Hoje, um ensaio de Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984) sobre o trovador occitano Bertran de Born (1140 - 1215).
BERTRAN DE BORN E O AMOR À GUERRA
Guilherme Gontijo Flores (UFPR)
Among them was one who delighted to mingle the excitements of war with the lays of love [...] his name was Bertran de Born.
(H. C. Barlow)
A proposta deste simpósio “Do amor e da guerra”, precisamente por se fundar num “e”, dicotomiza essa relação, o que nos leva a pensar sobretudo em suas oposições (o amor contra a guerra, ou Pacis Amor deus est(“Amor é o deus da paz”) da poesia elegíaca romana de Propércio, ou o Make love, not war, de John Lennon); ou sua interrelações mais complexas (tais como o amor como causa da guerra, na Ilíada, ou o amor como contraposição ao dever, como na Dido da Eneida). Esses movimentos de oposição ou interrelação são, é claro, a maioria dos casos literários e históricos que podemos encontrar, mas gostaria aqui de me deter numa figura ainda pouco conhecida no Brasil: o poeta provençal Bertran de Born. Vejamos o que diz dele em comparação com seus contemporênos Dante, em De vulgari eloquentia:
[...] si bene recolimus, illustres viros invenimus vulgariter poetasse, scilicet Bertramum de Bornio arma, Arnaldum Danielem amorem, Gerardum de Bornello rectitudinem; Cynum Pistoriensem amorem, amicum eius rectitudinem(II, 2, 9).
[.. ]se bem me lembro, encontramos homens ilustres que poetaram em vernáculo, tais como: Bertran de Born, as armas; Arnaut Daniel, o amor; Giraut de Bornelh, a retidão; Cino da Pistoia, o amor; e seu amigo, a retidão (tradução minha).
Na fala de Dante, Bertran se destaca pelo interesse pelas armas. É verdade que a sua poesia, como a da maioria dos poetas de seu tempo, tratou em grande parte de temas amorosos, do louvor da mulher amada, da alegria de uma relação ambiguamente fundada no desejo e na não realização carnal desse mesmo desejo. Porém não é esse aspecto que pretendo tratar, e sim um mais radical, em que amor e guerra não se opõem, nem se interrelacionam, mas são uma só coisa, que pretendo chamar aqui de “amor à guerra”. Mas não podemos simplificar essa amor à guerra com um julgamento moral precipitado, como o de C. C. Fauriel:
[...] the old biographer indicates the dominant trait of Bertrand’s character very distinctly; it was an unbridled passion of war. He loved it not only as the occasion for exhibiting proofs of valor, for acquiring power, and for winning glory, but also and even more on account of its hasards, on account of the exaltation of courage and of life which it produced, nay even for the sake of tumult, the disorders, and the evils which are accostumed to follow in its train. Bertrand de Born is the ideal of the undisciplined and adventuresome warrior of the Middle Age, rather than that of the chevalier in the proper sense of the term(1860, p. 483).
Ao encontrar nos versos de Bertran uma “paixão desenfreada pela guerra”, Fauriel parece não compreender como esse comportamento poético ganha seu discurso dentro de uma sociedade em que a cavalaria europeia está sofrendo uma grande reforma; é de dentro dessa reforma que Bertran de Born faz uma poesia radicalmente original – nesse ponto, não podemos contrastar a poesia de Bertran contra a de um cavaleiro, mas com a do cavaleiro, para percebermos onde ele encontra espaço para sua diferença. Não se trata, portanto, de querer tornar sua poesia única, mas, em primeiro lugar, em situá-lo numa mudança cultural drástica que permitiu a renovação tanto do pensamento da cavalaria e da nobreza, quanto a revitalização da poesia no formato musical cortês. Essa guinada está intrinsecamente ligada ao crescimento urbano na região da França.
Although European civilization remained predominantly rural, urban life grew more vital. Cities had existed in the south of France since Roman times and earlier as seats of religious an political authority; now those of Aquitaine in particular received a flow of people from the overcrowded countryside, and cities everywhere in France became points of concentrated economic activity as comerce revived, the exchange of money quickened, and prices rose. [...] The new mobility of this bourgeoning society struck conservative observers as a scandal(Paden, Sankovitch & Stäblein, 1986, p. 2).
