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Omar Khouri

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Omar Khouri é um poeta e artista visual brasileiro, nascido em São Sebastião do Pouso Alegre, em 1948. Professor universitário, leciona Teoria da Comunicação, Semiótica Peirceana e Teoria e Crítica da Arte.

Omar Khouri - das "Erotografias" (1975)


Considera-se poeta bissexto. Os textos abaixo são inéditos.

--- Modo de Usar & Co.

§


Poemas do Dr. Ângelo Monaqueu 
com comentários do Prof. Omar Khouri


A beleza não é tudo.
O dinheiro não é tudo.
A juventude não é tudo.
Nada pode ser tudo,
Mas tudo pode ser algo
Que, para o todo,
o pouco necessário venha a bastar…

.Este poema do Dr. Ângelo Monaqueu foi-me entregue por sua irmã Filomena, em São Paulo, no dia 23 de junho de 2008. Estava dactylographado e sem assignatura, o que me fez, por um instante, duvidar da autoria (sem problemas para o Mestre, pois o erro, se houvesse, seria de Filó - que é a maneira carinhosa como chamamos Filomena Monaqueu - e meu, que divulgo o cometimento monaquéico). Esse jogo logopaico-oximoresco lembra, em tudo, o poeta de Mensagem(FP ortônimo), assim como toda a sua heteronímia. Li o texto mil vezes e não cheguei a ter certeza de haver ou não, ali, algum deslize de ordem lógica. Ezra Pound, um contemporâneo (porém, mais longevo) de Fernando António Nogueira Pessoa, classificá-lo-ia, de facto, como LOGOPÉIA ("a dança do intelecto entre as palavras", um jogo de inteligência no texto poético, um texto minado por armadilhas verbais). O Pessoa assignaria a peça! Dr. Ângelo Monaqueu deve ter parido o poema após muitas leituras do bardo luso. De qualquer modo, um belo poema!

Oswald de Andrade revisitado: nem ready, nem made : heavy & fake : uma incursão di-paródica

Vício-virtude na fala

Para dizerem córrego dizem corgo
Para fígado dizem figo
Para lâmpada dizem lâmpia
Para búrica dizem burca.
Sem deslocar a tônica
Paroxitonizam as esdrúxulas.
Para árvore, dizem arve
E vão destruindo as árvores.

.Este texto, em sua forma manuscrita, foi encontrado em folha solta dentro de uma primeira edição do Pau Brasilde Oswald de Andrade, relíquia conservada por Dr. Ângelo, agora em posse de sua irmã Sâmia, que me permitiu o acesso e autorizou a sua publicação. Embora não fosse um estudioso de falas regionais brasílicas, nosso Mestre era muito atento aos modos do caipira paulista se expressar, notando a sua pouca ou quase-nenhuma plasticidade, dado o fato de falar pouco, ter pouco contato com outras pessoas no dia-a-dia, que passava a trabalhar e, quando tinha a oportunidade de falar era, via de regra, por monossílabos ou sons sem intenção vocabular. Ocasiões festivas eram a exceção, mas aí a coisa já estava configurada e a gama de sons articulados e combinações eram pouco extensas. Certos modos atraíam Dr. Ângelo que, nalguns casos, dizia: “Ainda escrevo um texto utilizando esses modos!” E eram os cometimentos: mió, para melhor; pacença, para paciência; vévi, para vive (e isto ele achava maravilhoso: “Imagine você dizendo: ‘Ela vévi bem, muintchu bem”; ponhei, por pus - lembrava da mãe, Dona Salma, dizendo para a empregada doméstica: “Maria, você já pôs a água para o café?” ao que a serviçal respondia: “Ponhei, sim senhora”. E, dizia Dr. Ângelo: “E olha que isto tem justificativa na arqueologia do idioma – basta fazer uma visitinha ao Latim!”; ponhá, por pôr…). E nos casos das proparoxítonas era isto: o caipira não diz nunca úbere, e sim, ubre; não diz pássaro, mas passo; tampouco estômago, mas istrombo ou istongo; para abóbora, diz abobra. E os diminutivos: “Impagáveis”, dizia e exemplificava: corguinho ou corguim, arvinha, burquinha, bobrinha. Numa das vezes em que comentou sobre esse processo de acomodação (não sei se se pode chamar assim ao referido fenômeno) uma aluna perguntou: “E como dizem médico?” ao que, sem pestanejar, disse o Mestre: “Dizem dotô!” Ainda sobre a falta de plasticidade desse pessoal de baixo repertório lexical e sintático, para quem seria constrangedor ouvir um “Nós estávamos”, admirava a incapacidade de ouvir, mesmo quando ditos alto e bom som, nomes como o de seu tio Sáber e mesmo o meu, Omar: não eram capazes de repeti-los sem distorções. De qualquer modo, todo erro gramaticalmente detectado possuirá uma justificativa quando se estudar mais profundamente o idioma, e certas formas até são encontradas em textos mais antigos, tendo caído em desuso. Veja-se o caso de adispois ou despois! O mais engraçado é o caso do pronome pessoal do caso reto eles. Para eles, eles dizem êisi! Só nos resta aplaudir a “Contribuição milionária de todos os erros”. Agora, entre os nossos escolarizados, há coisas terríveis, como as acomodações/simplificações que permitimos para os de língua inglesa, espanhola, francesa, russa e até para os lusos: gente da matriz – mas não suportamos aqui entre nós… coisas do tipo: cantano, para cantando, pagano, para pagando, veno, para vendo, tamém para também! O que dirá disso tudo o FUTURO? No poema acima, percebemos alusão ao desmatamento que, no Brasil, desde o século XVI, foi-se processando, até chegar àquilo a que assistimos hoje. Aqui, neste poema, destruição, que contrasta com a construção da versão oswaldiana.

Omar Khouri, 2009, ano do passamento da Matriarca, já nonagenária, Dona Salma Bayoud Monaqueu, mãe do Mestre.

PSEsqueci-me do mais interessante (apenas anotado por Dr. Ângelo Monaqueu a lápis, no verso da tal folha): “Para fósforos, dizem fórfi”… e contribuem para compactar o léxico. E mais: “Para álcohol, dizem arco; para pólvora, dizem porva; para bêbado, dizem bebo ou beudo ou bebdo; para fôlego dizem forgo; para cócegas dizem cosca”!!! Inacreditável – direi eu - o réiva, em lugar de raiva! Por ora, paremos por aqui.



A M.S.

Se é que eu morri por ti já me arrependo,
Sequer choraste os meus restos mortais;
Em termos de descaso és cem por cento:
Não vales nem os meus mirrados ais…


.Constava da cópia - autógrafo ou apógrafo? - este "A M. S." o que, para nós amigos, permaneceu um mistério. Quem seria a tal dama que teria desfeiteado o venerando Mestre? Seria, de fato um ser existente ou ficcional? Quem o saberá? De qualquer modo, trata-se de uma peça exemplar do universo da vingança, nem que seja, como esta, só no papel + todo o masoquismo de um preterido manso. Variantes do 2º e 3º versos me fazem crer que seja um texto autógrafo mesmo. Senão, vejamos:

A M.S.

1. Se é que eu morri por ti já me arrependo
2a. Sequer choraste os meus restos mortais
2b. Não reclamaste os meus restos mortais
2c. Não recolheste os meus restos mortais
3. Em termos de descaso és cem por cento
3b. Em termos de descaso és 100%
4. Não vales nem os meus mirrados ais…

Uma quadrinha é uma quadrinha. Embora perfeita, muito redundante enquanto tal, com seus decassílabos e as rimas finais [perfazendo o esquema] abab. Apesar da toante atenuante: arrependo/cem por cento. A leitura do primeiro verso é problemática só à primeira vista; daí, chega-se [mesmo] ao decassílabo seé queeu… etc.


Siderados olhos indiciavam

rútilos (rústicos)
orgasmos múltiplos


.Parece que - isto quem comentou foi Antero Pedreira e Silva - o poema, belíssimo, diga-se, foi feito a pedido de um dos irmãos de Dr. Ângelo Monaqueu, a propósito de uma namorada que - dizia o tal irmão - gozava do privilégio dos orgasmos múltiplos. Aí, não se sabe se ela os tinha mesmo ou se a vaidade do gajo era tão grande que ele não se continha e dizia que o tesão da marafona por ele era tão grande, que ela tinha um gozo seqüencial. Para finalizar a história, ele (o Hermes Monaqueu, irmão do Mestre) rompeu com a moça, ou melhor, ela rompeu com ele. Ele, inconformado por levar um fora de mulher pela primeira vez na vida, transformou a vida dela, temporariamente, num inferno. Chegou a escrever uma carta, a qual assinou com o próprio sangue e não tendo tido retorno, internou-se num hospital, sob o pretexto de uma depressão profunda. Saldo: ela chegou a dizer: 1º que, dos namorados que ela tivera, ele havia sido o único que não tinha batido nela e isto contava em seu (dele) favor; 2º sendo ele o maior pinto que ela conhecera, somando-se a isto sua excelente atuação fodal, ela, pela primeira vez, havia conhecido plenamente a sua condição de mulher-enquanto-ser-sensual (papo antigo das fêmeas para fisgar otários). Depois dele ter transtornado a família foi, enfim, afogar seu ganso em outra lagoa, cuja dona era bela, calma, sensata. [Sempre achei estarrecedor o fato a mim narrado de que grande parte das mulheres não goza. Como é possível, se as mulheres têm um instrumentozinho tão especializado, em meio a um tesão difuso? E têm orgasmos múltiplos – não todas. Quando me lembro de mim, fico mais espantado ainda. Orgasmos não acontecem necessariamente numa relação sexual. Como todos sabem, a masturbação, prática em que o controle do gozo é muito mais eficaz, tem como coroamento o orgasmo: punheta para os meninos, siririca, para as meninas. Não há mal algum em masturbar-se e, para os que de fato apreciam sexo, é uma prática salutar e agradabilíssima, mesmo para aqueles já iniciados em práticas mais complexas – envolvendo duas ou mais pessoas. A primeira vez em que ouvi a palavra punheta (uma das mais vulgares da Língua Portuguesa) tinha seis ou sete anos e aquela seqüência sonora foi disparada por um outro menino, um pouco mais velho, que colocava para cima e para baixo, uma espécie de haste metálica com bandeirola na frente do capô de um automóvel, uma espécie de pé-de-bode e, agilizando os movimentos, insistia na palavra P U N H E T A. Logo depois vim a saber do que se tratava. E eu, que já flagrara meu pintinho infante várias vezes durinho, passei a friccioná-lo e pude experimentar uma sensação que sempre pede outra e outra e outra… Um gozo a seco (mesmo que ou apesar do cuspe). Depois, a espera das primeiras ejaculações, campeonato de punheta, medição de quem espirra mais longe etc. Muito embora com uma grande quilometragem de sexo-a-dois, não dispenso um ocasional sexo-a-um! E, naquele tempo, quando a coisa começava a se tornar mais sofisticada, com o uso de apetrechos, que vão do rolo de papel higiênico até um bobs adequado ao calibre do pau, passando por um certo auto-flagelo, furando com agulhas, pregos e alfinetes o prepúcio, chegava ao paroxismo do orgasmo! Hoje, têm-se os recursos de uma sex shop, que não permite o acesso a crianças e pré-adolescentes! Meninas também fazem uso de recursos – consolos improvisados – que até chegam a representar perigo. Bem, mas o assunto nem era esse, propriamente. O orgasmo da mulher demora mais a chegar. Ela necessita de longas preliminares, que alguns machos egoístas não observam. O não-orgasmo das mulheres, no coito, seria conseqüência da incompetência de seus parceiros? A masturbação feminina satisfaz como a masculina? Assim como se coça a sola do pé ou se fricciona os vãos dos dedos até sangrar, ou se obter, no percurso, uma certa volúpia, será tão difícil, com a fricção do clitóris (vulgo “grelo”) chegar-se a um orgasmo compensador? Há, para as mulheres, gozo chocho, como há para os homens? Assim como os homens, mulheres chegam a gozar dormindo? Acabei fugindo totalmente do assunto tratado no poema acima registrado.]


