-lhe ao rosto. Vermelho como um adolescente humilhante em frente aos colegas. O plástico do telefone como a última carícia na orelha, a última migalha de proximidade. Agora, àquela banalidade podia confortavelmente suceder-se esse outro cliché sem moral, as relações humanas são frágeis. Duas falácias que aparentemente se completam perfazendo uma verdade demagoga.
Sentado aos pés da cama ele sentiu que preferia sacrificar tudo a caminhar para a posição do mendigo. Alguma coisa estava a passar-se entre eles e não podia ser explicada. Ele sentiu o coração tornar-se azul como numa guerra. Uma raiva incendiária, cega, surda, muda. Ele virou o rosto para a janela e sentiu aquela impressão subir como uma maré e varrer tudo de dentro dele e correr até às funções, até àquele ponto mais inconsciente num pensamento que só pode ser tocado pela dor mais extrema, pela pior derrota, quando o corpo se vira todo para a frente e só pode esperar o embate seguinte.
A ideia de controlo tinha sido uma desculpa adequada. Excluindo uma parte considerável da realidade, é uma mentira que pode ser mantida indefinidamente e serve para que alguns objectivos sejam obtidos. É desse modo que uma pessoa pode ser explicada não enquanto pessoa mas enquanto os efeitos de uma personalidade que não existe, que é feita e refeita a partir da perspectiva do observador.
Ela era a narrativa das horas que passavam juntos, ele, que não sabia mais nada, não estava a mentir. A mentira só começaria se ela começasse falar e se ele escolhesse não querer saber mais nada. Alexandre estava agora a olhar para o ângulo da queda.


§


§

sobre a autora

Tatiana Faia é uma poeta e escritora portuguesa, nascida em 1986. Vive e trabalha em Oxford, onde se encontra a terminar uma tese de doutoramento sobre a Íliada de Homero. Publicou dois livros de poemas, Lugano (2011) e Teatro de Rua (2013), e foi uma das editoras da revista Ítaca (2009-11). Atualmente é uma das responsáveis pelo projecto editorial Enfermaria 6. O conto que aqui se publica faz parte do seu próximo livro. Trabalha ainda em uma nova tradução dos Hinos Homéricos (em colaboração).

.
.
.

Poema inédito de Nina Rizzi

$
0
0
Hoje, na série de inéditos, poema da autora paulista 
Nina Rizzi (Campinas, 1983).




je t'aime, je t'aime, una película

ele troca o nome da ponte
pela cidade que nasci

como ela, para ela

lapso de memória
melodia infiel

as mulheres passam convidativas
com a diamba às altas madrugadas
dos meus olhos semicerrados

minha raiva não é menor
a da mulher sem orgulho,
da liberdade stop-motion
como signo de bem-te-quero

minha monogamia não é maior
que o peito estilhaçado

entredentes, olha
invisível descuido, permaneço


§

sobre a autora

Nina Rizzié uma poeta, tradutora e historiadora brasileira, nascida em Campinas em 1983). Graduou-se em Artes Dramáticas pela Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo, e em História pela Universidade Estadual Paulista. Publicou os livros Tambores pra n'zinga (2012), caderno-goiabada (2013) e A Duração do Deserto (2014), além de traduzir a argentina Susana Thénon no volume Habitante do Nada (2014).

.
.
.

Vídeo de Diego Bredariol sobre poema de Matilde Campilho

$
0
0


Dia dez (2014), vídeo de Diego Bredariol, com poema de Matilde Campilho, vocalizado pela portuguesa. Trabalho realizado na Universidade de Buenos Aires, Argentina. Direção de Diego Bredariol, com a atuação de Pedro Aggollia. Texto e voz de Matilde Campilho.  Música: Sigur Rós - "Varðeldur"

§

sobre o diretor

Diego Bredariolé um diretor e videasta brasileiro, nascido em Jaú, interior de São Paulo, a 19 de fevereiro de 1988. Estuda cinema na Universidade de Buenos Aires, na Argentina, onde vive e trabalha.




.
.
.

Poema inédito de Victor Heringer

$
0
0
Hoje, na série de inéditos, texto-imagem 
do carioca (exilado em São Paulo)
Victor Heringer (Rio de Janeiro, 1988)

"(anti) estandarte da geração 88", de Victor Heringer

§


§

sobre o autor



Victor Heringer nasceu em 1988, no Rio de Janeiro, onde ainda vive. O poeta cursa o mestrado em Teoria Literária na Faculdade de Letras da UFRJ e é autor das coletâneas de poemas: Quando você foi árvore (2010), canção do sumidouro (2010) e Automatógrafo (2011). Também publicou o romance Glória (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012) e o conto Lígia (2014). Sua página pessoal: http://automatografo.org. Dizem que está trabalhando num novo romance, O amor dos homens avulsos, e pesquisando imagens em domínio público para um livro de memórias ao estilo do Itinerário de Pasárgada, mas de um poeta fictício. O carioca vive, mal-humorado, em São Paulo.

.
.
.

.
.
.

Poema inédito de Eduardo Sterzi

$
0
0
Na série de inéditos, texto do gaúcho 
Eduardo Sterzi (Porto Alegre, 1973).



Unicórnios e chimpanzés 

É grande ofensa aos chimpanzés dizer que os ateus
              [são seus descendentes?
Se o morto não é consciente quem fala nos centros
              [kardecistas é o demônio?
Quem vai à igreja o faz por medo do inferno?

A existência de um umbral é prova de que a reencarnação é falha?
Quais as principais diferenças entre as nossas senhoras do bom parto
              [e do mau parto?
Você tem saudade de alguém que já não está mais aqui?

O que a bíblia fala sobre hermafroditas?
Que animal não coube na arca de noé?
Tristeza atrai satanás?

Por que os atuais chimpanzés estão em greve de evolução
e não querem se tornar humanos?
Unicórnios têm algum significado maligno?

O amor é uma ilusão?
Qual é a música mais triste do mundo?
E se deus não existir?

Quando alguém morre é por vontade de deus?
Dá para ser cristão acreditando apenas em algumas partes da bíblia?
Jesus foi paranormal ou escritor?

Quando estou sonhando não sei que estou sonhando
como posso saber se este exato momento é real?
Se o sol morrer ressuscita?

Não foi a princesa isabel que libertou os escravos mas sim jesus?
E se quando você morrer descobrir que nada na bíblia é real?
Enterrar pessoas junto com foto faz mal?

Se a terra é um planeta expiatório nunca teremos um mundo melhor?
Estou no caminho certo?
É verdade que deus canta?

Eduardo Sterzi nasceu em Porto Alegre, em 1973. Formado em jornalismo pela UFRGS, trabalhou como repórter e editor antes de iniciar seu mestrado em Literatura na PUCRS, em 1997, defendendo no ano 2000 sua tese sobre "Murilo Mendes e o sublime", seguida por uma tese de doutorado entre a Unicamp e  a Sapienza, de Roma, sobre a "Vita Nova de Dante e a origem da lírica moderna". Possui dois pós-doutorados, sobre a "tópica da terra devastada" (USP) e sobre Gianfranco Contini e a importância do paradigma filológico para a renovação da história da literatura, este último uma vez mais na Universidade Sapienza. É um dos mais ativos poetas-críticos da geração. Estreou como poeta em 2001 com o livro Prosa, pelo qual recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura na categoria Autor-Revelação em Poesia. Em 2009, lançou seu segundo livro, Aleijão (RJ: 7Letras, 2009), do qual foram extraídos os poemas abaixo.