Dentro dessa série de alterações, ocorreu também uma maior independência aos senhores, que passaram a construir castelos cada vez mais fortificados, o que lhes permitia desafiar seus inimigos com menos temor, já que um cerco tomaria mais tempo e investimento monetário por parte do invasor. Esse clima de independência e disputa se espalhava por praticamente toda a nobreza; mas não apenas nela.
Warfare had traditionally been one of the nobility’s chief sources of income, along with the possession of land, but these developments tended to make it more costly at the same time as it was becoming more hazardous. Many a knight, like the troubadour Raimbaut d’Aurenga, forced into debt by his increasing expenses and decreasing value of his fixed manorial income, found himself obliged to mortgage or sell his inheritance (ibid. p. 3).
Assim, é fácil compreender como o código da cavalaria mudou nesse período. Com a decadência monetária de alguns grupos e o crescimento do número de mercenários em ação, que muitas vezes pilhavam os bens dos cavaleiros em ataques inesperados, o que vemos surgir é uma classe extremamente voltada para ideais aristocráticos de coragem individual e prodigalidade para com seus dependentes, o que, aliado a uma cultura literária já interessada nas canções de corte, reforçou ainda mais uma certa imprudência bélica. Talvez essa imagem ainda abstrata possa ser melhor compreendida com um exemplo: Ricardo Coração-de-Leão. Filho de Henrique II Plantageneta, ele assumiu o trono da Inglaterra em 1189 e ganhou fama sobretudo por seus talentos na cavalaria e por suas empreitadas bélicas recheadas de histórias sobre sua violência e coragem, mesmo em momentos de grande risco. Entre as guerras intestinas e as longas batalhas da Cruzada, além de dois anos de prisão na Alemanha, ele passou praticamente 10 anos fora da Inglaterra até morrer em 1199. Ao mesmo tempo, sabemos que se tratava de uma figura muito letrada (chegaram-nos dois poemas atribuídos a ele), com domínio do latim, do francês e do provençal; muito embora Ricardo nunca tenha aprendido a língua inglesa, pouco valorizada na época. Essa lógica de política, que mais gastava os bens do patrimônio inglês, do que propriamente se tratava de uma boa administração, era, paradoxalmente, bem vista pelo povo e pelos cortesãos exatamente por se adequar à nova ética da cavalaria; nesse sentido, Ricardo apenas seguia a postura dos seus dois irmãos mais velhos: Henrique, o Jovem e Godofredo II. É nesse contexto entre o reinado de Henrique II Plantageneta e os feitos de Ricardo Coração-de-Leão que Bertran de Born compôs suas canzos. E sua relação com o clima cultural parece bem resumida no texto de Ezra Pound: “talvez no tempo de D. Bertran até mesmo as guerras provençais podem ter-se assemelhado a um jogo, parecendo trazer em si algum elemento de esporte e acaso” (1976 [1913], p. 118).
Mas antes de partirmos para a tradução do poema, passemos brevemente por sua biografia. Bertran de Born, senhor de Autafort, nasceu entre 1140 e 1150 (a data mais específica ainda permanece um debate entre os estudiosos), era primogênito de outro Bertran de Born e de Ermengardis, uma família aparentemente estável em sua nobreza e poder local; além do trovador, seus pais tiveram pelo menos outros dois filhos: Constantine e Itier. Ao que tudo indica, ele passou a suceder seu pai na administração das terras a partir de 1178, casou-se com uma certa Raimonda, com quem teve dois filhos (Bretran e Itier). Em 1181 teria escrito seu primeiro sirventes(poema 1) – dentre os textos que chegaram até nós – por encomenda do conde Raimond V de Toulouse, e já nesse poema ele se gaba da fama como poeta bélico e assim o termina (vv. 45-6):
Totz temps vuoill que li aut baro
Sion entre lor irascut
E sempre quero que os barões
Loucos combatam entre si.