[…]
e ele ali cabisbaixo
tristeapreensivo
à espera.

na mira:
uma xícara em branco
de uma brancura absoluta
a evocar o vazio
da página mallarméana (em luta)
à espera de algo que a desvirginasse…


.De uma feita, Sophia LaFontaine diz ter ouvido de Dr. Ângelo a seguinte história: Estava o Mestre em Paris. Era maio de 1985 e numa mesa de um certo café, que outrora acolhera celebridades de agora, privava com José Ramos Carpediem e com o diplomata brasileiro lotado na cidade-luz Manuel Gualda Lourenço, finíssima criatura. Os cafés pedidos pelos dois visitantes foram servidos, mas o chá do Manuel, não. E assim se passaram uns quarenta minutos, durante os quais o diplomata olhava com tristeza, de quando em vez, para a tal xícara, que ali ficou a esperar o chá que viria a aquecê-la naquela quase-fria noite de primavera. Ou seja, o garção, um doido estabanado, trouxera o continente mas não o conteúdo. Cansado de esperar e vendo que já estavam - os amigos - no terceiro cigarro depois dos tais cafés, Manuel resolveu pedir a conta, que não chegou sem algum desentendimento e transtorno. Ao ouvir a história, Sophia LaFontaine exclamou: "Uma xícara em branco!", o que motivou o Mestre para escrever o poema, eternizando o ocorrido. O poema: embora truncado, tem engenho, erudição e arte.


Você que tem por pais dois paquidermes,
Que se acham maravilhas desta espécie;
São grandes, fortes, grossos, isso-aquilo:
Não vê que eles não passam de dois vermes?!

.Rubai detrator de lentas feras ferozes… paquidérmicas! A ofensa pra o grande e pra o pequeno: o paquidermezinho a reproduzir a paquidermice dos pais: a kitsch miniatura.

do Canto do Celibatário

Eu nunca fui casais,
mas haverei-de ser
felizes para sempre!


.Em verdade, o poemeto era de minha autoria. Dr. Ângelo, comentando sobre problema que haveria em minha peça, com relação ao ritmo, como que a refez, assumindo para si a autoria. (De facto, operou uma pequeníssima alteração naquilo que me pertencia. Mas, vá lá!). Espécie de pré-epitáfio do solteirão, com sua síndrome de Brás Cubas. É óbvia, aí, a referência a Oswald de Andrade, em sua parodia burlesca do Meus oito anos, de Casimiro de Abreu: “Sem nenhum laranjais”!


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Poema inédito de Reuben da Cunha Rocha

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Série de inéditos: texto do poeta maranhense Reuben da Cunha Rocha (São Luís do Maranhão, 1984).



LOGO ACIMA DO SILÊNCIO DO ÍNDIO Q SE SUICIDA
o enforcado sonha em disparada desta atmosfera pesada p/ outros mistérios + esferas
logo acima
dos abacates suspensos podres 1tupi akira
vara a febre do mosquito galopa aflito p/1lugar longínquo + escapa
às tentativas de assassinato
vista multidimensional do universo
amplo ataque do enxame sobre o exército

dura a pedra dura a pétala dura o bicho cada qual cada vez cada séc.
é o arroto do raio o trovão na imaginação do cego
depósitos de mão
de obra pobre
p/ as impraticáveis
monoculturas currais + covas
chamadas de reservas
o país q em favor do capital opera criminosamente a transferência brutal de indígenas terras
a homens rudes c/ rostos ocultos sem qqr relação c/ elas
gira o sumo no seio da panela morde a língua entre toras de palmito nasce o fogo q nasce do atrito enqto aspiram os seus cachimbos magníficos nova forma de banzo embalada pela nau do desdém LIMITE DE EMBARQ: 1100

papo rente nas vielas tortuosas nas cabeças nas rasantes calçadas talagadas entraves + tragadas ferve o sumo nas veias transtornadas

sem convívio
sobrevoa o continente o vestígio
d1 animal q achava q era gente espíritos nativos represados fantasmas samurais entre os guarani-kaiowás a curva ascendente dos casos de suicídio
tendência > 20x + 
q entre os cidadãos brasileiros doutras classes sociais

ouve o rio
q ñ tem direção + q ñ anda a esmo
1000caminhos
entre a carne + o esqueleto corre o sangue avoado círculo ambíguo pragmático crespo lácteo mel ígneo magnético moro no olho q espelha 1velho espírito íntimo casa rua raiz campo fértil
microrganismo incisivo ligado respirando fundo + pelo mundo respirado 1calângo jubiloso + lânguido ágil réptil respirando fundo + indo à toda pela deslizante dentição da roda fétida
24h x 7
a mente vegetal prepara lenta a réplica
lépido radiante assalto à serra elétrica
p/ além do esgotamento q provém da ganância
suavidade p/ extirpar o veneno da vingança
nas entocas nas ferrugens do progresso
vai prudente
+ ñ se esquece
q a experiência é o +astuto mestre
+ a trilha longa em q caminha a luz dos corpos celestes
+ q só vamos saber o q é suficiente qdo soubermos o q é + q suficiente
na curva da cobra nos cornos do touro no couro
do tigre na pata
do elefante
percepções sutis na sombra de 1sutil caminhante
q desapareceu pq era agricultor + 1guardinha o confiscou = 1vil transeunte
relato q ele ouviu d1 pescador
da planta q depois do sol se pôr o ajudava a ver o mar brilhante
a vaga vaza + vai entre a enchente + a vazante

verdades estão além das certezas violência se vence c/ delicadeza equilibrismo dos pés em convictos barbantes grosseiros o sol calmo centro dentro vagueia atenção plena + inteira na linha descontínua d1 flecha fina q dissipa a espessa púrpura neblina + se dissemina c/ o coração à frente do caminho 1vivente insiste se afina no instante + amanhece
sem pino sem trava
sem tolice

§


§

sobre o autor

Reuben da Cunha Rocha nasceu em São Luís do Maranhão, em 1984. Publicou o ensaio "Ficção-Verdade: fronteira semiótica na montagem narrativa de Valêncio Xavier" e traduziu poetas norte-americanos como Allen Ginsberg, Bill Knott e Richard Brautigan. Lançou há pouco o livro As aventuras de cavaloDada em + realidades q canais de TV (2013). Edita com Tazio Zambi o randomia

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Poema inédito de Edimilson de Almeida Pereira

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Série de inéditos: Edimilson de Almeida Pereira (Juiz de Fora, 1963).





Tríptico

I

Sob a lama, o silêncio.

O canto
prova-se
lâmina.

Quietude sob a lama.

O canto
recusa
a infâmia.


II

No oco –  cavado
por quem?

O podre, breu
da esfera.

No bojo – levado
por quem?

O sangue, letra
zero.


III

Escuro = verde
lagarto.

Verde = escuro
pássaro.

Mundo cifrado.
        Nó.

§


§

sobre o autor


Edimilson de Almeida Pereira nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1963. Estreou com o livro Dormundo (Juiz de Fora: D'Lira, 1985), seguido de Livro de falas (1987), Árvore dos Arturos & outros poemas (1988), Corpo imprevisto & Margem dos nomes (1989), Ô lapassi & outros ritmos de ouvido (1990), Corpo vivido: reunião poética (1991), O homem da orelha furada (1995), Rebojo (1995), Águas de Contendas (1998), A roda do mundo (1996, com Ricardo Aleixo), entre outros. Sua Obra Poética foi reunida nos volumes Zeosório blues (2002), Lugares ares (2003), Casa da palavra (2003) e As coisas arcas (2003). É autor ainda de estudos como Os tambores estão frios: herança cultural e sincretismo religioso no ritual de Candombe (2005). É Mestre em Literatura Portuguesa (UFRJ), Mestre em Ciência da Religião (UFJF), Doutor em Comunicação e Cultura (UFRJ) e professor no Departamento de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Seus textos foram traduzidos e publicados na Inglaterra, Itália, Espanha, França, Portugal, Alemanha e Estados Unidos.

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Poema inédito de Marcelo Ariel

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Série de inéditos: poema de Marcelo Ariel (Santos, 1968).



Meu nome é Nuvem 
(Urchatz Gaza)

Para  Mahumud Darwich, Samih Al Qassim, Tawfik Az-Zayad, Fadwa Tuqan, Salim Jabran, Fawzi ‘ Abdallah, ‘ Issa Al Lubani, Muhammad Al Qissi, Khaled Houssein, Cláudio Daniel, Hayil Assaqilah, Um ‘ Ammar Hammuda Az-Zaghid, Habib Zaydan Chwikri, Rachid Hussein, Hannah Ibrahim e para todas as crianças mortas


I

Esta criança incendiada
em Gaza
 é a mesma  que está brincando
nos trilhos do trem no Brasil
em alguns minutos
 também será assassinada,
não, não são cães
são índios
vagando pela estrada
alguns irão morrer de fome
deitados na calçada
Leonardo Da Vinci
disse para a senhora
que os aldeões
chamavam de ‘ a mais feia ‘
que ela tinha aquilo que um dia
iria ser chamado
 de ‘ o que é maior do que a beleza
por ser único e singular’
enquanto os outros cadáveres
tinham todos o mesmo rosto.
Agora vemos a mãe da criança
por causa do cansaço
parar de chorar

II

Em nossa ausência
floresce
em vão
essa devastadora expansão
que ainda é vida,
destino das coisas
que desconhecem
vossa  presença.

A visão da árvore
em Jerusalém,
memória
de um vôo imóvel
que em teu olhar
se move.
Ausência e memória
que se tocam
como o Sol

Sua é a morte
se erguendo no ar
como luz alada,
colunas finas,
nossos raios
caindo na enseada,
se deitam
no leito
de terra,
que és
muito longe
do rio
que o oceano quer

Tudo conter
sem corpo algum ter.
Eis a sina dos divinos
Que o tempo
sempre cessando
ousava conter
e a vida
sempre cessando
ousava ser
águas que são fogos
olhando

III

Você é a luz
sentada
no banco da praça
transformada em esquecimento
feito de sonhos
com sementes de poemas dentro.
Paisagens que jamais serão escritas,
frases para o vento
que ainda é carne,
para as luzes
que ainda são olhos,
para as Estrelas que se levantam
milímetros por século
para ver o que está em volta,
Estrelas-animais
olhando de baixo para cima,
sentadas como Lázaro,
se apagando rápido demais
como cidades.

Luz acordando pássaros
pousados nos galhos da árvore
que liberta do sono incendiado.

Canto que é alegria desmaterializada
deslizando dentro do tempo
o oceano girando
no escuro cada vez mais espacial
até que num momento
para de girar e depois de completar
uma Galáxia
em volta de todos os sonos,
de tudo e de qualquer coisa,
se  cobre de explosões
e volta a se deitar
no banco da praça
 que será em instantes
absoluta
porque não estará mais lá

IV

Com as chaves no sangue
Eles se levantarão de seus túmulos
Como o mar caminha até as montanhas
em seu corpo de nuvem
e entrarão
novamente em suas casas

Com as chaves dentro
dos ossos
Eles irão acordar
do sono vertical
do tempo passado contido neste tempo
e entrarão
novamente em suas casas

dentro do Sol

V

Um anjo não veio segurar as mãos
do soldado
disse  a pedra
ao se lembrar de Abraão.

Não há mel
dentro do cadáver
das crianças
como naquele Leão
que foi até o fim
um enigma para Sansão
antes que ele
sem olhos em Gaza
com o pensamento
nessa criança
ao aproximar suas mãos
das colunas
por séculos e séculos
que virão
unisse com a força de suas mãos
justiça e vingança
como se fossem
o mar e sua espuma

VI

Ame o que você odeia
cantam as hostes celestes
não podemos ouvir
e seguimos
disseminando
a peste
chamada
Guerra
Asas trituradas em trincheiras
improvisadas
com tijolos, sofás
e restos de ruínas
Não são asas
são corpos de criancinhas,
 de suas cabeças
separadas
o brilho do orvalho
se refaz
e sobe até
um jardim
onde cresce
sem alarde
uma flor
que nenhuma bota de soldado
esmagou
que nenhum raio de explosão
alcançou
‘ Palestina’
diz o poeta
‘Você  é esta flor’

VII

O Arcanjo Gabriel  comenta sobre os corpos dos soldados mortos

Primeiro aparece uma escada
e os corpos entram uns dentro dos outros
O corpo do assassinado dentro do corpo do assassino
como se fossem nuvens,
depois eles se convertem em orvalho
e  aparecem nos seus sonhos
onde não existem
fronteiras, porque não existem países
Teus sonhos são a verdade

VIII

O Anjo Azrael responde ao comentário do Arcanjo Gabriel

Os corpos dos soldados mortos
Eu os cubro com minhas asas
depois o tempo para eles desaparece
os  projéteis brilham
quando os toco com meus dedos
de névoa
o sangue é transformado em luz
o rosto deles descola e eu visto a pele
de todos os mortos
Sou uma escada que sobe pelo oceano
Até que aqueles que
 esquecem seu próprio rosto
cheguem finalnente nos céus
e  contemplem A face
e ao contemplar a face entendem que
Seu nome, seu País e seu corpo
Sempre foram nuvens

§

Marcelo Ariel, Vila Leopoldina, São Paulo, 31 de julho de 2014.
Este poema será publicado como plaquete pela Lumme Editorial.