Também dramaturgo, reuniu três breves peças de teatro no volume Cavalo sopa martelo, de 2011, e ensaios nos volumes Por que ler Dante e A prova dos nove: alguma poesia moderna e a tarefa da alegria, ambos de 2008, além de organizar Do céu do futuro: cinco ensaios sobre Augusto de Campos (2006). Gostaríamos de destacar dois de seus estudos: "Drummond e a poética da interrupção" (in Drummond revisitado, org. Reynaldo Damazio) e "Todos os sons, sem som" (in Sobre Augusto de Campos, org. Flora Süssekind e Júlio Castañon Guimarães). Para a Modo de Usar & Co., escreveu "Cavalcanti: Saltar sobre a morte", um dos ensaios em nosso ciclo crítico sobre o poeta florentino.

.
.
.

Marcus Fabiano Gonçalves - "Arame falado"

$
0
0

Poema de Marcus Fabiano Gonçalves (Rio Grande do Sul, 1973), que dá título a seu livro Arame falado (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012), um dos livros importantes da poesia brasileira dos últimos anos.




ARAME FALADO
Marcus Fabiano Gonçalves

A

pela cabaça larga do berimbau, soa a garganta árabe do arame:
alambre que lembra o barbante em fio de ferro, lata ou estanho
a fina corda vocálica dos bantos, no varal ao vento, sem grampos

 E

atenção a essa civil barricada bélica em sua ameaça nunca discreta:
CUIDADO: CERCA ELÉTRICA – no fio do mourão, o limite da gleba
torcido a torquês, a prego e martelo, ou urdido em arame na rede da tela

 I

o artífice molda a gargantilha, o equilibrista sobre seu chão mínimo
um fio encapado que percorre condutível a bipolaridade alternativa
e de cujo enrolar nasce a bobina, essa mãe magnética do eletroímã

 O

hoje a cobra vítrea da fibra ótica, ainda ontem os dois polos de cobre
o arame aéreo do telégrafo no poste, esse bisavô de wireless e modens
passando ao telefone seus trotes a bits e torrents, bisnetos do Morse

 U

um arame que só sirva no mundo ao metalescente fio do discurso
flexível e dúctil, livre de acúleos, arame que jamais cerque redutos
como guetos de surdos, um arame falado: fio de luz no crepúsculo.


§

in Arame falado (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012).

.
.
.

Oskar May

$
0
0

Oskar Mayé um poeta sonoro austríaco, nascido em Viena em 1991. Colaborou em suas paisagens e poemas sonoros com Gianna Virginia e, no momento, colabora com Anna de Marco em um projeto ainda sem nome, em preparo. Oskar May vive e trabalha em  sua cidade natal.

Ao contrário da Alemanha, onde a poesia contemporânea é bastante fincada no suporte do livro como forma privilegiada de publicação (e, consequentemente, produção), há na Áustria uma forte tradição de poesia experimental / sonora no pós-guerra, que vem desde o Grupo de Viena.

Entre os poetas contemporâneos austríacos, já comentamos aqui o trabalho de Christian Ide Hintze (1953 - 2012), Jörg Piringer (n. 1974) e Max Oravin (n. 1984), de três gerações distintas. Chega à cena agora Oskar May (n. 1991).

Tenho bastante apreço por seu trabalho sonoro e de colagem de vozes em "Diskursmaschinengewehr", além do trabalho propriamente lírico de um poema como "The Lane" e do escancaradamente nonsense em "mhm".

No Brasil e neste caminho, podemos pensar no trabalho de Victor Heringer, Reuben da Cunha Rocha e Orlando Scarpa Neto, entre outros. Acredito que haja aqui estratégias interessantes para outros poetas brasileiros contemporâneos.

--- Ricardo Domeneck

§

POEMAS SONOROS DE OSKAR MAY


Oskar May - "Diskursmaschinengewehr"

§
  Oskar May - "The Lane"

§
 
Oskar May - "mhm"

.
.
.

Veronica Stigger - "O coração dos homens"

$
0
0
Tive o privilégio de ouvir Veronica Stigger lendo este poema, pouco tempo depois de ela o ter escrito, em uma leitura coletiva que fizemos em São Paulo, em janeiro de 2012, com alguns outros poetas de nossa geração. Há tempos queria poder publicá-lo aqui, e agradeço a La Stigger por o permitir. 

--- Ricardo Domeneck

§



O coração dos homens


I

Quando pequena, fui o espelho numa encenação de Branca de Neve
                  [e os sete anões.
A peça era toda falada em inglês.
E o público, crianças monoglotas da pré-escola.

Tínhamos dez anos e mal falávamos inglês.
Aliás, mal falávamos português.
Havia um colega que dizia “largatixa” em vez de “lagartixa”.

Ele nunca adoçava o suco de uva com açúcar mascavo.
Ouvia “mascado”
e tinha nojo.

Este meu colega também sofria de incontinência urinária
e não tinha os mamilos:
em seu abdômen, só havia o umbigo.

Para nos assustar, ele levantava a camiseta
e corria atrás de nós mostrando o branco dos olhos.
Tínhamos muito medo dele.

Não lembro qual foi seu papel na peça.
Lembro quem foi o Príncipe
e lembro quem foi a Branca de Neve.

A Branca de Neve tinha alergia a lã.
Só usava roupa de tecido sintético,
especialmente um casaco azul e amarelo de náilon.

Em seus aniversários, se os colegas não levavam presentes,
ela não tinha pudores: impedia-os de entrar na festinha
e anotava os nomes dos relapsos numa caderneta cor-de-rosa.

O Príncipe era filho da professora da primeira série.
Ele se tinha em altíssima conta
e todas as meninas queriam namorar com ele.

(Menos eu.
Eu era apaixonada por outro colega:
um menino moreno, brincalhão, que morreu de leucemia
                [aos onze anos.)

Mas não lembro mesmo o papel do meu colega sem mamilos.
Talvez tenha sido um dos sete anões,
embora eu não lembre também quem foram os outros seis.

Eu era o espelho.
Minha melhor amiga era a madrasta.
Quando a madrasta se transformava em bruxa, aí já era outra pessoa.

Também não lembro quem fazia a madrasta quando esta se
                 [transformava em bruxa.
Mas lembro que ela dizia:
“This is the poisoned apple”.

Depois, ela devia gargalhar,
muito e alto,
como bruxa de desenho animado.

Mas a menina que fazia o papel não sabia rir,
menos ainda gargalhar.
Foi outra colega que lhe ensinou.

O aprendizado se deu no banheiro, transformado em camarim.
Do lado de fora, só se ouviam as gargalhadas das duas meninas.
Ninguém mais escutava o que se dizia no palco.