Ao comentar o texto, Frank Chambers afirma que tais versos já pertenceriam a um novo subgênero de sirventes, voltado para incitar a guerra, e que Bertran de Born seria o inventor (1985, p. 158). No ano seguinte, o poeta teria feito poemas na corte de Henrique II Plantageneta (poemas 8 e 9) e em seguida já tomaria parte numa revolta contra Ricardo Coração-de-Leão (poemas 3), que acabou com a morte de Henrique o Jovem em 1183 e a subsequente tomada de Autafort por Ricardo (poema 17). É interessante, neste contexto, pensar nas palavras de Ezra Pound, numa carta a Felix Schelling: “De Born writes songs to provoke real war, and they were effective. This is very different from Romantic Macaulay-Tennyson praise of past battles” (1970 [1922], p. 90). Desse modo, aqui nós vemos o poeta provocar a guerra e suportar as perdas severas da batalha; ou, como poderíamos prever também pelas palavras de Paden et alii (ibid., p. 33) sobre a arte do trovador: The art of Bertran de Born springs from an obsession with conflict and a drive to master conflict. É no meio do conflito que De Born parecia encontrar seu espaço poético e político.
No entanto, aproveitando-se das brigas internas entre o rei Henrique II e seus filhos, Bertran conseguiu reaver sua propriedade por favores de Henrique II (poema 19), dessa vez sem dividi-lo com o irmão Constantine. Enquanto seu irmão teria passado à mendicância e à prática de saltear vilarejos, ele floresceu como único senhor de Autafort, submisso apenas perante o rei da Inglaterra. Sabemos ainda que, em algum momento ao longo da década de 1180 ele se casou com outra mulher, Philippa, e que seus dois filhos do primeiro casamento foram condecorados cavaleiros. Depois, entre 1196 e 1202 converteu-se a monge cistércio, em Dalon; o que não o impediu de continuar escrevendo sua poesia satírica (poemas 46 e 47), sem que isso gerasse um conflito com a ordem religiosa. Depois disso, permaneceu num silêncio literário até morrer em 1215.
Vendo essa relação entre o contexto político-literário europeu e as peculiaridades da vida de Bertran de Born, se ainda por cima concordarmos com a opinião de Alfred Jeanroy (“peu de poètes de son temps l’ont egalé no seulement par l’intensité de la passion, mais par les qualités purement formelles”, 1934, vol. 2, p. 199), cabe-nos agora apresentar uma tradução que reforce esse caráter poético-amoroso em direção à guerra. Em geral essa representação dos prazeres da guerra, tal como na poesia amorosa, está em primeiro lugar sempre adiada e, portanto, retratada como um desejo de realização por vir, nunca consumada, sua apresentação é quase sempre a de uma ausência lamentável, ou como uma potencialidade ansiada pelo poeta; de modo que o trovador aparece muitas vezes solitário em relação ao seu desejo. Aqui, a meu ver, parece estar um ponto crucial no seu pensamento: o amor é um modo de descrição da guerra, e vice-versa (a guerra é uma metáfora para o amor); o que faz com que sua poesia transite entre esses espaços aparentemente antagônicos sem maior esforço, como se pode notar nos dois poemas que escolhi para a tradução (6 e 30). Tanto o amor quanto a guerra são vistos como exigências de atividade e virtude, ao mesmo tempo em que são sempre adiados pela não realização típica do trovadorismo. Nesse sentido, o grande guerreiro é necessariamente um grande amante (um ponto bem explícito em 30, “O Amor quer bom cavalgador / que ame as armas e o servir”), capaz de realizar seus atos; e assim não nos espanta de Godofredo Palangenta seja criticado no poema 16 como um amante passivo, pouco viril no seu desejo. Paradoxalmente, essa figura heroica, capaz de amar “as armas e o servir” parece não existir no presente de Bertran, mas está sempre adiado, como a própria guerra, como o próprio amor – o herói não está nos tempos passados, nem no presente, mas no desejo desse eu-lírico, que sofre de amor e paz, o que parece explicar porque Bertran tenha se concentrado tanto no sirventes: era o melhor veículo para expressar essa frustração fora do campo amoroso. É dessa forma que os únicos contemporâneos louvados em seus versos são mortos, como Henrique o Jovem e o próprio Godofredo, que em vida foram criticados pelo trovador tal como Ricardo Coração-de-Leão. Na morte, o cavaleiro pode ser verdadeiramente louvado como herói, porque não sofre mais da passividade da paz e do amor não correspondido típico da literatura cortês.