§

sobre o autor


Marcelo Ariel nasceu em Santos, estado de São Paulo, em 1968. Lançou os livros Tratado dos anjos afogados (2008), O Céu no fundo do mar (2009), Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (2010), A segunda morte de Herberto Helder (2011) e Teatrofantasma ou o doutor imponderável contra o onirismo groove (2012), entre outros. O poeta, performador e dramaturgo vive e trabalha em Cubatão.

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Bertran de Born (1140 - 1215)

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Hoje, um ensaio de Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984) sobre o trovador occitano Bertran de Born (1140 - 1215).



BERTRAN DE BORN E O AMOR À GUERRA

Guilherme Gontijo Flores (UFPR)

Among them was one who delighted to mingle the excitements of war with the lays of love [...] his name was Bertran de Born.
                              (H. C. Barlow)

A proposta deste simpósio “Do amor e da guerra”, precisamente por se fundar num “e”, dicotomiza essa relação, o que nos leva a pensar sobretudo em suas oposições (o amor contra a guerra, ou Pacis Amor deus est(“Amor é o deus da paz”) da poesia elegíaca romana de Propércio, ou o Make love, not war, de John Lennon); ou sua interrelações mais complexas (tais como o amor como causa da guerra, na Ilíada, ou o amor como contraposição ao dever, como na Dido da Eneida). Esses movimentos de oposição ou interrelação são, é claro, a maioria dos casos literários e históricos que podemos encontrar, mas gostaria aqui de me deter numa figura ainda pouco conhecida no Brasil: o poeta provençal Bertran de Born1. Vejamos o que diz dele em comparação com seus contemporênos Dante, em De vulgari eloquentia:
[...] si bene recolimus, illustres viros invenimus vulgariter poetasse, scilicet Bertramum de Bornio arma, Arnaldum Danielem amorem, Gerardum de Bornello rectitudinem; Cynum Pistoriensem amorem, amicum eius rectitudinem(II, 2, 9).

[.. ]se bem me lembro, encontramos homens ilustres que poetaram em vernáculo, tais como: Bertran de Born, as armas; Arnaut Daniel, o amor; Giraut de Bornelh, a retidão; Cino da Pistoia, o amor; e seu amigo, a retidão (tradução minha).

Na fala de Dante, Bertran se destaca pelo interesse pelas armas. É verdade que a sua poesia, como a da maioria dos poetas de seu tempo, tratou em grande parte de temas amorosos, do louvor da mulher amada, da alegria de uma relação ambiguamente fundada no desejo e na não realização carnal desse mesmo desejo. Porém não é esse aspecto que pretendo tratar, e sim um mais radical, em que amor e guerra não se opõem, nem se interrelacionam, mas são uma só coisa, que pretendo chamar aqui de “amor à guerra”. Mas não podemos simplificar essa amor à guerra com um julgamento moral precipitado, como o de C. C. Fauriel:

[...] the old biographer indicates the dominant trait of Bertrand’s character very distinctly; it was an unbridled passion of war. He loved it not only as the occasion for exhibiting proofs of valor, for acquiring power, and for winning glory, but also and even more on account of its hasards, on account of the exaltation of courage and of life which it produced, nay even for the sake of tumult, the disorders, and the evils which are accostumed to follow in its train. Bertrand de Born is the ideal of the undisciplined and adventuresome warrior of the Middle Age, rather than that of the chevalier in the proper sense of the term(1860, p. 483).

Ao encontrar nos versos de Bertran uma “paixão desenfreada pela guerra”, Fauriel parece não compreender como esse comportamento poético ganha seu discurso dentro de uma sociedade em que a cavalaria europeia está sofrendo uma grande reforma; é de dentro dessa reforma que Bertran de Born faz uma poesia radicalmente original – nesse ponto, não podemos contrastar a poesia de Bertran contra a de um cavaleiro, mas com a do cavaleiro, para percebermos onde ele encontra espaço para sua diferença. Não se trata, portanto, de querer tornar sua poesia única, mas, em primeiro lugar, em situá-lo numa mudança cultural drástica que permitiu a renovação tanto do pensamento da cavalaria e da nobreza, quanto a revitalização da poesia no formato musical cortês. Essa guinada está intrinsecamente ligada ao crescimento urbano na região da França.

Although European civilization remained predominantly rural, urban life grew more vital. Cities had existed in the south of France since Roman times and earlier as seats of religious an political authority; now those of Aquitaine in particular received a flow of people from the overcrowded countryside, and cities everywhere in France became points of concentrated economic activity as comerce revived, the exchange of money quickened, and prices rose. [...] The new mobility of this bourgeoning society struck conservative observers as a scandal(Paden, Sankovitch & Stäblein, 1986, p. 2).

Dentro dessa série de alterações, ocorreu também uma maior independência aos senhores, que passaram a construir castelos cada vez mais fortificados, o que lhes permitia desafiar seus inimigos com menos temor, já que um cerco tomaria mais tempo e investimento monetário por parte do invasor. Esse clima de independência e disputa se espalhava por praticamente toda a nobreza; mas não apenas nela.

Warfare had traditionally been one of the nobility’s chief sources of income, along with the possession of land, but these developments tended to make it more costly at the same time as it was becoming more hazardous. Many a knight, like the troubadour Raimbaut d’Aurenga, forced into debt by his increasing expenses and decreasing value of his fixed manorial income, found himself obliged to mortgage or sell his inheritance (ibid. p. 3).

Assim, é fácil compreender como o código da cavalaria mudou nesse período. Com a decadência monetária de alguns grupos e o crescimento do número de mercenários em ação, que muitas vezes pilhavam os bens dos cavaleiros em ataques inesperados, o que vemos surgir é uma classe extremamente voltada para ideais aristocráticos de coragem individual e prodigalidade para com seus dependentes, o que, aliado a uma cultura literária já interessada nas canções de corte, reforçou ainda mais uma certa imprudência bélica. Talvez essa imagem ainda abstrata possa ser melhor compreendida com um exemplo: Ricardo Coração-de-Leão. Filho de Henrique II Plantageneta, ele assumiu o trono da Inglaterra em 1189 e ganhou fama sobretudo por seus talentos na cavalaria e por suas empreitadas bélicas recheadas de histórias sobre sua violência e coragem, mesmo em momentos de grande risco. Entre as guerras intestinas e as longas batalhas da Cruzada, além de dois anos de prisão na Alemanha, ele passou praticamente 10 anos fora da Inglaterra até morrer em 1199. Ao mesmo tempo, sabemos que se tratava de uma figura muito letrada (chegaram-nos dois poemas atribuídos a ele), com domínio do latim, do francês e do provençal; muito embora Ricardo nunca tenha aprendido a língua inglesa, pouco valorizada na época. Essa lógica de política, que mais gastava os bens do patrimônio inglês, do que propriamente se tratava de uma boa administração, era, paradoxalmente, bem vista pelo povo e pelos cortesãos exatamente por se adequar à nova ética da cavalaria; nesse sentido, Ricardo apenas seguia a postura dos seus dois irmãos mais velhos: Henrique, o Jovem e Godofredo II. É nesse contexto entre o reinado de Henrique II Plantageneta e os feitos de Ricardo Coração-de-Leão que Bertran de Born compôs suas canzos. E sua relação com o clima cultural parece bem resumida no texto de Ezra Pound2: “talvez no tempo de D. Bertran até mesmo as guerras provençais podem ter-se assemelhado a um jogo, parecendo trazer em si algum elemento de esporte e acaso” (1976 [1913], p. 118).

Mas antes de partirmos para a tradução do poema, passemos brevemente por sua biografia. Bertran de Born, senhor de Autafort3, nasceu entre 1140 e 1150 (a data mais específica ainda permanece um debate entre os estudiosos), era primogênito de outro Bertran de Born e de Ermengardis, uma família aparentemente estável em sua nobreza e poder local; além do trovador, seus pais tiveram pelo menos outros dois filhos: Constantine e Itier. Ao que tudo indica, ele passou a suceder seu pai na administração das terras a partir de 1178, casou-se com uma certa Raimonda, com quem teve dois filhos (Bretran e Itier). Em 1181 teria escrito seu primeiro sirventes(poema 1) – dentre os textos que chegaram até nós – por encomenda do conde Raimond V de Toulouse, e já nesse poema ele se gaba da fama como poeta bélico e assim o termina (vv. 45-6):

Totz temps vuoill que li aut baro
Sion entre lor irascut

E sempre quero que os barões
Loucos combatam entre si.

Ao comentar o texto, Frank Chambers afirma que tais versos já pertenceriam a um novo subgênero de sirventes, voltado para incitar a guerra, e que Bertran de Born seria o inventor (1985, p. 158). No ano seguinte, o poeta teria feito poemas na corte de Henrique II Plantageneta (poemas 8 e 9) e em seguida já tomaria parte numa revolta contra Ricardo Coração-de-Leão (poemas 3), que acabou com a morte de Henrique o Jovem em 1183 e a subsequente tomada de Autafort por Ricardo (poema 17). É interessante, neste contexto, pensar nas palavras de Ezra Pound, numa carta a Felix Schelling: “De Born writes songs to provoke real war, and they were effective. This is very different from Romantic Macaulay-Tennyson praise of past battles” (1970 [1922], p. 90)4. Desse modo, aqui nós vemos o poeta provocar a guerra e suportar as perdas severas da batalha; ou, como poderíamos prever também pelas palavras de Paden et alii (ibid., p. 33) sobre a arte do trovador: The art of Bertran de Born springs from an obsession with conflict and a drive to master conflict. É no meio do conflito que De Born parecia encontrar seu espaço poético e político.

No entanto, aproveitando-se das brigas internas entre o rei Henrique II e seus filhos, Bertran conseguiu reaver sua propriedade por favores de Henrique II (poema 19), dessa vez sem dividi-lo com o irmão Constantine. Enquanto seu irmão teria passado à mendicância e à prática de saltear vilarejos, ele floresceu como único senhor de Autafort, submisso apenas perante o rei da Inglaterra. Sabemos ainda que, em algum momento ao longo da década de 1180 ele se casou com outra mulher, Philippa, e que seus dois filhos do primeiro casamento foram condecorados cavaleiros. Depois, entre 1196 e 1202 converteu-se a monge cistércio, em Dalon5; o que não o impediu de continuar escrevendo sua poesia satírica (poemas 46 e 47), sem que isso gerasse um conflito com a ordem religiosa. Depois disso, permaneceu num silêncio literário até morrer em 1215.

Vendo essa relação entre o contexto político-literário europeu e as peculiaridades da vida de Bertran de Born, se ainda por cima concordarmos com a opinião de Alfred Jeanroy (“peu de poètes de son temps l’ont egalé no seulement par l’intensité de la passion, mais par les qualités purement formelles”, 1934, vol. 2, p. 199), cabe-nos agora apresentar uma tradução que reforce esse caráter poético-amoroso em direção à guerra. Em geral essa representação dos prazeres da guerra, tal como na poesia amorosa, está em primeiro lugar sempre adiada e, portanto, retratada como um desejo de realização por vir, nunca consumada, sua apresentação é quase sempre a de uma ausência lamentável, ou como uma potencialidade ansiada pelo poeta; de modo que o trovador aparece muitas vezes solitário em relação ao seu desejo. Aqui, a meu ver, parece estar um ponto crucial no seu pensamento: o amor é um modo de descrição da guerra, e vice-versa (a guerra é uma metáfora para o amor); o que faz com que sua poesia transite entre esses espaços aparentemente antagônicos sem maior esforço, como se pode notar nos dois poemas que escolhi para a tradução (6 e 30). Tanto o amor quanto a guerra são vistos como exigências de atividade e virtude, ao mesmo tempo em que são sempre adiados pela não realização típica do trovadorismo. Nesse sentido, o grande guerreiro é necessariamente um grande amante (um ponto bem explícito em 30, “O Amor quer bom cavalgador / que ame as armas e o servir”), capaz de realizar seus atos; e assim não nos espanta de Godofredo Palangenta seja criticado no poema 16 como um amante passivo, pouco viril no seu desejo. Paradoxalmente, essa figura heroica, capaz de amar “as armas e o servir” parece não existir no presente de Bertran, mas está sempre adiado, como a própria guerra, como o próprio amor – o herói não está nos tempos passados, nem no presente, mas no desejo desse eu-lírico, que sofre de amor e paz, o que parece explicar porque Bertran tenha se concentrado tanto no sirventes: era o melhor veículo para expressar essa frustração fora do campo amoroso. É dessa forma que os únicos contemporâneos louvados em seus versos são mortos, como Henrique o Jovem e o próprio Godofredo, que em vida foram criticados pelo trovador tal como Ricardo Coração-de-Leão. Na morte, o cavaleiro pode ser verdadeiramente louvado como herói, porque não sofre mais da passividade da paz e do amor não correspondido típico da literatura cortês.