A professora de inglês se irritou com a barulheira.
Interrompeu a encenação
e entrou no banheiro de vassoura em punho.

Ela queria bater nas meninas,
mas o diretor da escola a impediu.
E ela, de raiva, mordeu o lábio até sangrar.

Lembro que todos passaram dias envolvidos com a confecção
             [do figurino
e com a elaboração da maquiagem
e com a escolha dos adereços que comporiam seus personagens.

Mas eu não,
porque eu era o espelho,
e o espelho seria um espelho de verdade.

Eu ficaria atrás do espelho.
Um espelho grande, de pé, antigo,
com moldura de madeira.

Pouco importava a roupa que usaria,
quase nada de mim apareceria na peça.
Subiria ao palco com o uniforme cinza e vermelho da escola.

Lembro que a madrasta e a bruxa usavam o mesmo vestido.
Na hora da transformação, o zíper do vestido trancou,
e a bruxa demorou quinze minutos para entrar em cena.

Sem saber o que fazer, a Branca de Neve deu uma de Gata Borralheira:
varreu e tirou o pó de todos os cantos da casa dos anões.
E as crianças, que já não estavam entendendo nada, entenderam
               [menos ainda.

Lembro também que a madrasta perguntava ao espelho logo no início
               [da peça:
“Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?”.

E o espelho respondia:
“Her lips are like blood, her hair is like night,
her skin is like snow, her name’s Snow White”.

Algum tempo depois, inconformada, a madrasta procurava novamente
                 [o espelho:
“Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?”.

E o espelho entregava o paradeiro da Branca de Neve:
“She is with the seven dwarfs. She will spend the night.
She is the fairest, and her name’s Snow White”.

Essas eram minhas duas falas.
Todos tinham que recitar pelo menos uma frase.
A idéia era que a turma inteira exibisse seu inglês capenga.

O problema era que não havia papel para todo mundo.
A entourage da Branca de Neve não era tão grande assim,
e nós éramos trinta e cinco na turma.

A solução: povoar a floresta.
Tinha de tudo entre a casa da madrasta e a casa dos anões.
De coruja a mendigo.

Teve até gente que foi árvore,
gente que foi banquinho de madeira.
(E a professora cogitou aumentar o número de anões.)

E todos falavam.
Falavam mal.
Mas falavam.

Na falta do que falar, delatavam a Branca de Neve.
Apontavam a casa dos anões e sussurravam à bruxa:
“She is there”.

Em geral, nosso inglês era incompreensível.
A Branca de Neve, por exemplo, nunca achava nada,
ela sempre afundava.

Ao colocar os anões para dormir, ela os cobria com merda,
em vez de lençóis.
E, ao fim da peça, o Príncipe convidava todos para a festa de suas
               [vinte orelhas.

Os monoglotas da pré-escola não perceberam os erros de inglês.
(Afinal, eram monoglotas.)
Logo se entediaram.

Alguns bocejavam.
Outros cabeceavam.
Os mais debochados riam e cochichavam nos ouvidos uns dos outros.

Não demorou muito para começarem a jogar coisas na gente.
Primeiro, foram chicletes e bolas de papel.
Depois, lápis e gizes de cera.

A situação se tornou mais crítica quando passaram a cuspir.
Corriam como boçais para a beira do palco improvisado
e soltavam catarrões verdes e grudentos naqueles que se achavam
                   [ao alcance.

A Branca de Neve levou um catarrão na testa e ameaçou chorar.
Os anões riram às pampas.
E a bruxa arremessou sua cesta de maçãs nos monoglotas.

Alguns foram atingidos.
Outros, não.
E os debochados nos mostraram a língua.

As professoras da pré-escola se enfureceram:
queriam acabar com a peça
e mandar a bruxa para o castigo.

A professora de inglês não se abalou.
Virou-se para nós e disse com um exagerado acento britânico:
“The show must go on”.

Foi aí que menstruei.
Era minha primeira vez.
Ninguém notou.

Eu ficava atrás do espelho.
Ninguém me via.
Só me ouviam (e olhe lá).

Eu também não via ninguém.
Meu horizonte era o verso do espelho:
uma grande moldura de madeira mofada.

Nos ensaios, a idéia era que meu rosto fosse visto acima do espelho.
Mas a professora não gostou do resultado
e tirou minha cabeça de cena.

Na apresentação final, apenas oito dos meus dedos apareciam na peça.
Mesmo assim, só as pontinhas.
Os dedões, como o resto de mim, ficavam escondidos.

Todos viam o espelho,
e o espelho refletia todos −
menos a mim.

Por isso, ninguém percebeu quando menstruei.
Nem eu mesma.
Achava que tinha me mijado.

Comecei a exalar um cheiro diferente.
Um cheiro desconhecido.
Um cheiro que me lembrava podridão.

O mijo tem cheiro forte.
O sangue tem cheiro forte.
Mas o cheiro do sangue não é como o cheiro do mijo.

O sangue tem um cheiro adocicado.
Um cheiro persistente.
Um cheiro de morte.

O mijo tem um cheiro ácido.
Um cheiro passageiro.
Um cheiro de rodoviária.

Senti minhas calcinhas se ensoparem.
Não podia ser mijo.
Não cheirava como mijo.

Também não era tão líquido como o mijo.
Era mais visguento.
E eu não sentira vontade de ir ao banheiro.

Fiquei agoniada.
A peça não terminava nunca,
e as minhas calcinhas estavam cada vez mais molhadas.

Embora ninguém me visse, senti vergonha.
Eu devia estar vermelha,
como sangue.

Desde então, quando menstruo, o sangue desce feito cascata.
Se não troco seguidas vezes o absorvente, escorre pelas pernas
e forma poças dentro das minhas sapatilhas brancas de plástico.

(Uma amiga da minha mãe menstruou em pleno carnaval
e não percebeu:
suas pernas se tingiram de vermelho.)

Imagino que a menstruação excessiva se deva à ovulação
               [igualmente excessiva.
Ou não.
Não sei.

(Minha melhor amiga um dia me disse:
“Eu ovulo muito.
Se gozarem nas minhas coxas, engravido”.)

As meninas do colégio me apelidaram de A Sanguinária.
Por causa da menstruação.
Mas não só.

Um dia, os meninos me pediram um absorvente usado.
Eu lhes dei,
e eles o colocaram na maçaneta da sala de aula.

A professora apertou aquele camundongo morto
e ficou com a mão suja de sangue.
Era a mesma professora de inglês.

Quando menstruei pela segunda vez, estava em outra apresentação.
Também na escola.
Mas agora sem o espelho.

A imigração era o tema.
Com comidas típicas,
roupas típicas,

músicas típicas,
danças típicas
e suco de uva.

A turma havia sido dividida em duas:
italianos de um lado,
alemães de outro.

Os morenos eram italianos.
Os loiros, alemães.
E a professora de história não sabia o que fazer com nossa única
             [colega negra.

(Ela acabou do lado dos alemães.
Não por ironia.
Mas porque havia mais morenos do que loiros na turma.)

Eu fiquei do lado alemão,
porque, além de loira, tenho olhos azuis.
Mas queria ter ficado do lado italiano.