Já no campo formal, Bertran de Born parece ter inserido alguns aspectos no mínimo curiosos. Segundo Chambers (1985, p. 161), ele teria sido o primeiro trovador a reutilizar a mesma melodia e esquema de rimas (e até as mesmas rimas) de outra cansopré-existente, com o intuito de criar um novo efeito; no entanto há ainda um detalhe importantíssimo nesse processo – o poeta não imitava poetas antepassados, mas seus próprios contemporâneos, provavelmente seus conhecidos, com a possibilidade de aumentar o desafio técnico de se utilizar as mesmas palavras em outro contexto, ou de usar até mais palavras com a mesma rima; o que faz com que o poema não seja simples imitação, mas sim um processo de diálogo crítico com o poema alheio. Um outro aspecto importante para alguns dos poemas e que talvez caracterize uma parte da sua peculiaridade poética é aquilo que Augusto de Campos chamou “a ‘barulhidade’ dos versos”, como se pode perceber no poema Un sirventes cui motz no falh, interiamente escrito com rimas em –alh, -alh, art, -alha, -art, -alha, dando ainda mais força à virulência do ataque satírico do sirventese ressoando em seus versos. Nesse afastamento do típicamente lírico, Bertran busca refúgio no diálogo com a épica medieval e com os romans, com suas referências a gritos de guerra, cavalos desembestados sem cavaleiros, corpos atravessados por lanças, como se pode ver no poema 30, traduzido abaixo. Aqui, talvez, esteja realmente sua maior contribuição para a lírica provençal:
Bertran de Born distinguishes himself through the exertion of his will as the speaker of his poems; unlike the epic and the other medieval forms to which we have compared it, his art is energized by the poet’s forceful presence, mediating between his perception of reality and his heroic ideal. Unlike the epic poet who sings bindly of the glorious past, Betran speaks as a satirist who engages in continuous self-concious scrutiny of the present. Because of the structuring role of the speaker’s voice, which distinguishes his discourse from that of the epic, it was inevitable that Bertran de Born should employ lyric form(Padenm Sankovitch & Stäblein, 1985, p. 41).
E é, portanto esse caráter de “escrutínio autoconsciente” que permeia toda sua obra que o faz deslizar entre os gêneros lírico-amoroso, satírico e épico, sempre tendendo para o lírico por fazer um uso explícito dessa primeira pessoa identificada ao eu do poeta. Talvez esse atravessamento estilístico é que tenha gerado uma leitura tão direta da sua obra com sua vida (além, é claro, do costume geral da época), sem reparar nas releituras genéricas que eram ali operadas pelo próprio processo compositivo de Bertran de Born. O que seria mais interessante notar é como esse deslizamento genérico pode funcionar para criar uma maior vividez nas descrições bélicas por meio de uma “evocação sensual da guerra” (ibid. p. 38) pela descrição imediata da carnificina pelo olhar singularizado de um eu-lírico bélico. Não é à toa, afinal, que, na esteira dessa leitura biográfica dos poema, uma das imagens literárias mais marcantes sobre o poeta apareça no Infernoda Commediade Dante, quando o encontramos no círculo dos semeadores de discórdia, uma das regiões mais baixas de Malebolge. Vejamos o trecho:
Io vidi certo, e ancor par ch’io ’l veggia,
un busto sanza capo andar sì come
andavan li altri de la trista greggia;
e ’l capo tronco tenea per le chiome,
pesol con mano a guisa di lanterna:
e quel mirava noi e dicea: “Oh me!”.
Di sé facea a sé stesso lucerna,
ed eran due in uno e uno in due;
com’ esser può, quei sa che sì governa.
Quando diritto al piè del ponte fue,
levò ’l braccio alto con tutta la testa
per appressarne le parole sue,
che fuoro: “Or vedi la pena molesta,
tu che, spirando, vai veggendo i morti:
vedi s’alcuna è grande come questa.
E perché tu di me novella porti,
sappi ch’i’ son Bertram dal Bornio, quelli
che diedi al re giovane i ma’ conforti.
Io feci il padre e ’l figlio in sé ribelli;
Achitofèl non fé più d’Absalone
e di Davìd coi malvagi punzelli.
Perch’ io parti’ così giunte persone,
partito porto il mio cerebro, lasso!,
dal suo principio ch’è in questo troncone.
Così s’osserva in me lo contrapasso.”