Já no campo formal, Bertran de Born parece ter inserido alguns aspectos no mínimo curiosos. Segundo Chambers (1985, p. 161), ele teria sido o primeiro trovador a reutilizar a mesma melodia e esquema de rimas (e até as mesmas rimas) de outra cansopré-existente, com o intuito de criar um novo efeito; no entanto há ainda um detalhe importantíssimo nesse processo – o poeta não imitava poetas antepassados, mas seus próprios contemporâneos, provavelmente seus conhecidos, com a possibilidade de aumentar o desafio técnico de se utilizar as mesmas palavras em outro contexto, ou de usar até mais palavras com a mesma rima; o que faz com que o poema não seja simples imitação, mas sim um processo de diálogo crítico com o poema alheio. Um outro aspecto importante para alguns dos poemas e que talvez caracterize uma parte da sua peculiaridade poética é aquilo que Augusto de Campos chamou “a ‘barulhidade’ dos versos”, como se pode perceber no poema Un sirventes cui motz no falh, interiamente escrito com rimas em –alh, -alh, art, -alha, -art, -alha, dando ainda mais força à virulência do ataque satírico do sirventese ressoando em seus versos. Nesse afastamento do típicamente lírico, Bertran busca refúgio no diálogo com a épica medieval e com os romans, com suas referências a gritos de guerra, cavalos desembestados sem cavaleiros, corpos atravessados por lanças, como se pode ver no poema 30, traduzido abaixo. Aqui, talvez, esteja realmente sua maior contribuição para a lírica provençal:

Bertran de Born distinguishes himself through the exertion of his will as the speaker of his poems; unlike the epic and the other medieval forms to which we have compared it, his art is energized by the poet’s forceful presence, mediating between his perception of reality and his heroic ideal. Unlike the epic poet who sings bindly of the glorious past, Betran speaks as a satirist who engages in continuous self-concious scrutiny of the present. Because of the structuring role of the speaker’s voice, which distinguishes his discourse from that of the epic, it was inevitable that Bertran de Born should employ lyric form(Padenm Sankovitch & Stäblein, 1985, p. 41).

E é, portanto esse caráter de “escrutínio autoconsciente” que permeia toda sua obra que o faz deslizar entre os gêneros lírico-amoroso, satírico e épico, sempre tendendo para o lírico por fazer um uso explícito dessa primeira pessoa identificada ao eu do poeta. Talvez esse atravessamento estilístico é que tenha gerado uma leitura tão direta da sua obra com sua vida (além, é claro, do costume geral da época), sem reparar nas releituras genéricas que eram ali operadas pelo próprio processo compositivo de Bertran de Born. O que seria mais interessante notar é como esse deslizamento genérico pode funcionar para criar uma maior vividez nas descrições bélicas por meio de uma “evocação sensual da guerra” (ibid. p. 38) pela descrição imediata da carnificina pelo olhar singularizado de um eu-lírico bélico. Não é à toa, afinal, que, na esteira dessa leitura biográfica dos poema, uma das imagens literárias mais marcantes sobre o poeta apareça no Infernoda Commediade Dante, quando o encontramos no círculo dos semeadores de discórdia, uma das regiões mais baixas de Malebolge. Vejamos o trecho:
Io vidi certo, e ancor par ch’io ’l veggia,
un busto sanza capo andar sì come
andavan li altri de la trista greggia;

e ’l capo tronco tenea per le chiome,
pesol con mano a guisa di lanterna:
e quel mirava noi e dicea: “Oh me!”.

Di sé facea a sé stesso lucerna,
ed eran due in uno e uno in due;
com’ esser può, quei sa che sì governa.

Quando diritto al piè del ponte fue,
levò ’l braccio alto con tutta la testa
per appressarne le parole sue,

che fuoro: “Or vedi la pena molesta,
tu che, spirando, vai veggendo i morti:
vedi s’alcuna è grande come questa.

E perché tu di me novella porti,
sappi ch’i’ son Bertram dal Bornio, quelli
che diedi al re giovane i ma’ conforti.

Io feci il padre e ’l figlio in sé ribelli;
Achitofèl non fé più d’Absalone
e di Davìd coi malvagi punzelli.

Perch’ io parti’ così giunte persone,
partito porto il mio cerebro, lasso!,
dal suo principio ch’è in questo troncone.

Così s’osserva in me lo contrapasso.”
(Inferno, XXVIII, vv. 118-142)

Um corpo andar eu vi, monstro novel,

sem a cabeça que, na mão, a jeito
levava de lanterna, firme e presa
pelo cabelo, a iluminar o leito

da estrada, como fora luz acesa.
Ainda me parece vê-lo e ouvi-lo
a gritar: “Infeliz que sou!” Surpresa

maravilhosa! Dupla vida aquilo
era e alma dupla e só o poderoso
Deus soube assim guardá-lo em dividi-lo.

Quando chegou sob o arco pedregoso,
ergueu o braço e agitou a testa
para que ouvisse o verbo doloroso.

Vê tu, me disse, a minha dor molesta!
Tu que andas vivo pelos mortos vales;
vê e dize se há dor grande como esta!

E porque tu de mim no mundo fales,
sabe que sou Bertram de Bornio, o tal
(e peço-te que disto não te cales)

que entre o pai pôs e o filho ódio mortal.
Ao filho de Davi Achitofel
não inspirou um ódio mais fatal.

Porque pessoas caras eu, revel,
separei, separado está de mim
meu detestável cérebro infiel.

A pena do talião eu pago aqui”
(trad. de João Trentino Ziller)

A imaginação de Dante pode parecer dura para um leitor contemporâneo, mas ela está muito próxima do que podemos ver ao compararmos o trecho da Commediaa uma das biografias provençais a respeito do poeta6.
Bertrans de Born si fo us chastelas de l’eveschat de Peiregorc, senher d’un chastel que avia nom Autafort. Totz temps ac guerra ab totz los sieus yezis : ab lo comte de Peiregorc et ab lo vescomte de Lemotges, et ab so fraire Constanti et ab Richart, tan quan fo corns de Peitau. Bos chavaliers fo e bos guerriers e bos domneiaire e bos trobaire e savis e be parlans e saup tractar mals e bes, et era senher totas vetz quan si volia del rei Henric d’Englaterra et del filh de lui. Mas totz temps volia qu’ilh aguessen guerra ensems, lo paire e·l filhs e·lh fraire, l’us ab l’autre, e totz temps vole quel reis de Franza e·l reis d’Englaterra aguessen guerra i ensems. E s’ilh avian patz ni tregua, ades si penava e·s perchassava ab sos sirventes de desfarja patz et de mostrar com chascus era desonratz en la patz ; e si n'ac de grans bes et de grans mals de so qu’el mesclet mal entre lor. E fetz maintz bos sirventes dels quals son gran re aissi escriut, segon que vos podetz vezer et entendre(apudStimming, 1913, p. 54).


Bertran de Born foi um castelão do bispado de Perigord, senhor de um castelo cujo nome era Autafort. A todo instante estava em guerra com todos os senhores vizinhos, com o conde de Perigord e com o visconde de Limousin e com seu irmão Constantine e com Ricardo [Coração-de-Leão], que então era conde de Poitiers. Foi bom cavaleiro e bom guerreiro e bom sedutor e bom trovador, culto e bom na fala e sabia se portar no mal e no bem; e, sempre que assim o queria, era senhor do rei Henrique II da Inglaterra e de seu filho. Mas a todo instante queria que travassem guerra entre si, o pai contra os filhos e os irmãos, um contra o outro, e a todo instante quis que o rei da França e o rei da Inglaterra travassem guerra entre si. E se acaso obtivessem paz ou trégua, então se exercitava nos seus sirventespara desfazer a paz e mostrar como cada um deles se desonrava com a paz; assim teve grandes bens e grandes males porque mesclava o mal entre os outros. E fez muitos belos sirventes, cuja maior parte está escrita, de modo que vós os podeis ver e escutar (tradução minha).


Para além da biografia, temos também a iconografia que muitas vezes acompanhava as vidas, e logo se percebe como Bertran de Born é praticamente o único trovador representado como cavaleiro, armado sobre o cavalo7:


Nesse ponto, pareço estar retornando ao meu ponto de partida, ao perceber como a visão sobre sua vida estava confundida pela radicalidade da sua poesia. Ora, não cabe a mim, e provavelmente a nenhum de nós, escavar com minúcia detalhes da vida e da subjetividade do sujeito Bertran de Born, mas apenas tentar desvincular um pouco essa suposta sobreposição entre literatura e vida. Vimos, afinal, que tanto os biógrafos quanto Dante e posteriormente, Longfellow e outros estudiosos até o início do século passado, criam piamente nessa figura feroz e viam na sua reclusão um possível arrependimento pelos pecados. A mim, como à maioria dos estudiosos contemporâneos, parece mais interessante perceber como sua poesia se construía dentro daqueles novos modos da cavalaria e da poesia trovadoresca, passando de um ponto contextual e histórico para outro ponto histórico-literário, para conseguirmos entender de que modo essa poesia em grande parte satírica bebia nas formas da poesia amorosa o seu amor à guerra.


É aí que entra o projeto tradutório como ferramenta crítica, na medida mesmo em que é capaz de explicitar modos de leitura pela escolha tradutória. Não apenas a escolha de como traduzir um determinado poeta, mas também do quetraduzir desse determinado poeta, quando não há pretensão de uma tradução completa. Nesse caso, optei por traduzir dois poemas: um poema amoroso que acaba caminhando inevitavelmente para a temática bélica, por comparações ousadas; e outro que se inicia na temática bélica para terminar num símile amoroso. Nos dois casos, podemos notar como Bertran de Born faz seu amor à guerra ao pé da letra, pelo recurso genérico da poesia amorosa de seu tempo, refundado no código de cavalaria exaltado da segunda metade do século XII, num movimento de vai e volta entre o erótico, o satírico e o bélico, ou épico da escrita.

Para a tradução, consultei o impressionante trabalho de Paden, Sankovitch e Stäblein (1986), que consta de uma edição crítica de todos os 47 poemas que nos chegaram (4 outros estão excluídos, por serem vistos como composicões do filho de Bertran de Born), numa distribuição cronológica distribuída entre 1181 e 1198, com suas respectivas apresentações, traduções, comentários e aparato crítico, além de algumas notações musicais e um vocabulário provençal completo. Vez por outra, consultei também as duas edições alemãs de Albert Stimming e suas notas (1879 e 1913) e uma tradução poética para o inglês feita por James H. Donaldson que se encontra na internet. Além disso, conforme o comentário de Chambers (1985), tentei manter o máximo possível o lado virtuosístico, porém conservador, da metrificação de Bertran, numa poesia brasileira sem grandes estranhamentos rítmicos.

Traduções

6

1

Eu m’escondisc, dompna, que mal non mier
de so qe·us ant dich de mi lausengier.
Per merce·us prec. Q’om non puosca mesclar
lo vostre cors fin, leial, vertadier,
humil e franc, cortes e plazentier,
ab mi, dompna, per messongas comtar.

2

Al primier get perd’eu mon esparvier
o·l m’aucion el poing falcon lainier
e porton l’en, q’ieu·l lor veia plumar,
s’ieu non am mais de vos lo cossirier
que de nuill autr’aver mon desirier,
qe·m don s’amor ni·m reteign’al colgar.

3

Autr’escondich vos farai plus sobrier,
e no·m puosc plus adorar d’encombrier:
s’ieu anc failli vas vos, neis del pensar,
qan serem sol dinz cambr’o en vergier
failla·m poders davas mon compaignier
de tal guisa que no·m posc’aiudar.

4

S’ieu per jogar m’asset pres del taulier
ja no·i puosca baratar un denier,
ni ab taula presa non puosca intrar;
anz get ades lo reirazar derrier,
s’ieu autra dompna mais deman n’enquier
mas vos cui am e desir e teing car.

5

Seigner si’eu de castel parsonier 
et en la tor siam catre parier
e ja l’us l’autre non poscam amar,
anz m’aion ops totz temps arbalestrier,
metg’e e sirven e gaitas e portier,
s’ieu anc aic cor d’autra dompna amar.