Não gosto de chucrute,
detesto cuca
e salsicha não é meu prato preferido.

Queria comer massa,
polenta
e galeto.

Todos tinham que levar um prato típico.
Um prato que a professora de história considerasse típico.
Porque nem todos os pratos eram de fato típicos.

Eu não sabia o que levar.
Minha mãe também não.
Ela nunca gostou de cozinhar.

Uma vez, ela trocou o creme de leite por leite condensado
               [no estrogonofe.
Meu pai lavou tira por tira de filé mignon numa tentativa inútil
               [de salvar o prato.
Acabaram dando tudo à cocker, que latia, na sacada, desgostosa
               [com a comida.

Quando tinha festa na escola, minha mãe fazia sanduíches de presunto
                [e queijo.
Ninguém gostava,
e eu comia todos para que ela não desconfiasse.

Daquela vez, ela teve a idéia de pedir a meu avô para preparar
                 [uma polenta.
Meu avô era filho de italiano
e fora criado por sua avó, italiana de Vicenza.

Ele fez uma de suas maravilhosas polentas rústicas,
toda recoberta com molho de tomate cozido durante horas
e enfeitada com lascas de parmesão e folhas de manjericão fresco.

Só tinha um senão: não era nada alemã.
Para minha mãe, não havia problema.
Ninguém iria notar.

Mas a professora de história notou
e teve um chilique.
Falou em jogar tudo fora e me suspender da atividade.

Comecei a chorar.
Torrencialmente.
Não sei de onde vinham tantas lágrimas.

Soluçava alto.
Dizia que me arrependia amargamente
de ter levado a polenta rústica.

Caí de joelhos no chão
e perguntava, repetidas vezes,
com os braços erguidos:

“Por que não fizeram salsicha bock para eu trazer?
Por que não lingüiça?
Por que não chucrute?”

A professora de história pedia que eu me acalmasse.
Nada aconteceria comigo.
Ela me prometia.

E buscava conter sua impaciência
batendo com força sua plataforma de cortiça
no assoalho de madeira do hall do colégio.

Sequei as lágrimas com as costas das mãos,
lambi o ranho que escorria do nariz
e funguei.

Se não havia castigo,
estava tudo bem.
E perdoei mais uma vez em segredo a total falta de noção
                [da minha mãe.

Chegara a hora das danças.
Toda a turma estava dividida em pares.
Em geral, meninos com meninas.

No entanto, nunca sobravam meninos para fazer par comigo.
Sempre fui uma das mais altas da turma.
E os meninos, nesta idade, continuavam tampinhas.

Acabava sendo obrigada a dançar com uma menina −
invariavelmente, uma varapau como eu
(naquela época, também me chamavam Poste).

Na apresentação organizada pela professora de história,
os italianos dançavam tarantela,
os alemães se vestiam de tiroleses (que, descobri depois, nem
                 [alemães eram).

Mas nem a tarantela nem as vestes tirolesas
eram típicas dos imigrantes que foram para o Sul.
A professora de história tinha uma versão muito particular da história.

Eu vestia camisa branca sob uma jardineira verde, curta e rodada.
Duas grossas tranças circundavam minha cabeça,
e meias brancas subiam até meu joelho.

Os meninos alemães estavam de bermudão verde com suspensório.
Por baixo, usavam uma camisa branca,
e meias brancas também subiam até seus joelhos.

Os meninos italianos vestiam um bermudão preto com uma faixa
                  [vermelha na cintura.
A camisa era branca, mas parcialmente escondida por um colete preto.
Nos pés, as indefectíveis meias brancas até os joelhos.

As meninas italianas trajavam saias vermelhas, compridas e rodadas.
Suas camisas também eram brancas,
e as horrendas meias brancas até os joelhos eram tapadas pelas longas
                    [saias.

Os italianos agitavam pandeiros com fitas coloridas.
Os alemães, nada.
No máximo, acarinhavam seus suspensórios.

Queria muito estar do outro lado.
A comida era melhor
e parecia ser mais divertido.

A tarantela era alegre e agitada.
A dança que inventaram para nós lembrava um minueto fúnebre.
Aliás, nunca soube de nenhuma dança parecida no folclore germânico.

Saltinho para cá,
saltinho para lá,
menstruei.

O sangue desceu como uma avalanche.
Não demorou para chegar aos joelhos.
Quando o vi se aproximar das malditas meias brancas, não titubeei:

corri até a mesa das comidas,
saltei e sentei na polenta rústica do meu avô.
O vermelho do molho se misturou ao vermelho do sangue.

Ninguém, de novo, percebeu que eu menstruara.
Mas fui suspensa por uma semana.
Desde então, peguei horror a ser mulher.

Na vigésima vez que menstruei, era Semana da Inversão:
professores se tornavam alunos,
alunos se tornavam professores.

Eu e minha melhor amiga escolhemos dar aula de religião.
Queríamos ver todo mundo se ajoelhando e rezando.
Estávamos nos divertindo com a idéia.

Levamos a turma em procissão até a sala que escolhemos para as rezas.
Eu carregava nos braços, junto ao peito, a Santa da minha mãe.
(Ela nem desconfiava que a seqüestráramos.)

Todos tinham que se ajoelhar no chão duro e gelado
e entoar cinco pai-nossos, quatro ave-marias e dois credos.
E, depois, deviam ler, em uníssono, este trecho da Bíblia:

“Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue
e que seja fluxo de sangue do seu corpo,
permanecerá durante sete dias na impureza das suas regras.

Quem a tocar ficará impuro até a tarde.
Toda cama sobre a qual se deitar com o seu fluxo ficará impura,
todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro.

Todo aquele que tocar seu leito deverá lavar suas vestes,
banhar-se em água
e ficará impuro até a tarde.

Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela tiver
                   [se assentado,
deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.

Se algum objeto se encontrar sobre o leito
ou sobre o móvel no qual ela está assentada,
aquele que o tocar ficará impuro até a tarde.

Se um homem coabitar com ela, a impureza das suas regras o atingirá.
Ficará impuro durante sete dias.
Todo leito sobre o qual ele se deitar ficará impuro.

Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue de diversos dias,
fora do tempo das suas regras, ou se as suas regras se prolongarem,
estará no mesmo estado de impureza em que esteve durante o tempo
                    [das suas regras.

Assim será para todo leito sobre o qual ela se deitar,
durante todo o tempo de seu fluxo,
como o foi para o leito em que se deitou quando das suas regras.

Todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro, como quando
                    [das suas regras.
Quem os tocar ficará impuro, deverá lavar suas vestes, banhar-se
                    [em água,
e ficará impuro até a tarde.

Quando estiver curada de seu fluxo,
contará sete dias,
e então estará pura.”

“No oitavo dia –”
“Basta!”, interrompeu o professor de religião.
“Vocês estão pensando o quê?”

Sem esperar resposta, ele nos pegou pelo braço
e nos arrastou até a sala do diretor.
(Isso que nem havíamos lido a parte da gonorréia.)

No caminho, menstruei.
O professor e o diretor falavam falavam falavam
e eu nem prestava atenção.