(Inferno, XXVIII, vv. 118-142)
Um corpo andar eu vi, monstro novel,
sem a cabeça que, na mão, a jeito
levava de lanterna, firme e presa
pelo cabelo, a iluminar o leito
da estrada, como fora luz acesa.
Ainda me parece vê-lo e ouvi-lo
a gritar: “Infeliz que sou!” Surpresa
maravilhosa! Dupla vida aquilo
era e alma dupla e só o poderoso
Deus soube assim guardá-lo em dividi-lo.
Quando chegou sob o arco pedregoso,
ergueu o braço e agitou a testa
para que ouvisse o verbo doloroso.
“Vê tu, me disse, a minha dor molesta!
Tu que andas vivo pelos mortos vales;
vê e dize se há dor grande como esta!
E porque tu de mim no mundo fales,
sabe que sou Bertram de Bornio, o tal
(e peço-te que disto não te cales)
que entre o pai pôs e o filho ódio mortal.
Ao filho de Davi Achitofel
não inspirou um ódio mais fatal.
Porque pessoas caras eu, revel,
separei, separado está de mim
meu detestável cérebro infiel.
A pena do talião eu pago aqui”
(trad. de João Trentino Ziller)
A imaginação de Dante pode parecer dura para um leitor contemporâneo, mas ela está muito próxima do que podemos ver ao compararmos o trecho da Commediaa uma das biografias provençais a respeito do poeta.
Bertrans de Born si fo us chastelas de l’eveschat de Peiregorc, senher d’un chastel que avia nom Autafort. Totz temps ac guerra ab totz los sieus yezis : ab lo comte de Peiregorc et ab lo vescomte de Lemotges, et ab so fraire Constanti et ab Richart, tan quan fo corns de Peitau. Bos chavaliers fo e bos guerriers e bos domneiaire e bos trobaire e savis e be parlans e saup tractar mals e bes, et era senher totas vetz quan si volia del rei Henric d’Englaterra et del filh de lui. Mas totz temps volia qu’ilh aguessen guerra ensems, lo paire e·l filhs e·lh fraire, l’us ab l’autre, e totz temps vole quel reis de Franza e·l reis d’Englaterra aguessen guerra i ensems. E s’ilh avian patz ni tregua, ades si penava e·s perchassava ab sos sirventes de desfarja patz et de mostrar com chascus era desonratz en la patz ; e si n'ac de grans bes et de grans mals de so qu’el mesclet mal entre lor. E fetz maintz bos sirventes dels quals son gran re aissi escriut, segon que vos podetz vezer et entendre(apudStimming, 1913, p. 54).
Bertran de Born foi um castelão do bispado de Perigord, senhor de um castelo cujo nome era Autafort. A todo instante estava em guerra com todos os senhores vizinhos, com o conde de Perigord e com o visconde de Limousin e com seu irmão Constantine e com Ricardo [Coração-de-Leão], que então era conde de Poitiers. Foi bom cavaleiro e bom guerreiro e bom sedutor e bom trovador, culto e bom na fala e sabia se portar no mal e no bem; e, sempre que assim o queria, era senhor do rei Henrique II da Inglaterra e de seu filho. Mas a todo instante queria que travassem guerra entre si, o pai contra os filhos e os irmãos, um contra o outro, e a todo instante quis que o rei da França e o rei da Inglaterra travassem guerra entre si. E se acaso obtivessem paz ou trégua, então se exercitava nos seus sirventespara desfazer a paz e mostrar como cada um deles se desonrava com a paz; assim teve grandes bens e grandes males porque mesclava o mal entre os outros. E fez muitos belos sirventes, cuja maior parte está escrita, de modo que vós os podeis ver e escutar (tradução minha).
Para além da biografia, temos também a iconografia que muitas vezes acompanhava as vidas, e logo se percebe como Bertran de Born é praticamente o único trovador representado como cavaleiro, armado sobre o cavalo:
Nesse ponto, pareço estar retornando ao meu ponto de partida, ao perceber como a visão sobre sua vida estava confundida pela radicalidade da sua poesia. Ora, não cabe a mim, e provavelmente a nenhum de nós, escavar com minúcia detalhes da vida e da subjetividade do sujeito Bertran de Born, mas apenas tentar desvincular um pouco essa suposta sobreposição entre literatura e vida. Vimos, afinal, que tanto os biógrafos quanto Dante e posteriormente, Longfellow e outros estudiosos até o início do século passado, criam piamente nessa figura feroz e viam na sua reclusão um possível arrependimento pelos pecados. A mim, como à maioria dos estudiosos contemporâneos, parece mais interessante perceber como sua poesia se construía dentro daqueles novos modos da cavalaria e da poesia trovadoresca, passando de um ponto contextual e histórico para outro ponto histórico-literário, para conseguirmos entender de que modo essa poesia em grande parte satírica bebia nas formas da poesia amorosa o seu amor à guerra.