6

Escut a col cavalc eu ab tempier
e port sailat capairon traversier
e ceignas breus q’om non posc’alongar
ez estreups loncs en caval bas trotier,
ez a l’ostal trob irat l’ostalier
s’ieu agui cor d’autra dompna pregar.

7

Ma dompna·m lais per autre cavallier
e pois non sai a que m’aia mestier;
e failla·m vens qan serai sobre mar,
en cort de rei mi batan li portier
et en cocha fassa·l fugir primier
si no·us menti cel qe·us anet comtar.

8

Dompna, s’ieu ai mon austor anedier
bel e mudat, ben prenden e mainier,
qe tot auzel puosca apoderar,
sign’e grua et aigron blanc e nier –
volria lo mal mudat, gaillinier,
gras, desbaten, qe non puosca volar?

9

Fals enveios fementit lausengier,
pois ab midonz m’avetz mes destorbier
be·us lausera qe·m laissasetz estar.

68

1

Perdão, senhora, por não merecer
mentiras de um bajulador qualquer.
Mercê te peço, p’ra ninguém causar
rixa entre o teu sincero, vero ser,
cortês, humilde e franco (um só prazer),
e o meu, senhora, só de caluniar.

2

Pois que o meu gavião quero perder,
ou que um falcão-borni o vá morder
para depois de morto o depenar,
se um dia eu já deixei de te querer
mais do que quis qualquer outra mulher
que me dê seu amor ao se deitar.

3

Outro perdão te peço, que é mister,
e não posso implorar por mais sofrer:
se contigo falhei, mesmo ao pensar,
quando um quarto ou jardim a nós couber,
que o meu poder me falte, sem sequer
que a companheira possa me ajudar.

4

Se à mesa eu for jogar ou me entreter,
não me emprestem vintém, nem um talher,
nem possa em mesa presa eu penetrar9;
mas que no dado eu venha a me abater,
se alguma outra dama me aprouver
como tu, que me fazes desejar.

5

Que o meu castelo se divida até
ter quatro donos com seu belveder,
sem que um sequer consiga ao outro amar,
num cerco de besteiros quanto houver,
doutores, mercenários, o que vier;
se eu tive coração para outra amar.

6

Co’escudo no pescoço hei de viver
na tempestade, co’elmo onde estiver,
e cinto firme, sem poder soltar,
no trote do corcel mais pangaré;
nem queira o albergueiro me acolher,
se ousei ter coração de outra flertar.

7

Que a minha amada de outro queira ser,
e que a mim reste um longo carecer;
que ventos eu não veja sobre o mar,
e na corte me cerquem pra bater;
seja eu na rixa o primeiro a correr,
se não mentiu quem veio te falar.

8

Senhora, e se um açor eu bem tiver,
belo e mudado, treinado em prender,
que a toda ave pode conquistar
(o cisne, o grou e a garça) em seu mester,
quero que cace frangos, para quê?
Se, gordo e velho, não puder voar?

9

Falso bajulador de um malmequer,
se quer entre os amantes se envolver:
mais nos bajula, se nos deixa estar.

§

30

1

Be·m plai lo gais temps de pascor,
que fai fuoillas e flors venir;
e plai me qand auch la baudor
dels auzels que fant retintir
lo chant per lo boscatge; 5
e plai me qand vei per los pratz
tendas e pavaillons fermatz;
et ai grand alegratge,
qand vei per campaignas rengatz
cavalliers e cavals armatz.

2

E plaz me qan li corredor
fant las gens e l’aver fugir ;
e plaz me qand vei apres lor
granren d’armatz corren venir ;
e plaz m’e mon coratge,
qand vei fortz chastels assetgatz
e·ls barris rotz et esfondratz
e vei l’ost el ribatge
q’es tot entorn claus de fossatz,
ab lissas de fortz pals serratz.

3

Et atressi·m platz de seignor
qand es primiers a l’envazir,
en caval, armatz, ses temor,
c’aissi fai los sieus enardir
ab valen vassalatge.
E pois que l’estorns es mesclatz,
chascus deu esser acesmatz
e segre·l d’agradatge,
que nuills hom non es ren prezatz
tro q’a mains colps pres e donatz.

4

Massas e brans, elms de color,
escutz traucar e desgarnir
veirem a l’intrar de l’estor
e maing vassal essems ferir,
don anaran aratge 35
cavaill dels mortz e dels nafratz.
E qand er en l’estor intratz,
chascus hom de paratge
non pens mas d’asclar caps e bratz,
que mais val mortz qe vius sobratz.

5

E·us dic qe tant no m’a sabor
manjar ni beure ni dormir
cum a qand auch cridar: “A lor!”
d’ambas las partz, et auch bruir
cavals voitz per l’ombratge,
et auch cridar: “Aidatz! Aidatz!”
e vei cazer per los fossatz
paucs e grans per l’erbatge,
e vei los mortz que pels costatz
ant los troncons ab los cendatz.

6

Amors vol drut cavalgador,
bon d’armas e larc de servir,
gen parlan e gran donador
e tal qi sapcha far e dir
fors e dinz son estatge 55
segon lo poder qi l’es datz.
E sia d’avinen solatz,
cortes e d’agradatge.
E domna c’ab aital drut jaz
es monda de totz sos pechatz. 

7

Pros comtessa, per la meillor
c’anc se mires ni mais se mir
vos ten hom, e per la genssor
dona del mon, segon q’auch dir.
Biatritz d’aut lignatge,
bona dompn’en ditz et en fatz,
fonz lai on sorz tota bontatz,
bella ses maestratge,
vostre rics pretz es tant poiatz
qe sobre totz es enanssatz.

8

Donzella d’aut linhage,
tal en cui es tota beutatz,
am fort, e sui per leis amatz;
e dona·m tal corage
qe ja no pens esser sobratz
per un dels plus outracujatz.

9

Baron, metetz en gatge
castels e vilas e ciutatz
enans c’usqecs no·us gerreiatz!

10

Papiol, d’agradatge
ad Oc e No t’en vai viatz;
digas qe trop estan en patz.

:

30

1

Eu quero a primavera, o ardor
que folhas traz e faz florir;
e quero escutar o estentor
das aves, quando retinir
seu canto na ramagem;
e quero ver ainda mais
no prado as tendas colossais;
e acho uma bela imagem,
se vejo armados entre iguais
os cavaleiros e os metais.

2

Adoro quando o explorador
atiça o povo p’ra fugir,
e adoro ver em tal clamor
os homens d’arma a perseguir,
e adoro ter miragem 
do forte em cercos marciais,
ou das muralhas terminais,
e as hostes noutra margem
que passam a fossa voraz
e uma paliçada por trás. 

3

Também adoro se o senhor
for o primeiro a invadir
montado, armado, sem temor,
que assim nos outros faz surgir
valente vassalagem. 
Se a batalha se refaz,
prepare-se cada rapaz
para a longa viagem:
ninguém é louvado jamais –
somente entre golpes mortais. 

4

Maças, gládios, elmos de cor
e escudos logo a se partir
veremos, e até o sol se por
vassalos iremos ferir,
fugirão sem fardagem, 
co’o dono morto, os animais.
E na batalha, o homem vivaz
só pense na carnagem
e em degolar todos os mais,
pois antes morto que incapaz. 

5

Ah, para mim não há sabor
em comer, beber, ou dormir,
igual ao de ouvir o clamor
de duas linhas e o zunir
dos corcéis na pilhagem
e homens gritando “Atrás! Atrás!”
e vê-los na fossa voraz,
junto ao rés da relvagem,
e ver as flâmulas fatais
varando o arnês que se desfaz. 

6

O Amor quer bom cavalgador
que ame as armas e o servir,
gentil na fala, grão doador,
que saiba o que dizer e agir,
em qualquer estalagem, 
pelo poder de que é capaz.
Um companheiro como apraz,
cortês em sua linguagem.
A dama que acaso o compraz
não tem pecados cardeais. 

7

Ó grã condessa, és a melhor
(todos estão a repetir),
e tua nobreza é a maior
do mundo, pelo que eu ouvi.
Beatriz de alta linhagem10
senhora no que diz e faz
ó fonte do bem mais primaz,
belíssima ancoragem:
o teu valor é tão veraz,
que sobre todas sobressais.

8

Virgem de alta linhagem
e da beleza mais tenaz,
amado eu amo forte e audaz:
ela me dá coragem –
não temo a perda que me traz 
nem mesmo o pulha mais mendaz.

9

Barões, é mais vantagem
hipotecar vossos currais
do que se a guerra renegais.

10

Papiol, eis a viagem, 
ao Senhor Sim-e-Não irás
dizer que muito estão em paz11.

§

REFERÊNCIAS

ALIGHIERI, Dante. “”De vulgari eloquentia”. In: Obras completas, contendo o texto original italiano e a tradução em prosa portuguêsa. 10 vols. São Paulo: Editora das Américas, 1958. Vol. X, pp. 221-67.
______________. Divina comédia. Com desenhos de Sandro Botticelli. Tradução e notas de João Trentino Ziller, apresentação de João Adolfo Hansen. São Paulo/Campinas: Ateliê/Unicamp, 2011.
BARLOW, H. C. The young King and Bertrand de Born.London: Trübner & Co., 1862.
BERTRAN DE BORN. The poems of the troubadour Bertran de Born. Ed. by William D. Paden Jr., Tilde Sankovitch & Patricia H. Stäblein. Los Angeles: University of California Press, 1986.
BERTRAN VON BORN. Herausgegeben von Albert Stimming. 2te. Auflage. Halle: Max Niemeyer, 1913.
CAMPOS, Augusto de. Verso, reverso, controverso.São Paulo: Perspectiva, 1978.(Coleção Signos, 6).
CHAMBERS, Frank M. An introduction to old Provençal versification. Philadelphia: American Philosophical Society, 1985.
DONALDSON, James H. Poems of Bertrans de Born. A virtual book by Brindin Press. http://brindin.com/vb40cove.htm, consultado em 30.11.2012.
FAURIEL, C. C. History of the Provençal poetry.Translated from the French by G. J. Adler.
JEANROY, Alfred. La poésie lyrique des troubadours. 2 vols. Toulouse: Privat/Didier, 1934.
LONGFELLOW, Henry Wadsworth. Poets and poetry of Europe. 2. ed. Philadelphia: Porter and Coates, 1871.
POUND, Ezra. Lustra. Introdução, tradução e notas de Dirceu Villa. São Paulo: Demônio Negro, 2011.
____________. Poems & translations. Selected and annotated by Richard Sieburth. New York: The Library of America, 2003.
____________. Poesia. Traduções de Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, J. L. Grünewald e Mário Faustino. Brasília: Hucitec/UnB, 1993.
____________. “Trovadores – Tipos e Condições”In: A arte da poesia: ensaios escolhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José Paul Paes. São Paulo: Cultrix, 1976 [1913]. pp. 103-118.
____________. “From a letter to Felix E. Schelling, 8-9 July 1922”. In: Sullivan, J. P. (ed.) Ezra Pound. New York: Penguin, 1970 [1922]. pp. 90-92.
RAYNOUARD, François Just-Marie. Lexique roman ou dictionnaire de la langue des troubadours. 6 vols. Paris: Silvestre, 1844.
SAINT-PELAIE, Mr. De. The literary history of the troubadours. Collected and abridged from the French by the Author of the Life of Petrach. London: T. Cadell, 1779.
SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1972.
STIMMING, Albert. Bertran von Born, sein Leben und seine Werke, mit Anmerkungen und Glossar. Halle: Max Niemeyer, 1879.
STRONSKI, Stanislaw. La légende amoureuse de Bertran de Born. Paris: Édouard Champion, 1914.