Ao levantar da cadeira, percebi que havia se formado uma
                    [pequena poça.
Uma poça vermelha.
Uma poça de sangue.

Olhei, cabisbaixa, para os dois.
Eles olharam para a cadeira e, em seguida, para mim.
E eu disse:

“Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela
                    [tiver se assentado,
deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.”


II

Uma vez, a mancha de sangue no absorvente parecia ter o formato
                     [do meu rosto.
Isso aconteceu no dia em que completei quinze anos.
Desde então, passei a ter um sonho recorrente.

Sonhava que tinha me acordado.
Precisava ir urgentemente ao banheiro,
mas não o encontrava.

Procurava-o por todo o apartamento.
Abria todas as portas com as quais deparava.
Mas nenhuma era o banheiro.

A vontade de mijar só crescia.
Pensava em me aliviar ali mesmo no corredor.
Até que notava a latrina ao meu lado.

Arregaçava a camisola,
sentava-me
e soltava um jato de urina que parecia não ter mais fim.

Ao me levantar, percebia que o fundo do vaso era puro sangue:
a cerâmica branca ficara completamente vermelha
e as paredes em volta, também brancas, tinham manchas encarnadas.

Eu me aproximava da latrina.
Espiava seu interior agora rubro:
sobre as águas sanguíneas, navegava um barquinho de papel.

O barquinho era alvo.
Dentro dele, estavam a Branca de Neve e o Príncipe −
não sei se mortos ou trepando.


III

A Santa chegou hoje aqui em casa.
Vai embora amanhã.
A vizinha da frente virá pegá-la assim que o sol nascer.

Nunca sei o que fazer com a Santa.
Desta vez, coloquei-a em cima da mesa da sala
do lado do porco de cerâmica.

Fiquei olhando para a Santa
e ela olhando para mim.
Não tínhamos nada para falar.

Foi quando percebi uns papeizinhos saindo de trás dela.
Peguei-a no colo.
Virei-a de bruços.

A Santa era oca
e tinha uma portinhola nas suas costas.
Dentro, muitos papeizinhos.

Abri um deles.
O mais amarelado e amassado.
Parecia ter sido esquecido ali.

Era um bilhete
escrito à mão
numa caligrafia de volteios:

“Minha mãezinha do céu,
eu te imploro,
me protege.”

.
.
.

Conceição Lima

$
0
0

Conceição Limaé uma poeta contemporânea de São Tomé e Príncipe, nascida em Santana, distrito de Cantagalo, a 8 de dezembro de 1961. Estudou jornalismo em Portugal e Estudos Afro-Portugueses e Brasileiros no King's College de Londres. Trabalhou na rádio, televisão e jornais de São Tomé e Príncipe e, em 1993, fundou o semanário independente O País Hoje. Estreou com o volume O Útero da Casa (Lisboa: Caminho, 2004), ao qual seguiu-se A Dolorosa Raiz do Micondó (Lisboa: Caminho, 2006).

--- Ricardo Domeneck

§

POEMAS DE CONCEIÇÃO LIMA

Sóya

Há-de nascer de novo o micondó —
belo, imperfeito, no centro do quintal.
À meia-noite, quando as bruxas
povoarem okás milenários
e o kukuku piar pela última vez
na junção dos caminhos.

Sobre as cinzas, contra o vento
bailarão ao amanhecer
ervas e fetos e uma flor de sangue.

Rebentos de milho hão-de nutrir
as gengivas dos velhos
e não mais sonharão as crianças
com gatos pretos e águas turvas
porque a força do marapião
terá voltado para confrontar o mal.

Lianas abraçarão na curva do rio
a insónia dos mortos
quando a primeira mulher
lavar as tranças no leito ressuscitado.

Reabitaremos a casa, nossa intacta morada.

§

Na praia de São João

Há séculos que a sua fronte taciturna
desafia a premonição das estrelas —
os rijos movimentos, o solitário remo
a herdada sapiência de pressentir
o cheiro da calema e a mandíbula do tubarão.

Ele que acredita em deus e nos deuses
na bondade dos amuletos, na ciência dos astros
na falível destreza dos seus braços
há séculos que parte com a alvorada
sem ninguém o ver.

Todos os dias aguardamos porém o seu retorno —
a brancura do sal nos músculos retesados
o impulso final
e a canoa implantada no colo da praia.

Em seu rasto perscrutamos ao cair do dia
os limites do mar
Por seu vulto ganham nova pressa
os passos das mulheres
o tilintar das moedas, o pregão das palayês

E se enchem de falas as feiras ao entardecer.

Deste lado, a outra margem do infinito
onde o crepúsculo saúda o regresso
de lá do horizonte, do hemisfério da espuma
da linha oculta no azul espesso
do lugar onde a água só conhece a voz da água.

Nós te aguardamos
mercador lunar, despercebido guerreiro
e ao brilho das escamas que revelas
Pois sem ti a praia seria apenas praia —
o perfil do mar, a queixa do vento
ou a nudez de anónimas pegadas na areia.

§

Certos pequenos tiranos

A certos pequenos tiranos
comove-os o enigma na pétala de uma orquídea
e o langor da linha na palma da própria mão.

Algures, um estranho brinquedo falece
na secretária onde existem.

Por vezes articulam breves sentenças
e estão sempre em atritos com o mesmo orçamento.

Mas crêem no amparo de feitiços e amuletos
e segregam uma teia de invencível apatia
que tolhe as impressoras, as portas dos armários
e contrai as linhas das quatro paredes.

Porque os emociona a própria bondade
tomam por amor a vénia dos vassalos
os pequenos tiranos
que publicam altos amigos como títulos de jornal
e distribuem grãos de favor como quem outorga um foral.

São meticulosos no arrumar dos papéis
pois na simetria das coisas enterram a luz das ideias.

Mortifica-os a idade, são hipocondríacos
e só por distracção morrerão em África.

Dói a doçura da savana espezinhada nesses pequenos tiranos
A pátria em seus ombros é divisa, cartão de visita
No borrão do carimbo dispara a AKA que nunca empunharam.

§

Afroinsularidade

Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações

engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras

Aqui aportaram vindos do Norte
por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas

Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

E nas roças ficaram pegadas vivas
como cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.

E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d'óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans

E aos relógios insulares se fundiram
os espectros — ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas

Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.

.
.
.

"As Origens da Linguagem", documentário completo (dublado em português)

$
0
0


Com cerca de uma hora de duração e entrevistas com especialistas de diversas áreas do conhecimento humano – linguistas, arqueólogos, geneticistas, entre outros – o documentário investiga as origens da linguagem, entre os homo sapiens, os homens-de-Neandertal e além/aquém. Se você se interessa por poesia, interessa-se por linguagem, recomendo muito este filme. Informações cheias de implicações fascinantes. Chamo a atenção, entre várias coisas, para a relação entre vocalização e gesticulação, em algumas das hipóteses apresentadas aqui para a origem da linguagem. Isso pode ser muito interessante para a meditação sobre linguagem e corpo, poesia e performance, por exemplo.

--- Ricardo Domeneck



.
.
.