É aí que entra o projeto tradutório como ferramenta crítica, na medida mesmo em que é capaz de explicitar modos de leitura pela escolha tradutória. Não apenas a escolha de como traduzir um determinado poeta, mas também do quetraduzir desse determinado poeta, quando não há pretensão de uma tradução completa. Nesse caso, optei por traduzir dois poemas: um poema amoroso que acaba caminhando inevitavelmente para a temática bélica, por comparações ousadas; e outro que se inicia na temática bélica para terminar num símile amoroso. Nos dois casos, podemos notar como Bertran de Born faz seu amor à guerra ao pé da letra, pelo recurso genérico da poesia amorosa de seu tempo, refundado no código de cavalaria exaltado da segunda metade do século XII, num movimento de vai e volta entre o erótico, o satírico e o bélico, ou épico da escrita.
Para a tradução, consultei o impressionante trabalho de Paden, Sankovitch e Stäblein (1986), que consta de uma edição crítica de todos os 47 poemas que nos chegaram (4 outros estão excluídos, por serem vistos como composicões do filho de Bertran de Born), numa distribuição cronológica distribuída entre 1181 e 1198, com suas respectivas apresentações, traduções, comentários e aparato crítico, além de algumas notações musicais e um vocabulário provençal completo. Vez por outra, consultei também as duas edições alemãs de Albert Stimming e suas notas (1879 e 1913) e uma tradução poética para o inglês feita por James H. Donaldson que se encontra na internet. Além disso, conforme o comentário de Chambers (1985), tentei manter o máximo possível o lado virtuosístico, porém conservador, da metrificação de Bertran, numa poesia brasileira sem grandes estranhamentos rítmicos.
Traduções
6
1
Eu m’escondisc, dompna, que mal non mier
de so qe·us ant dich de mi lausengier.
Per merce·us prec. Q’om non puosca mesclar
lo vostre cors fin, leial, vertadier,
humil e franc, cortes e plazentier,
ab mi, dompna, per messongas comtar.
2
Al primier get perd’eu mon esparvier
o·l m’aucion el poing falcon lainier
e porton l’en, q’ieu·l lor veia plumar,
s’ieu non am mais de vos lo cossirier
que de nuill autr’aver mon desirier,
qe·m don s’amor ni·m reteign’al colgar.
3
Autr’escondich vos farai plus sobrier,
e no·m puosc plus adorar d’encombrier:
s’ieu anc failli vas vos, neis del pensar,
qan serem sol dinz cambr’o en vergier
failla·m poders davas mon compaignier
de tal guisa que no·m posc’aiudar.
4
S’ieu per jogar m’asset pres del taulier
ja no·i puosca baratar un denier,
ni ab taula presa non puosca intrar;
anz get ades lo reirazar derrier,
s’ieu autra dompna mais deman n’enquier
mas vos cui am e desir e teing car.
5
Seigner si’eu de castel parsonier
et en la tor siam catre parier
e ja l’us l’autre non poscam amar,
anz m’aion ops totz temps arbalestrier,
metg’e e sirven e gaitas e portier,
s’ieu anc aic cor d’autra dompna amar.
6
Escut a col cavalc eu ab tempier
e port sailat capairon traversier
e ceignas breus q’om non posc’alongar
ez estreups loncs en caval bas trotier,
ez a l’ostal trob irat l’ostalier
s’ieu agui cor d’autra dompna pregar.
7
Ma dompna·m lais per autre cavallier
e pois non sai a que m’aia mestier;
e failla·m vens qan serai sobre mar,
en cort de rei mi batan li portier
et en cocha fassa·l fugir primier
si no·us menti cel qe·us anet comtar.