§

Notas do autor

1 Os dois livros mais divulgados e que representam quase todo o corpus de estudos sobre sua poesia são: A lírica trovadoresca, de Segismundo Spina (1972), que apresenta apenas um poema sirventês de temática amorosa (pp. 174-8); e Verso, reverso conrtoverso, de Augusto de Campos (1978, mas também presente na antologia ao fim da tradução brasileira do ABC da literatura, de Ezra Pound), com 13 páginas dedicadas a um estudo e tradução de outro sirventês, agora de tema bélico, do poeta (“Bertran, Poeta de Briga”, pp. 67-79).
2 Importante destacar como a poesia de Bertran de Born ressoou nos versos de juventude de Ezra Pound, em poemas como “Sestina: Altaforte”, “Na Audiart”, “Dompna Pois de Me No’us Cal” e “Near Perigord”, que podem ser encontrados em tradução de Ezra Pound (1993 e 2011), e em “Planh for the Young English King”, que, pelo que pude me informar, ainda não foi traduzido para o português.
3 Há discussão sobre a posse de Autafort: por um lado há evidências de que a região teria pertencido à família Lastours até a primeira Cruzada, quando foi passada ao irmão de Bertran, Constantine, e depois ao trovador. No entanto, essa informação contradiz outra, que antedata a passagem posse da região da família Latours para o avô do poeta, Itiers de Born, de modo que Bertran dividiria as posses herdadas com seu irmão. Neste caso, teríamos a confirmação do próprio poeta (poemas 17 e 19). Há ainda a possibilidade menos confiável de a terra ter provindo dos Rasas.
4 A fala de Pound, por mais cativante que seja, pode estar exagerando a força dos poemas de Bertran na eclosão das guerras familiares entre Henrique o Jovem e seu pai Henrique II, de modo que hoje muitos não creem que sua poesia tenha sido tão efetiva assim. A questão aberta é bem expressa por Chambers: Whether or not he was really to meddle sufficiently in the affairs of Henry II and his sons to justify this punishment [i.e. estar no Inferno de Dante condenado por incitar guerra entre pai e filho] (and many now doubt it), Bertran does on numerous occasions manifest a craving for combat and violence, and his bellicose sirventes stand out in sharp contrast to the great mass of troubadour verse (1985, p. 157).
5 A conversão pode estar ligada ao seu passado religioso cheio de doações às abadias da região, sobretudo às ordens cistércias, conforme o aparente costume de sua família (poema 45); entretanto desconhecemos a especificidade do acontecimento e não temos mais notícias sobre o que teria acontecido com sua segunda esposa.
6 Não caio, obviamente, na ingenuidade de acreditar nas biografias (como parece, ter caído, dentre vários, De Saint-Palaie (1779) e Longfellow, em seu Poets and poetry of Europe, 1871, p. 433), geralmente escritas com base nos próprios poemas e, portanto, exageradas, fantasiosas e facilmente criticáveis. Um bom exemplo sobre as críticas feitas à biografia de Bertran de Born é o trabalho de Stanislaw Stronski, La légende amoureuse de Bretran de Born (1914).
7 Outras imagens podem ser consultadas no site http://www.filmod.unina.it/cdg/miniature.htm.
8 Um dos motivos que me fez escolher este poema para a tradução é o fato de que seja o único escondich (poema de desculpas) da poesia provençal que chegou até nós.
9 No caso, seria um jogo similar ao gamão, e o poeta não poderia entrar na mesa, porque todas as peças do adversários já estariam “presas”, tomadas.
10 A Beatriz em questão não foi identificada pelos estudiosos, mas a associação com beata e portanto com o sentido literal do nome (“abençoadora”), tal como aparecerá na Beatriz de Dante, não é de todo descartável.
11 Bertran de Born é o único trovador a se dirigir a um jogral com o nome de Papiol, e também o único a se referir a Ricardo Coração-de-Leão pelo senhal de “Senhor Sim-e-Não”

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Theresa Hak Kyung Cha (1951 — 1982)

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Theresa Hak Kyung Cha foi uma artista e escritora sul-coreana, nascida em Busão, Coreia do Sul, a 4 de março de 1951, durante a Guerra da Coreia. Sua família emigrou para a Califórnia em 1962, onde Cha estudou Literatura Comparada na Universidade da Califórnia em Berkeley, mais tarde estudando Cinema e teoria em Paris. Fixou-se nos Estados Unidos como cineasta e performer nos anos 70, criando uma série de trabalhos interdisciplinares com vídeo e texto. Em seu vídeo "Mouth to mouth" (1975), por exemplo, trabalha com o signo gráfico das vogais coreanas e sua relação com o som. Estes trabalhos, como os de Letícia Parente (1930 - 1991) no Brasil ou outros videastas internacionais, são verdadeiros estímulos para os poetas contemporâneos trabalhando na fronteira entre os gêneros.

Theresa Hak Kyung Cha, "Mouth to mouth" (still, 1975)

Seu trabalho mais conhecido é o livro Dictee (1982), no qual quebra as barreiras entre gêneros literários, valendo-se de poesia, prosa documental, biografia e autobiografia, diálogos e imagens entrecortando as páginas.



O texto, bastante agônico e pontuado por questionamentos e diálogos com o deus cristão, pode encontrar uma acolhida familiar entre leitores brasileiros de Hilda Hilst (1930 - 2004), que também trabalhava com esta mescla de textualidades em seus livros "de prosa". Ao mesmo tempo, sua reverência pelo signo nos lembra o contorno místico do trabalho de Mira Schendel (1919 - 1988). Numa das páginas de Dictee, encontramos alguns dos questionamentos de Theresa Hak Kyung Cha em corporalidade e textualidade:


Uma das mais importantes artistas do final dos anos 70 e início dos 80, com um trabalho pioneiro em arte e textualidade conceitual, Theresa Hak Kyung Cha foi estuprada e assassinada no dia 5 de novembro de 1982, há 32 anos. Havia se casado há pouco tempo e acabado de lançar o livro Dictee. Uma perda irreparável, pela própria violência que ela combateu. Uma retrospectiva sua no Brasil se faz urgente. Abaixo, algumas imagens do obra/acervo da artista.

--- Ricardo Domeneck

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TRABALHOS DE THERESA HAK KYUNG CHA



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Diego Moraes

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Diego Moraesé um escritor brasileiro, nascido em Manaus, Amazonas, a 23 de agosto de 1982. É autor do livro de contos A fotografia do meu antigo amor dançando tango (2012) e da coletânea de poemas A solidão é um deus bêbado dando ré num trator (2013), ambos lançados pela Editora Bartlebee.

Os dois primeiros poemas abaixo são inéditos, seguidos de alguns textos selecionados de seu último livro. Encerro a postagem com um conto de A fotografia do meu antigo amor dançando tango (2012). Diego Moraes vive e trabalha em Manaus.

--- Ricardo Domeneck

§

POEMAS DE DIEGO MORAES

Inéditos


Repare bem
O amor é paranormal
Quando ela cuspiu na sua cara e disse que tudo havia acabado
Os talheres entortaram e a prataria do seu avô enferrujou
Agora vai lá na cozinha e chora escutando Dolores Duran
        [no radinho de pilha.

§

Mergulhar
Nesta
Pororoquinha
Que
Você
Teima
Chamar
De
Antologia
De
Suas
Melhores
Recaídas.
Secar
Tuas
Camisetas
De
Bandinhas
Death Metal
No
Ventilador Arno
 “Bota no volume máximo!”
Você
Grita
Enquanto
Walt Whitman
Descansa
De
Bruços
Num
Gramado
Dentro
Dos
Sonhos
De
Roberto Piva.

§

De  A solidão é um deus bêbado dando ré num trator (2013)



Você disse que sonhos é como fazer musculação
Você disse que Vou à Bahia leva crase
Você disse que queria adotar um cachorrinho e fazer Teatro
         [de Rua em São Paulo
Você disse que Roberto Piva era o poeta mais lindo do mundo
Você disse tantas coisas bacanas quando eu tava fudido
Você disse que eu sairia dessa e levou livros e cigarros quando
         [eu tava internado naquela clinica para drogados
Você foi minha garota e foi foda ver seu sorriso de mãos dadas
         [com outro cara
Sempre fico sem jeito com o meu passado
Nessas horas eu queria ser invisível ou ter asas.

§

Bússolas quebradas
Cartas anônimas nunca me disseram nada
Isso não é literatura. É só minha dívida no Bradesco.

§

Você não deveria estar aqui
Seu namorado tá lá fora fumando Lucky Strike e ouvindo
      [uma canção do Jeff Buckley no rádio de um cadilac
      [que nunca foi dele
Você não deveria estar aqui
O que tínhamos pra conversar virou aquele roxo que a
      [madrugada perdoa
O que tínhamos pra conversar virou aquelas bolinhas de
      [luz que vão ficando para trás quando o taxista passa
      [a quarta marcha e olha pelo retrovisor
Você não deveria estar aqui
Daqui nove meses uma criança nasce com meu nome
Daqui nove anos vai lembrar que eu poderia ter sido
      [o melhor para sua vida
Daqui vinte anos vai lembrar que seu garoto parece comigo
      [e seria lindo sair num final de semana para pescar ou
      [visitar os amigos
Você não deveria estar aqui
Fecha a porta e me esquece
Deixa-me adubar o tédio.

§

O amor anda de ônibus.

§

Talvez eu seja o único cara andando a pé do centro a nova
      [cidade
Recolhendo restos de coisas do século passado e transformando
      [em livros
Chorando, ouvindo aquela canção do Neil Young da boca de
      [um mendigo.

§

Rejuvenescer
Tornar-se loirinho fazendo caretas na fazenda
Tacando pedras
Correndo atrás dos bichos com apelidos dados na inocência da
       [infância
Amadurecer lentamente como fruta fora da fruteira
Iludir-se
Inventar amores distantes só pra dedicar ternuras pela internet
Poesia: enfeite para o fundo do mar.

§

Ela havia me falado do tio que escrevia poemas e morreu
     [atropelado em Mairiporã
Da linha invisível que protege a cidade de incêndios
De como era bom tingir os cabelos e sentir a brisa poderosa
     [de domingo
Quando o amor aparece
Não adianta buscar uma sombra
É sol sem guarda-chuva.

§

Não fiz geografia na UFRG
Nem sei o que significa la niña, mas quando você não está
        [colada ao meu casaco, sempre faz 9 graus abaixo de zero.

§

Charles Bronson não pedia desculpas.

§

Conto do livro A fotografia do meu antigo amor dançando tango (2012)

O cara abandona a carreira literária pra virar satanás 

- Quando raspo a cabeça fico apocalíptico. Dá até umas trovoadas.
- Olhos azuis de zumbi. Ela perdeu uns dentes. Engordou. Não curte mais jazz e vive de boca torta.
- Ainda bem que ela deu o fora senão eu ia enforcá-la. Goteira na fotografia do meu antigo amor dançando tango. O vizinho tossindo. Uma pazada nas costas espalhando girassóis.
- Ela me fudeu em Sampa. Entrou numas de que eu era veado e confundiu minhas hemorróidas com flor de pederastia e me abanou pro frio de 6 graus.
- São Paulo. São Paulo. Vou poupar 39 folhas de um possível conto só pra dizer que São Paulo é apenas um Freezer do tamanho de Saturno. Valeu?
- Daí eu lancei um livro de contos que ninguém leu.
- Se eu fosse tu parava com essa onda de literatura. Acho que foi essa porra que fudeu teu baço.
- Escrever demais dá pedra nos rins. Entramos num pub repleto de Roqueiros fedorentos e poetas de pau mole. Uma vadia cantava Legião e acabei vomitando dentro de um aquário.
- Não tô legal, Fred. – Eu disse vendo estrelas.
- Odeio quando tu confundes as bolas e cheira como anta. – disse Álvaro.
- Não é cocaína. É a vida, meu Brother.
- O que achaste do “A.S.A – Associação dos solitários anônimos”?
- Phoda. Rosário Fusco é Phoda. Grande livro.
- E o Romance?
- Mandei pra umas editoras. E depois já era. Vou parar de sangrar. Palavras bóiam por um tempo e depois afundam como navios furados.
- O cara abandona a carreira literária pra virar satanás. – Álvaro tragou fundo e depois riu salteando dentes podres.
- Literatura é uma puta muito escrota. Se você demonstra afeto demais ela acaba te fudendo.
O céu medíocre estava mais azul que o habitual. Antes de dobrarmos a Avenida Getúlio Vargas um pássaro caiu morto nos nossos pés.

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Manoel de Barros (1916 - 2014) - por Marcus Fabiano Gonçalves

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O poeta gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves (n. 1973) escreve sobre Manoel de Barros (Cuiabá, 1916 - Campo Grande, 2014), no dia da morte do poeta.


Vareios do dizer: o idioleto manoelês archaico

por Marcus Fabiano Gonçalves

Manoel de Barros é poeta sofisticado e complexo, dono de uma obra que, bem lida, mostra-se muito distante do rótulo intuitivista de  “Jeca Tatu do Pantanal” que lhe tentaram impingir. E é só por ser sofisticado e complexo que ele consegue alcançar um grau tão elevado de limpeza e simplicidade em seus versos, coisa não raras vezes confundida com a singeleza do vulgarmente fácil.