Leopoldo María Panero (1948 - 2014)

$
0
0

Leopoldo María Panero foi um poeta espanhol, nascido em Madri a 16 de junho de 1948, no seio de uma família importante dentro da cultura espanhola: seus pais, Leopoldo Panero (1909–1962) e Felicidad Blanc (1913–1990), eram escritores, assim como seus irmãos Juan Luis Panero (1942–2013) e Michi Panero (1951–2004). 


Trecho de El desencanto (1976), documentário de Jaime Chavárri sobre a família Panero.

Panero é um dos mais importantes poetas espanhóis do pós-guerra. Estreou com o volume Por el camino de Swan (1968) e foi incluído na antologia Nueve novísimos poetas españoles, do crítico José María Castellet (1926-2014), sendo geralmente associado a esta geração. Há toda uma mitologia acerca do poeta (e sua família), que viveu entre instituições psiquiátricas a maior parte de sua vida, o que por vezes turva a compreensão de sua obra.

Publicou, entre outros, Así se fundó Carnaby Street (1970),  Teoría (1973), Narciso en el acorde último de las flautas (1979), El que no ve (1980), Dioscuros (1982), El último hombre (1984),  Heroína y otros poemas (1992), Piedra negra o del temblar (1992), Locos (1992), Guarida de un animal que no existe (1998), Teoría lautreamontiana del plagio (1999), Poemas del manicomio de Mondragón (1987) Suplicio en la cruz de la boca (2000), Me amarás cuando esté muerto (2001),  Páginas de excremento o dolor sin dolor (2008), Cantos del frío (2011) e os mais recentes Poemas del pájaro y la oruga e Rosa enferma, ambos de 2014. Teve seu trabalho reunido em Poesía completa 2000-2010 (Visor, 2013).

Sua morte, a 5 de março deste ano, foi uma grande perda num ano de grandes perdas. Há tempos queríamos fazer uma postagem dedicada a ele aqui na Modo, e agradecemos imensamente a Gustavo Petter por nos enviar esta alentada seleção, em traduções suas.

--- Ricardo Domeneck

§

POEMAS DE LEOPOLDO MARÍA PANERO
Traduções de Gustavo Petter

Poemas da obra El que no ve, 1980.

O SUPLÍCIO

A febre se parece com Deus
A loucura: a última oração.
Longo tempo bebi em um estranho cálice
cheio de álcool e fezes
vi na maré da taça os peixes
atrozmente pálidos do sonho.
E ao erguer o brinde, disse
à Deus, ofereço este suplício
esta hóstia nascida do sangue
que de todos os olhos mana
como ordenando-me a beber, ordenando-me a morrer
para que ao fim seja ninguém
seja igual a Deus.

:

EL SUPLICIO

La fiebre se parece a Dios
La locura: la última oración.
Largo tiempo he bebido de un extraño cáliz
hecho de alcohol y heces
y vi en la marea de la copa los peces
atrozmente blancos del sueño.
Y al levantar la copa, digo
a Dios, te ofrezco este suplicio
y esta hostia nacida de la sangre
que de todos ojos mana
como ordenándome beber, como ordenándome morir
para que cuando al fin sea nadie
sea igual a Dios.

§

O ANTICRISTO

No metrô vi um homem imensamente belo
que mirava aos homens como se mira um peido
na rua vi um homem de atroz beleza
tinha na testa o sinal da justiça,
o branco 5, o branco número
que dividiu os céus.
No espelho noturno
de um bar onde creram
alguns que lá estavam, havia já um Desperto
que olhava a cena como se existira.

:

EL ANTICRISTO (SEBASTIÁN EN EL SUEÑO)

En el Metro vi a un hombre inmensamente bello
que miraba a los hombres como se mira a un pedo
en la calle vi a un hombre atrozmente hermoso
que tenía em la frente la cifra de justicia,
el Blanco 5, el Blanco número
que dividió a los cielos.
En el espejo oscuro
de un bar donde creían
algunos que vivían, había ya un Despierto
que miraba la escena como si existiera.

§

Poemas de El Último Hombre, 1983.

AUTO DE FÉ

Deus o cão me chama e o ar queima um homem
horizonte de corpos ardendo intensamente
quinze anjos velam onde esteve minha testa
sou o negro, o obscuro: ardendo está meu nome.

O cavalo me busca e pronuncia meu nome
com o machado partiram de dois em dois meus dentes
longe, no ocaso, alguém diz algo ou mente
sou o negro, o obscuro: ardendo está meu nome.

A lei é o silêncio e também a blasfêmia
é mostrar aos homens uma cruz nos lábios
e dizer-lhes que arde, vela acesa,
minha alma na penumbra como blasfêmia
Deus mudo, escultura de sombra, pétalas pétreas
e o lance de dados de um cego encerra o poema.

:

AUTO DE FE

Dios el perro me llama el aire quema a un hombre
horizonte de cuerpos ardiendo intensamente
quince ángeles velan donde estuvo mi frente
soy el negro, el oscuro: ardiendo está mi nombre.

Mi caballo me busca y pronuncia mi nombre
con el hacha rompieron de dos en dos mi frente
lejos, en el ocaso, alguien dice algo o miente
soy el negro, el oscuro: ardiendo está mi nombre.
Es la ley el silencio y también la blasfemia
es mostrar a los hombres una cruz en la boca
y decirles que arde, como cabo de vela
mi alma en la penumbra como una blasfemia
Dios el mudo, escultura de sombra, florecer de roca
y los dados de un ciego que cierran el poema.

§

ORA ET LABORA, I

Senhor, longo tempo levo teus restos no pescoço
e ainda
minha boca solitária, me ajoelho ante as tardes
e orando evaporo,
como habitasse as cinzas.
É
como se não existisse, como se a oração
pedira aos deuses a esmola do meu nome
pela tarde inteira.
Nunca soube o que era o céu:
talvez a tarde, talvez
amar mais que tudo
minha mãe, as cinzas.
Oh, contemple!
Afaste teu olhar de mim, fiz um voto
torne secreta minha morte.

:

ORA ET LABORA, I

Señor, largo tiempo llevo tus restos en el cuello
y aún
mi boca sola, y me arrodillo ante las tardes
y en el rezo me evaporo,
como si fuera mi casa la ceniza.
Es
como si no existo, como si el rezo
pidiera a los dioses la limosna de mi nombre
ante la tarde entera.
Nunca supe lo que el cielo era:
quizá la tarde, tal vez
amar más que ninguno
a mi madre, la ceniza.
! Oh, espía!
De mí aparta tu ojo, hice un voto
haz secreta mi muerte.

§

De Poemas del Manicomio de Mondragón, 1987.

HINO A SATÃ

Tu que és tão somente
uma ferida na parede
uma marca na testa
que induz suavemente
à morte.
Tu ampara os fracos
melhor que os cristãos
tu vens dos astros
e odeias esta terra
onde miseráveis descalços
dão as mãos dia após dia
buscando entre a merda
a razão da vida;
Já que nasci do excremento
te amo
e amo pousar sobre tuas
mãos delicadas minhas fezes.
Teu símbolo era o cervo
o meu a lua
que a chuva desabe sobre
nossas faces
nos unindo num abraço
silencioso e cruel em que
como o suicídio, sonho
sem anjos nem mulheres
nu de tudo
menos do teu nome
dos teus beijos em meu ânus
e tuas carícias em minha cabeça calva
jorraremos vinho, urina
e sangue nas igrejas
presente dos bruxos
e sob os crucifixos
uivaremos.