8
Dompna, s’ieu ai mon austor anedier
bel e mudat, ben prenden e mainier,
qe tot auzel puosca apoderar,
sign’e grua et aigron blanc e nier –
volria lo mal mudat, gaillinier,
gras, desbaten, qe non puosca volar?
9
Fals enveios fementit lausengier,
pois ab midonz m’avetz mes destorbier
be·us lausera qe·m laissasetz estar.
6
1
Perdão, senhora, por não merecer
mentiras de um bajulador qualquer.
Mercê te peço, p’ra ninguém causar
rixa entre o teu sincero, vero ser,
cortês, humilde e franco (um só prazer),
e o meu, senhora, só de caluniar.
2
Pois que o meu gavião quero perder,
ou que um falcão-borni o vá morder
para depois de morto o depenar,
se um dia eu já deixei de te querer
mais do que quis qualquer outra mulher
que me dê seu amor ao se deitar.
3
Outro perdão te peço, que é mister,
e não posso implorar por mais sofrer:
se contigo falhei, mesmo ao pensar,
quando um quarto ou jardim a nós couber,
que o meu poder me falte, sem sequer
que a companheira possa me ajudar.
4
Se à mesa eu for jogar ou me entreter,
não me emprestem vintém, nem um talher,
nem possa em mesa presa eu penetrar;
mas que no dado eu venha a me abater,
se alguma outra dama me aprouver
como tu, que me fazes desejar.
5
Que o meu castelo se divida até
ter quatro donos com seu belveder,
sem que um sequer consiga ao outro amar,
num cerco de besteiros quanto houver,
doutores, mercenários, o que vier;
se eu tive coração para outra amar.
6
Co’escudo no pescoço hei de viver
na tempestade, co’elmo onde estiver,
e cinto firme, sem poder soltar,
no trote do corcel mais pangaré;
nem queira o albergueiro me acolher,
se ousei ter coração de outra flertar.
7
Que a minha amada de outro queira ser,
e que a mim reste um longo carecer;
que ventos eu não veja sobre o mar,
e na corte me cerquem pra bater;
seja eu na rixa o primeiro a correr,
se não mentiu quem veio te falar.
8
Senhora, e se um açor eu bem tiver,
belo e mudado, treinado em prender,
que a toda ave pode conquistar
(o cisne, o grou e a garça) em seu mester,
quero que cace frangos, para quê?
Se, gordo e velho, não puder voar?
9
Falso bajulador de um malmequer,
se quer entre os amantes se envolver:
mais nos bajula, se nos deixa estar.
§
30
1
Be·m plai lo gais temps de pascor,
que fai fuoillas e flors venir;
e plai me qand auch la baudor
dels auzels que fant retintir
lo chant per lo boscatge; 5
e plai me qand vei per los pratz
tendas e pavaillons fermatz;
et ai grand alegratge,
qand vei per campaignas rengatz
cavalliers e cavals armatz.
2
E plaz me qan li corredor
fant las gens e l’aver fugir ;
e plaz me qand vei apres lor
granren d’armatz corren venir ;
e plaz m’e mon coratge,
qand vei fortz chastels assetgatz
e·ls barris rotz et esfondratz
e vei l’ost el ribatge
q’es tot entorn claus de fossatz,
ab lissas de fortz pals serratz.
3
Et atressi·m platz de seignor
qand es primiers a l’envazir,
en caval, armatz, ses temor,
c’aissi fai los sieus enardir
ab valen vassalatge.
E pois que l’estorns es mesclatz,
chascus deu esser acesmatz
e segre·l d’agradatge,
que nuills hom non es ren prezatz
tro q’a mains colps pres e donatz.
4
Massas e brans, elms de color,
escutz traucar e desgarnir
veirem a l’intrar de l’estor
e maing vassal essems ferir,
don anaran aratge 35
cavaill dels mortz e dels nafratz.
E qand er en l’estor intratz,
chascus hom de paratge
non pens mas d’asclar caps e bratz,
que mais val mortz qe vius sobratz.
5
E·us dic qe tant no m’a sabor
manjar ni beure ni dormir
cum a qand auch cridar: “A lor!”
d’ambas las partz, et auch bruir
cavals voitz per l’ombratge,
et auch cridar: “Aidatz! Aidatz!”
e vei cazer per los fossatz
paucs e grans per l’erbatge,
e vei los mortz que pels costatz
ant los troncons ab los cendatz.