A despeito do sucesso que o tornaria nacionalmente conhecido somente após os 60 anos, ele próprio recusava as classificações redutoras que restringiam a universalidade de sua dicção: “eu não sou poeta ecológico, nem sou poeta do Pantanal”, dizia sem disfarçar seu incômodo com o rebaixamento folclórico. Leitor precoce de Antônio Vieira, Flaubert, Paul Valéry, Rimbaud e Wittgenstein, frequentador da Bienal de São Paulo e de museus em Nova York, admirador declarado de Monet e de Picasso, Manoel de Barros erigiu uma obra de fatura nitidamente cosmopolita. Entretanto, certa crítica literária rapidamente cuidou de apagar esse traço em prol de uma assimilação de sua voz a um topos naïf e regionalista, razoavelmente compreensível pelas dificuldades em se lidar com diversos elementos muito singulares de sua poética. Enumero aqui rapidamente alguns que penso merecer destaque: (1) o primitivismo rupestre e a peculiaridade gerativa da aquisição das competências linguísticas pela gramática infantil (Chomsky); (2) a deliberada injeção de sentidos antropomórficos na natureza, sobretudo em paisagens e biomas nos quais a força da água e da vegetação estimula uma melancolia diante do apequenamento da obra humana prestes a ser engolida pelo ambiente (a tapera devorada pelo mato e pelas cheias); (3) o silêncio e o isolamento no deserto social formado pela rarefação demográfica do mundo rural brasileiro da primeira metade do século XX: o ermo como lugar de decomposição e abandono (o cisco, o lixo, a lata enferrujada e a conversa com as coisas e os bichos); (4) o caráter extraordinariamente lúdico da fala dos loucos do campo, cuja pureza infantil alcança, inclusive, a comunicação com os pássaros (o bocó Bernardo, que é quase árvore); (5) a instigante paleta de metáforas, metonímias e analogias que os seus recursos de zoomorfização acionam (suas celebérrimas referências à lesma, à rã, ao cágado e aos pronomes do tuiuiú [tu/you/you], entre muitas outras); (6) um acordo sempre tenso e muitíssimo negociado entre os registros da tradição erudita, as falas indígenas e as gambiarras de ouro do povo-inventalínguas (noto uma interessante frequência de gauchismos no seu léxico, seguramente oriundos da migração sul-rio-grandense para o Mato Grosso, que remonta ao século XVIII); (7) uma perspectiva finamente irônica e analítica em relação às estruturas predicativas e sintáticas do idioma, a sua incessante busca daquele efeito de “desencontro da palavra com a idéia” (o “alicate cremoso” e a censura ao pragmatismo promovida por seus “inutensílios”). 

Em um labirinto de espelhos zooantropomórficos, a perplexidade instaurada por esse desencontro entre a palavra e a ideia é conquistada graças a uma mui cautelosa (des)articulação entre termos e coisas. No livrinho de poemas que publiquei em 2005,  deixei no prefácio a seguinte pista sobre isso que talvez seja o grande estratagema da poesia manoelina: “nessa época tão cheia de amores pela ciência, nem seria de todo estranho se alguma teoria neurológica procurasse explicar a poesia de Manoel de Barros segundo os impulsos de uma machine à émouvoir regulada pelas incongruências que provocam o pico N400 em nosso cérebro.”. 

Explicação: domínio da ciência com o qual estão comprometidas tanto a crítica literária como a linguística. Explicação: ato que procura tornar inteligível o efeito estético de um poema, um procedimento regularmente fracassado diante de obras extraordinárias. A poesia de Manoel de Barros segue à espera de mais leitores e de novas abordagens que se ponham à altura dessa sua instigante originalidade, forjada por um amálgama raro entre linguagem, espaço e emoção. Mas como hoje o dia é de saudades e homenagens, eis a minha, bastante singela, escrita há dez anos. 


MANUAL DO BARRO
Marcus Fabiano Gonçalves

para desfrutar da chã dizência de seus versos

convém escutar o gorjeio de indigência que fazem seus verbos 

e para apreender-lhes o sentido do estado nenhum

(ou a inação de seu sujeito algum)
é indispensável recorrer à intimologia da árvore: 
conhecer o radical que é a raiz de um rio no cair da tarde 

e logo depois espiar o cântico dos cântaros

sobre as telhas de uma tapera desmoronada:

um musgo devorando a mesma argila na qual se lêem 
avessos de Wittgenstein na dureza fosca do barro
assado em coivara

adâmica argila constelar

cuja lida vem desensinada no ancestral 
Manual do Barro Cozido:

uma língua artesanal
 encardindo 
a natureza
 do limo de seu sentido 

na gramática desse barro calado 
coisas cruas e impossíveis são servidas 
com elegância quase desoriental:
um bugrezen meditando
 
poucuras de muinadas

pela infância do Pantanal 

depois dele
 
qualquer nada arrisca um de novo

(até mesmo o conto de um começo)

pois se Eva nasce néscia – moldada do mesmo berro 
é porque se evanesce da costela de Adão
eis que no capítulo I do Manual
ainda pode ser lido em primeira mão:

no começo era o verbo

e nem o nada não era assim. 

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Celina Kalluk

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Celina Kalluké uma poeta vocal inuíte, nascida no território de Nunavute, no Canadá, em Qausuittuq (que significa "lugar sem aurora", em sua línga materna, o Inuktitut).  Em inglês, o local é conhecido como Resolute Bay (Baía resoluta).

 

Traz para seu repertório poemas vocais inuítes, unindo-os ao tradicional canto gutural de seu povo. Sua prima, Tanya Tagaq, sobre quem já falamos aqui, é outra famosa poeta vocal inuíte, que se tornou mundialmente conhecida após colaborar com Björk.

Celina Kalluk vive e trabalha em Iqaluit, capital de Nunavute.



Poema inédito de Érico Nogueira

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Hoje, na Modo, poema inédito de Érico Nogueira, extraído de seu terceiro livro, Poesia bovina (São Paulo: É, 2014), que será lançado em São Paulo no próximo 22 de novembro.




Charcutaria

             a Eugênio Benedito Nogueira

Cansei de escutar papo-aranha, ui ui,
versalhada frouxa de euzinhozinho,
calado e sem retrucar; de engolir
um cuzinho azedo, o teor do sovaco,
boceta espoleta e afins no café- 5
-com-leite; de ver que cujo, que coiso, que
curupira dita a dança, pisando no
meu pé e no teu: faz dodói?; vou falar
a verdade: carne pra encher linguiça
não falta, o difícil é o tempero, e o quanto 10
de cada e por que – o segredo, a arte
da charcutaria; a maturação; e
se o prato é chumbo, freguês, vai com calma.
“Onde chumbo?; amigo, é tudo linguiça,
cartucho que, em vez de pólvora, impacta 15
com porco empastado”. E alguma pimenta.
“Ê, migué; pois bom bom mesmo só fica
se a porca espana”. O senhor me desculpe,
mas... “Entulha, homem, é calor no talo”.
E é arte isso aqui, tudo bem?; fazer 20
arder é só parte da coisa. “Olha:
se cê saca um certo matinho, um lance,
não tô nem tchum, não importa, contanto
que a saliva estale, exploda a papila e
demore na boca um raio solar”. 25
Não sei se o embutido aqui pode tanto,
meu querido – ainda assim, se quiser
exp’rimentar o melhor desta casa,
é por nossa conta, é iguaria justa e
bem-feita, talvez, e não fica mal 30
na velha bandeja de um bom poeminha.

Sem meter na tripa a biscate esperta
chupando tudo do mole vovô
seu esposo; argh! pastor bastião
do macho costume a abrir outro rego 35
na Rego; a sensibilíssima páti,
defensora-mor de bagre e macaco e
galinha, três abortinhos nas costas
– sem meter edil, auditor, Brasília,
a fossa da Terra de Santa Cruz 40
(que extensa linguiça não dava): quem,
do da Prata ao alto Amazonas, sabe
triar o torto e o direito, e aproveita
quando chove e quando não, e não vive es-
-molando o do seu vizinho?; mendigo ou 45
nababo, ninguém envelhece contente
se não tem ideia assim do que quer,
e pasta, anfíbolo feito um centauro;
se não morde, “É ouro-de-tolo”, “É ouro”,
e clama ao tinhoso maneta “A mão, por 50
favor”; se não sente o que cargas d’água
e pra quem pedir, afinal, ao léu
do beleléu. “Vida longa: é só isso
o que peço, só, mais nada além disso”.
Mas quanto acidente vai te cruzar 55
o carro na longa estrada, bobinha
– um maracujá chupado no rosto,
escama em vez dessa pele de seda
e mais banha e pelo que a orangotanga ou a
gorila inda é pouco. Este moço é mais 60
bonito que aquele, um terceiro, mais
talentoso que ambos os dois: mas todo
velhote é em tudo igualzinho, avoado
e banguela e, caso não existisse
a miraculosa pílula azul 65
(quando ela dá conta), antes te dava
ũa lesão de esforço repetitivo,
mulher, que cê conseguia fazer
papagaio voar. E não só: aquela
canção do teu Schubert, o tal retrato 70
demais parecido contigo – lembra, o do
Ticiano? – é coisa que orelha velha
não ouve, e olho decrépito não en-
-xerga mais. Pior, porém, que esses males
do corpo é ser pego pelo alemão, 75
e não conhecer marido nem filhos,
ou, no caso dele, fiar a custódia
dos bens a alguma piranha qualquer,
e babar bonito na gola. Enfim,
a quanto velório a vovó não vai, 80
trocando o arco-íris no seu armário
pela noite escura?; com alguma sorte,
o do seu cacho e cunhados e irmãs,
quando não da filha e alguma sobrinha.
– E aqueles rabiscos do último Pablo, 85
e os versos de merda, Carlos, e agora?,
que vocês, ã, cometeram gagás?;
“Era Manhã de Setembro”, eu te ponho
algo acima, ah ponho, do Claro Enigma
todinho, por conta do teu valor pro- 90
-filático: “Não imitar”. Se vida
alongada, pois, é uma longa lista
de soco e chute na cara, e dinheiro
e poder e nome, tão desejáveis
aqui, lá no além são sombra, o que posso
querer, o que dura, então, quando em mim,
e depois no coração, na cabeça
de alguns?; na igreja, no quarto, ao ar livre,
vou pedir primeiro coragem na hora
da morte, e no trato com a gente má, 100
paciência; em seguida, jamais perder
a estribeira em poço sem fundo, e sempre
achar a cruz melhor paga que a prata;
e engolir num gole o fel que nos dão,
e, depois de arrotar, soltar um risinho; 105
em suma: viver como homem, não rato,
e, se algum latim ainda funciona,
mens sana in corpore sano – isso é tudo;
o que acaba com esta linguiçazinha
e fecha a cozinha, meu nego; tchau.

§ 

Leia outros textos de
Érico Nogueira

§

sobre o autor 

Érico Nogueira nasceu em Bragança Paulista, em 1979. Formado em Filosofia e doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, com a tese "Verdade, contenda e poesia nos Idílios de Teócrito, que inclui a tradução em verso de todos os idílios hexamétricos autênticos do autor grego. É professor de língua e literatura latinas na Universidade Federal de São Paulo. Publicou O Livro de Scardanelli (2008), Dois (2010) e Poesia bovina (2014).

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Inge Müller (1925 - 1966)

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Inge Müller, nascida Inge Meyer em Berlim a 13 de março de 1925, foi uma prosadora, dramaturga e poeta alemã. Passou a assinar Müller ao casar-se com o prosador, dramaturgo e poeta alemão Heiner Müller, quatro anos mais jovem. 

Seus pais morreram nos bombardeios dos aliados sobre Berlim, e ela própria ajudaria a retirar os corpos deles dos escombros da casa. Logo em seguida, em outro bombardeio, ela mesma passaria um tempo soterrada, junto de seu cão, nos escombros do seu prédio, até serem resgatados. As experiências da guerra deixariam traumas profundos na autora.

Ao buscar água caiu sobre mim uma casa
Em nossas costas a casa foi carregada
Nos ombros meus e do cachorro 
Não me perguntem como
Isso para mim é passado

Perguntem como ao cachorro


Foi casada, logo depois da guerra, com Kurt Lohse, com quem teve um filho logo antes de separar-se e casar-se com Herbert Schwenkner. Em 1953, conhece o jovem Heiner Müller, então com 24 anos. Ela, com 28. O jovem Heiner passa a viver com ela e seu marido, numa relação a três. Em 1955, casa-se com Heiner Müller.