:

HIMNO A SATÁN

Tú que eres tan sólo
una herida en la pared
y un rasguño en la frente
que induce suavemente
a la muerte.
Tú ayudas a los débiles
mejor que los cristianos
tú vienes de las estrellas
y odias esta tierra
donde moribundos descalzos
se dan la mano día tras día
buscando entre la mierda
la razón de su vida;
ya que nací del excremento
te amo
y amo posar sobre tus
manos delicadas mis heces.
Tu símbolo era el ciervo
y el mío la luna
que la lluvia caiga sobre
nuestras faces
uniéndonos en un abrazo
silencioso y cruel en que
como el suicidio, sueño
sin ángeles ni mujeres
desnudo de todo
salvo de tu nombre
de tus besos em mi ano
y tus caricias en mi cabeza calva
rociaremos con vino, orina y
sangre las iglesias
regalo de los magos
y debajo del crucifijo
aullaremos.

§

de Contra España y otros poemas no de amor, 1990.

FIGURAS DA PAIXÃO DO SENHOR

Está morto, Ele, morreu e chove
e há uma lâmpada acesa para sempre
entre meus olhos:
perecida com a lua
que, zombeteira,
ri eternamente de Deus.
Igual a chuva desfaz minha imagem
e minha face, semelhante à Daquele, cai
ferido pela pedra,
pela pedra de ninguém que fere e mata
enquanto chove. Enquanto chova talvez eternamente
e a chuva impõem ao mundo a imagem de um rosto
que não nos permite olvidar, como o colorido óxido do farol
de Londres brilha entre a bruma
para que não esqueça
o cadáver daquela prostituta.

:

FIGURAS DE LA PASIÓN DEL SEÑOR

Ha muerto Él. Ha muerto él y llueve
y hay una lámpara encendida para siempre
entre mis dos ojos:
parecida a la luna
que, burlona,
se ríe eternamente de Dios.
Igual la lluvia deshace mi figura
y mi rostro, semejante al de Aquél, cae
herido por la piedra,
por la piedra de nadie que hiere y mata
mientras llueve. Mientras llueve quizás eternamente
y la lluvia imprime al mundo la figura da un rostro
que no nos deja olvidar, como el colorido óxido de la farola
de Londres que entre la bruma brilla
para que no olvide
el cadáver de aquella prostituta.

§

A MONJA ATEIA

As monjas adoram a seu deus que não existe
enquanto o Papa aperta o gatilho
e diz Deus não existe
é imaginação da Igreja
que morre pouco a pouco
os ateus choram aos pés de uma estátua.
E o mundo diz Deus não existe
é imaginação do Papa
enquanto os ateus
choram e choram por sua beleza perdida
e Deus já não existe
está aos prantos no Inferno.

Eis a estátua esculpida do nada.

:

LA MONJA ATEA

Las monjas adoran a su Dios que no existe
mientras el Papa aprieta el gatillo
y dice Dios no existe
es una imaginación de la Iglesia
que está muriendo poco a poco
los ateos lloran al pie de una estatua.
Y el mundo dice Dios no existe
es una imaginación del Papa
mientras los ateos
lloran y lloran por su belleza perdida
y Dios ya no existe
está llorando en el Infierno.

Ésta es la estatua entera de la nada.

§

NASCIMENTO DE JESUS

Os cavalos em vento se transformam
o deserto entre minhas mãos nasce
o medo é Jesus Cristo entre meus olhos
estrela que no nada jaz

O medo diante da neve se ajoelha
o medo diante da escuridão é o nada
uma mulher que entre os homens nasce.

:

NACIMIENTO DE JESÚS

Los caballos en viento se mudan
el desierto entre mis manos nace
el miedo es Jesuscristo entre mis ojos
como una estrella que en la nada yace.

El miedo ante la nieve se arrodilla
el miedo ante lo oscuro es una nada
como una mujer que entre los hombres nace.

§

O QUE DISSE A VIRGEM DIANTE DO FOGO

Cai da mesa o vinho
o pão em migalhas pelas gargalhadas se converte também em vinho
uma mulher morta na cozinha recita diante do fogo
que não queima
lentamente o Evangelho do Sangue.

:

LO QUE DIJO LA VIRGEN FRENTE EL FUEGO

Cae de la mesa el vino
y el pan roto por la risa se convierte también en vino
y una mujer muerta en la cocina recita ante el fuego
que no quema
lentamente el Evangelio de la Sangre.

§

De Orfebre, 1994.

HINO A DEUS PAI

Tu que contemplas o fluir escuro de minha urina
tu que fazes manar como leite o sêmen do rapaz
que induz o cabelo revolto a se apaixonar pelos pequenos
que se diverte vendo como trama-se o sangue pelos leitos
noturnos
e como o menino bebe o sangue do cervo
dizendo - Oh, meu Deus! Me ajude a pecar nas sombras
para que todo mundo veja como o sangue trama-se
pelos leitos noturnos
onde bebe o cervo e a princesa urina
como se urinar fosse sagrado
como se estivesse pronto o sangue do cervo
para nos acalentar no deserto do meio-dia.

:

HIMNO A DIOS PADRE

Tú que espías el fluir oscuro de mi orina
tú que haces fluir la leche del esperma del muchacho
que llevas el pelo revuelto para enamorar a los pequeños
que te diverte ver cómo se escancia la sangre en los vasos
oscuros
y cómo un niño bebe la sangre del cerdo
diciendo ! Oh mi Dios! Ayúdame a pecar en la sombra
para que todo el mundo vea cómo se escancia la sangre en los
vasos oscuros
en donde bebe el cerdo y la princesa orina
como si orinar fuera sagrado
como si estuviera cerda la sangre del cerdo
para calentarnos en el desierto del mediodía.

§

De Guarida de un animal que no existe (1998).

AO INFERNO

Eu sou o homem que vai morrer no lago
sou o homem-cervo que habita e morre no lago
não me busqueis mais, pois sou o cervo,
o animal mais belo que existe
o cervo da loucura:
eu sou o tigre
o animal mais belo da noite: eu sou o Diabo,
que rege o movimento incessante das bocas
na putrefação do inferno
no papel que é puro inferno,
no lago atroz dos cervos
que se contemplam docemente
SEM OLHOS.

:

AL INFIERNO

Yo soy el hombre que va a morir en el lago
yo soy el hombre-ciervo que habita y muere en el lago
y no me busquéis más, pues soy el ciervo,
el animal más bello que existe
el ciervo de la locura:
yo soy el tigre
el animal más bello de la noche: yo soy el Diablo,
que dirige el movimiento incesante de las bocas
en la putrefacción del infierno
en el papel que es puro infierno,
en el lago atroz de los ciervos
que se contemplan dulcemente
SIN OJOS.