6
Amors vol drut cavalgador,
bon d’armas e larc de servir,
gen parlan e gran donador
e tal qi sapcha far e dir
fors e dinz son estatge 55
segon lo poder qi l’es datz.
E sia d’avinen solatz,
cortes e d’agradatge.
E domna c’ab aital drut jaz
es monda de totz sos pechatz.
7
Pros comtessa, per la meillor
c’anc se mires ni mais se mir
vos ten hom, e per la genssor
dona del mon, segon q’auch dir.
Biatritz d’aut lignatge,
bona dompn’en ditz et en fatz,
fonz lai on sorz tota bontatz,
bella ses maestratge,
vostre rics pretz es tant poiatz
qe sobre totz es enanssatz.
8
Donzella d’aut linhage,
tal en cui es tota beutatz,
am fort, e sui per leis amatz;
e dona·m tal corage
qe ja no pens esser sobratz
per un dels plus outracujatz.
9
Baron, metetz en gatge
castels e vilas e ciutatz
enans c’usqecs no·us gerreiatz!
10
Papiol, d’agradatge
ad Oc e No t’en vai viatz;
digas qe trop estan en patz.
:
30
1
Eu quero a primavera, o ardor
que folhas traz e faz florir;
e quero escutar o estentor
das aves, quando retinir
seu canto na ramagem;
e quero ver ainda mais
no prado as tendas colossais;
e acho uma bela imagem,
se vejo armados entre iguais
os cavaleiros e os metais.
2
Adoro quando o explorador
atiça o povo p’ra fugir,
e adoro ver em tal clamor
os homens d’arma a perseguir,
e adoro ter miragem
do forte em cercos marciais,
ou das muralhas terminais,
e as hostes noutra margem
que passam a fossa voraz
e uma paliçada por trás.
3
Também adoro se o senhor
for o primeiro a invadir
montado, armado, sem temor,
que assim nos outros faz surgir
valente vassalagem.
Se a batalha se refaz,
prepare-se cada rapaz
para a longa viagem:
ninguém é louvado jamais –
somente entre golpes mortais.
4
Maças, gládios, elmos de cor
e escudos logo a se partir
veremos, e até o sol se por
vassalos iremos ferir,
fugirão sem fardagem,
co’o dono morto, os animais.
E na batalha, o homem vivaz
só pense na carnagem
e em degolar todos os mais,
pois antes morto que incapaz.
5
Ah, para mim não há sabor
em comer, beber, ou dormir,
igual ao de ouvir o clamor
de duas linhas e o zunir
dos corcéis na pilhagem
e homens gritando “Atrás! Atrás!”
e vê-los na fossa voraz,
junto ao rés da relvagem,
e ver as flâmulas fatais
varando o arnês que se desfaz.
6
O Amor quer bom cavalgador
que ame as armas e o servir,
gentil na fala, grão doador,
que saiba o que dizer e agir,
em qualquer estalagem,
pelo poder de que é capaz.
Um companheiro como apraz,
cortês em sua linguagem.
A dama que acaso o compraz
não tem pecados cardeais.
7
Ó grã condessa, és a melhor
(todos estão a repetir),
e tua nobreza é a maior
do mundo, pelo que eu ouvi.
Beatriz de alta linhagem,
senhora no que diz e faz
ó fonte do bem mais primaz,
belíssima ancoragem:
o teu valor é tão veraz,
que sobre todas sobressais.
8
Virgem de alta linhagem
e da beleza mais tenaz,
amado eu amo forte e audaz:
ela me dá coragem –
não temo a perda que me traz
nem mesmo o pulha mais mendaz.
9
Barões, é mais vantagem
hipotecar vossos currais
do que se a guerra renegais.
10
Papiol, eis a viagem,
ao Senhor Sim-e-Não irás
dizer que muito estão em paz.
§
REFERÊNCIAS
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SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1972.
STIMMING, Albert. Bertran von Born, sein Leben und seine Werke, mit Anmerkungen und Glossar. Halle: Max Niemeyer, 1879.
STRONSKI, Stanislaw. La légende amoureuse de Bertran de Born. Paris: Édouard Champion, 1914.
§
Notas do autor