§

INFERNO

“Ah a bandeira, a bandeira da carne que sangra
e as flores do ártico que não existe” Arthur Rimbaud

Não busqueis mais, já não tenho olhos
pois o olho é símbolo de Jesus Cristo e de Deus
e sou o cristal do inferno
o cristal para morrer tão solitário
para morrer na página delicada como o sofrimento
como a dor mais atroz que é o sofrer inexistente
o padecer na página que não existe.

:

INFERNO

A Strindberg
“Ah la bandera, la bandera de la carne que sangra
y las flores del ártico que no existen” Arthur Rimbaud

No busquéis más, ya que no tengo ojos
pues el ojo es símbolo de Jesuscristo y de Dios
y yo soy el cristal del infierno
el cristal para morir tan solo
para murir en la página delgada como el sufrimiento
como el sufrir más atroz que es el sufrir que no existe
el sufrir en la página
que no existe.

§

HINO A SATANÁS

Tu que moldas o rastejar das serpentes
das serpentes do espelho, das serpentes da velhice
tu que és o único digno de beijar minha carne enrugada
e mirar no espelho
onde se vê somente um sapo,
belo como a morte:
tu que és como o adorador de ninguém:
se aproxime,
construí o poema como um anzol
para que o leitor caia nele,
e rasteje
umidamente entre as páginas.

* * *

Os pássaros voam sobre teus olhos
e o esqueleto de um cavalo desenha a silhueta da mentira
da mentira de deus em uma habitação escura
onde voam os pássaros

:

HIMNO A SATANÁS

A belfegor, dios pedo o creptus

Tú que modulas el reptar de las serpientes
de las serpientes del espejo, de las serpientes de la vejez
tú que eres el único digno de besar mi carne arrugada,
y de mirar en el espejo
en donde sólo se ve un sapo,
bello como la muerte:
tú que eres como yo adorador de nadie:
ven aquí, he
construido este poema como un anzuelo
para que el lector caiga en él,
y repte
húmedamente entre las páginas.


* *

Los pájaros vuelan sobre tus ojos
y la calavera de un caballo dibuja la silueta de la mentira
de la mentira de Dios en una habitación a oscuras
en donde vuelan los pájaros.


§

sobre o tradutor

Gustavo Petter nasceu em 1984, e mora em Araçatuba (São Paulo). É professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mantém o blog agradaveldegradado.blogspot.com.br.

.
.
.

Endre Ady (1877 - 1919)

$
0
0

Endre Ady foi um poeta de língua húngara, nascido no Império Austro-Húngaro a 22 de novembro 1877, na pequena vila de Érmindszent, hoje chamada Căuaș e parte da Romênia. Sua família era parte da pequena nobreza calvinista da região. Estreou com o volume Versek (Poemas, 1899), e em seguida Még egyszer (Outra vez, 1903), Új versek (Novos poemas, 1906) e Vér és arany (Sangue e ouro, 1907) .Em 1908, a primeira edição do jornal Nyugat (Oeste), para o qual Ady viria a escrever toda a sua vida, trazia um de seus poemas. O jornal seria uma plataforma importante para Enre Ady e outros poetas de sua geração, como Mihály Babits, Gyula Juhász e Béla Balázs. Outros livros incluem Az Illés szekerén (Na carruagem de Elias, 1909), Szeretném, ha szeretnének (Amaria ser amado, 1910), A menekülő Élet (A vida fugidia, 1912) e A halottak élén (Guiando os mortos, 1918). Postumamente, foi lançado Az utolsó hajók (Os últimos navios, 1923). Sofrendo dos efeitos da sífilis por toda a sua vida, Endre Ady morreria a 27 de janeiro de 1919, aos 41 anos.

--- Ricardo Domeneck

§

POEMA DE ENDRE ADY

Recordação de uma noite de verão

Do alto do céu um anjo enraivecido
tocou o alarme para a terra triste.
Endoidaram cem jovens pelo menos,
caíram pelo menos cem estrelas,
pelo menos cem virgens se perderam:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Nossa velha colméia pegou fogo,
nosso potro melhor quebrou a pata,
os mortos, no meu sonho, estavam vivos
e Burkus, nosso cão fiel, sumiu,
nossa criada Mári, que era muda,
esganiçou de pronto uma canção:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Os ninguéns exultavam de ousadia,
os justos encolhiam-se e o ladrão,
mesmo o mais tímido, roubou então:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Sabíamos da imperfeição dos homens,
de suas grandes dívidas de amor:
mas era singular, ainda assim,
o fim de um mundo que chegava ao fim.
Jamais tão zombeteira esteve a lua
e nunca foi menor o ser humano
do que foi nessa tal noite em questão:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Perversamente em júbilo, a agonia
sobre todas as almas se abatia,
os homens imbuíram-se do fado
recôndito de cada antepassado
e, rumo a bodas de um horror sangrento,
seguia embriagado o pensamento,
o altivo servidor do ser humano,
este, por sua vez, mero aleijão:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.
Pensava então, pensava eu, todavia,
que um deus negligenciado voltaria
à vida para me levar à morte,
mas eis que vivo e ainda sou o mesmo
no qual me converteu aquela noite
e, à espera desse deus, recordo agora
uma só noite mais que aterradora
que fez um mundo inteiro soçobrar:
foi uma estranha,
estranhíssima noite de verão.

(tradução de Nelson Ascher, publicada originalmente na revista Dicta & Contradicta).

:

Emlékezés egy nyár-éjszakára

Az Égből dühödt angyal dobolt
Riadót a szomoru Földre,
Legalább száz ifjú bomolt,
Legalább száz csillag lehullott,
Legalább száz párta omolt:
Különös,
Különös nyár-éjszaka volt,
Kigyúladt öreg méhesünk,
Legszebb csikónk a lábát törte,
Álmomban élő volt a holt,
Jó kutyánk, Burkus, elveszett
S Mári szolgálónk, a néma,
Hirtelen hars nótákat dalolt:
Különös,
Különös nyár-éjszaka volt.
Csörtettek bátran a senkik
És meglapult az igaz ember
S a kényes rabló is rabolt:
Különös,
Különös nyár-éjszaka volt.
Tudtuk, hogy az ember esendő
S nagyon adós a szeretettel:
Hiába, mégis furcsa volt
Fordulása élt s volt világnak.
Csúfolódóbb sohse volt a Hold:
Sohse volt még kisebb az ember,
Mint azon az éjszaka volt:
Különös,
Különös nyár-éjszaka volt.
Az iszonyúság a lelkekre
Kaján örömmel ráhajolt,
Minden emberbe beköltözött
Minden ősének titkos sorsa,
Véres, szörnyű lakodalomba
Részegen indult a Gondolat,
Az Ember büszke legénye,
Ki, íme, senki béna volt:
Különös,
Különös nyár-éjszaka volt.
Azt hittem, akkor azt hittem,
Valamely elhanyagolt Isten
Életre kap s halálba visz
S, íme, mindmostanig itt élek
Akként, amaz éjszaka kivé tett
S Isten-várón emlékezem
Egy világot elsülyesztő
Rettenetes éjszakára:
Különös,
Különös nyár-éjszaka volt.

.
.
.
Viewing all 866 articles
Browse latest View live