As tentativas de suicídio continuam, e a relação com Müller, com quem colaborou em suas primeiras peças, é difícil. Apesar de um prêmio conjunto em 1959 por seu trabalho colaborativo, Inge Müller sente-se à sombra do marido, que colhe as glórias como autor, ela, como assistente. Após um caso intempestivo com o irmão de Heiner, Wolfgang Müller, a relação entre os dois torna-se irremediavelmente partida. A 1 de junho de 1966, suicida-se Inge Müller com uma overdose de tranquilizantes. Heiner encontraria seu corpo na cozinha da casa.

A relação entre Heiner e Inge Müller é uma das relações amorosas e literárias mais trágicas da Literatura alemã, tendo sido já comparada à de Sylvia Plath e Ted Hughes. Após a morte de Inge, Heiner passa a assinar sozinho as obras em que colaboraram. Além disso, uma suicida não caía bem à História literária de um país socialista, e seu nome caiu no esquecimento por muito tempo, apesar dos esforços de poetas mais jovens que a admiravam na Alemanha Oriental, como Bernd Jentzsch e Richard Pietraß. O problema, no entanto, era também poético: sua poesia lírica tampouco caía bem a um país socialista.

As peças em que Inge e Heiner colaboraram foram Der Lohndrücker (1956), Die Umsiedlerin (1956), Die Korrektur (1957), Klettwitzer Bericht (1958) e Unterwegs (1963). Portanto, antes das peças que o tornariam famoso, como Mauser(1970), Germania Tod in Berlin(1971), Die Hamletmaschine(1977),  ou Der Auftrag (1979).

Em vida, Inge Müller publicou apenas os livros infantis Wölfchen Ungestüm (1955) e Zehn Jungen und ein Fischerdorf (1958), além de uma peça radiofônica. Deixou inacabado o romance Ich Jona (Eu, Jonas). O que escreveu com mais intensidade foi sua poesia.




Sua obra foi reunida finalmente no volume Daß ich nicht ersticke am Leisesein: Gesammelte Texte ("Que eu não me sufoque de ficar quieta: Textos reunidos", Aufbau Verlag, 2002). Agora temos acesso a sua poesia delicada e ao mesmo tempo sufocante, e ela não está mais quieta.

--- Ricardo Domeneck

§

POEMAS DE INGE MÜLLER
Traduções de Ricardo Domeneck

Sob escombros III

Ao buscar água caiu sobre mim uma casa
Em nossas costas a casa foi carregada
Nos ombros meus e do cachorro 
Não me perguntem como
Isso para mim é passado
Perguntem como ao cachorro

:

Unterm Schutt III

Als ich Wasser holte fiel ein Haus auf mich
Wir haben das Haus getragen
Der vergessene Hund und ich
Fragt mich nicht wie
Ich erinnere mich nicht
Fragt den Hund wie.

§

A ti, querido, mais querida
Seria eu se fechasse a boca
Onde não há bocas
Nem fechaduras
Dos velhos fazes inimigos
E és mais velho que eles ainda
Te escondes nas tuas rugas.
Que sabes tu
E como saberias?

:

Dir Lieber wär ich lieber
Wenn ich den Mund halten würde
Wo kein Mund ist
Und kein Halten
Den Alten tust du feind
Und bist älter noch als sie
Versteckst dich in den Falten.
Was weißt du
Und wie?

§

Lua lua nova tua segadeira
Ceifa-nos tempo qual relva
E nós nos erguemos no céu
Em fina areia de ampulheta.
Segue seu caminho a estrela
Nós buscamos nossa vereda
Quando ela própria se deita
Passe então por cima dela.


(N.T.: Por questões sonoras, mudei os verbos nos últimos dois versos da primeira para a terceira pessoa.)

:

Mond Neumond deine Sichel
Mäht unsre Zeit wie Gras
Wir stehn aufrecht im Himmel
Auf dünnem Stundenglas.
Der Stern geht seine Wege
Wir suchen unsern Weg
Wenn ich mich niederlege
Geh über mich hinweg.


§

Quem ajuda a mim
Ajudo eu a quem?
Assim e de novo assim.
Eu nós
A vida
Nossos rostos
Solo fezes sol

:

Wer hilft mir
Wem helf ich?
So und immer wieder so.
Ich wir
Das Leben
Unser Gesicht
Erde Kot Licht


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Poemas inéditos de Felipe Nepomuceno, de seu livro "Blume" (2014), a ser lançado nesta terça-feira

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Amanhã, terça-feira, 18 de novembro de 2014, será lançado no Rio de Janeiro o novo livro do poeta, prosador, artista visual e cineasta Felipe Nepomuceno (São Paulo, 1975). Sua última obra publicada havia sido a reunião de todo o seu trabalho poético e em prosa no volume Mapoteca (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2009), pela coleção Ás de Colete. O novo livro intitula-se Blume, e sai pela carioca 7Letras.



O lançamento é na Livraria da Travessa de Botafogo (Rua Voluntários da Pátria, 97), às 19h. Apresentamos abaixo uma seleção de poemas do livro, com vídeos do autor, preparados para o volume.

--- Marília Garcia & Ricardo Domeneck

§

POEMAS DE FELIPE NEPOMUCENO

SETEMBRO

Diz: vai embora, busca 
o amor concreto, 
você sabe onde ele está: 
tem nome, rosto, 
caminha cinco horas, 
tenta voltar ao mundo, 
pensa no seu destino 
como uma coisa: 
uma água, um vestido,
um princípio, um alívio.

§

A FITA VERDE

Solta o presente, 
amarra o escuro, 

com a firmeza 
de que a vida é 

um infinito 
nunca saber tudo.

§



ESTE VENENO

Aceita qualquer 
dúvida, procura 
aquela coragem, 

este veneno: 

todo amor urgente 
é um amor eterno.

§

A HORTA

A linha de soluços, 
a volta na árvore, 
a linha, desesperos, 
a volta, a horta: 

os joelhos, os joelhos.

§

O COPO DE LEITE

Muito longe 
da praia 
da tartaruga, 
daquela 

estrela cadente, 

o copo de leite 
não fala: sente. 

§

O JOGO DE CRICKET

Tem 42 leis, 
partida 
sem resultado, 
uma fé 
incondicional 
no mundo.

§

A MERDA

É não conhecer Deus, 
é você sentir que está 
forte, porém vazio, 
é não ser entendido. 

Deus, onde você está? 

Me tira deste livro: 

com seu corpo, 
seus problemas, 
suas ausências: 

sou Felipe Thiago, 
quero ser ninguém, 

mas desejo que 
você esteja comigo, 
sim, de verdade: 

daqui a pouquinho.

§




DESVENTURA

Não volta 
atrás. 

Quantos 
medos 

desfazem 
uma pergunta? 

§

CANTIGA

Vem 
EVA, 
vem 
dizer 
no 
meu 
ouvido: 

tudo 
que 
está 
vivo.

§


§

sobre o autor


Felipe Nepomuceno nasceu em São Paulo, em 1975. É poeta, prosador, fotógrafo e artista plástico, tendo estudado na New York School of Visual Arts. Publicou os livros O Marciano (1997), Calamares (1999), Fotonovelas (2000) e O Aquário (2001), mais tarde reunidos em no volume Mapoteca (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2009), pela coleção Ás de Colete. Felipe Nepomuceno vive e trabalha no Rio de Janeiro.

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Sara Panamby

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Sara Panambyé uma performer e pesquisadora de práticas de corpo limite, nascida em São Paulo. Formada em Performance pelo curso de Comunicação e Artes do Corpo (PUC-SP), é também Mestra em Artes pela UERJ e doutoranda pela mesma instituição.





Como Michelle Mattiuzzi, de quem já falamos aqui, tem um trabalho fortíssimo baseado no corpo. Você pode ler aqui, de Sara Panamby, o ensaio "Corpolimite: estados insistentes de desterritorialização das matérias". Sara Panamby vive e trabalha no Rio de Janeiro.



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Poema inédito de William Zeytounlian

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Hoje, poema inédito de William Zeytounlian (São Paulo, 1988).



noite fora
de medida

de censura,
vida ou corte:

testa o dia
sua sorte

na cesura
de uma vida

*
não basta

*

página de
acético ph

quebradiço
o papel como
um biscoito

as
promessas
nunca tardam
nunca tardam
em falhar.

*
não basta

*

banal
holocausto

do século
infausto:

por um
celular

a substância
vacila

entre as
facas
de cozinha.

*
não basta

*

noite fora
de medida

de censura,
vida ou corte:

testa o dia
sua sorte

na cesura
de uma vida

§


§

sobre o autor


William Zeytounliané um poeta e tradutor brasileiro, nascido em São Paulo em 1988. Formado em História, o autor desenvolve hoje um trabalho de pesquisa sobre a História do século XVII, uma "História dos comportamentos silenciosos", a partir de tratados e máximas morais da época de Luís XIV. Traduziu, entre outros, Samuel Beckett, Jorge Luis Borges, André Pieyre de MandiarguesLeonard Cohen e Gerard Manley Hopkins. Escreve no blogue I beg your pardon. Além disso, faz parte da equipe brasileira de esgrima.


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Poema inédito de Raquel Nobre Guerra

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Hoje, poema inédito da portuguesa Raquel Nobre Guerra (n. 1979).



Se sorrio aos mortos e enterro os vivos
como um objecto escuro por que
rodaram mãos e jeitos de luz? Sim.

Vivo como se não estivesse aqui
roupa leve como acontece na vida.
E vou da primeira à última batida
na respiração de um pulmão vivido.

Lê assim.

Podia arder a uma pouca distância de ti
nessa praceta que é um poema teu
— e as coisas voltariam a mim, meras,
como o ser transportada pelos dias —
mas cairei por aqui.

Meu amor.

Porta no trinco e nada nas mãos.
Há muito que é tudo o que resta.


§


§

sobre a autora


Raquel Nobre Guerraé uma poeta portuguesa, nascida em 1979. Formou-se em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa e tem mestrado em Estética e Filosofia da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publicou Groto Sato (Mariposa Azul, 2012). O livro recebeu em Portugal o Prêmio PEN para obras de estreia. Faz Doutoramento em Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras. Vive e trabalha em Lisboa.

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Poema inédito de Luca Argel

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Série de inéditos, com poema de Luca Argel (Rio de Janeiro, 1988).




PERDI 7 AMIGOS EM 5 DIAS PERGUNTE-ME COMO

porque convenceste-me que este universo
é só um grande (ou quem sabe só um pequeno)
mal-entendido; porque fizeste da sua cruz
um espantalho e da minha própria suavidade
uma arma que não perdoa; porque foste
o pêssego só num prato de frutas de cera; e
porque nunca ouviste falar dos hanson nem
do sabonete do snoopy; e depois porque partiste
feliz da vida sem perceber que apenas uma das
sete cabeças da besta está ferida de morte.


§


§

sobre o autor

Luca Argel nasceu no Rio de Janeiro, em 1988. Produz poesia sonora, visual e textual. Lançou  esqueci de fixar o grafite (2012) e O livro de reclamações (2014). Vive e trabalha no Porto, em Portugal.

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Fragmento de um texto inédito de Ricardo Aleixo

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Sou o que quer que você pense que um negro é. Você quase nunca pensa a respeito dos negros. Serei para sempre o que você quiser que um negro seja. Sou o seu negro. Nunca serei apenas o seu negro. Sou o meu negro antes de ser seu. Seu negro. Um negro é sempre o negro de alguém. Ou não é um negro, e sim um homem. Apenas um homem. Quando se diz que um homem é um negro o que se quer dizer é que ele é mais negro do que propriamente homem. Mas posso, ainda assim, ser um negro para você. Ser como você imagina que os negros são. Posso despejar sobre sua brancura a negrura que define um negro aos olhos de quem não é negro. O negro é uma invenção do branco. Supondo-se que aos brancos coube o papel de inventar tudo o que existe de bom no mundo, e que sou bom, eu fui inventado pelos brancos. Que me temem mais que aos outros brancos. Que temem e ao mesmo tempo desejam o meu corpo proibido. Que me escalpelariam pelo amor sem futuro que nutrem à minha negrura. Eu não nasci negro. Não sou negro todos os momentos do dia. Sou negro apenas quando querem que eu seja negro. Nos momentos em que não sou só negro sou alguém tão sem rumo quanto o mais sem rumo dos brancos. Eu não sou apenas o que você pensa que eu sou.


§


§

sobre o autor


Ricardo Aleixo nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1960. Publicou, entre outros: Festim (1992), Trívio (2001), Máquina Zero (2004) e Modelos vivos (2010).

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Morre o poeta Bernard Heidsieck (1928 - 2014)

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É com grande pesar e tristeza que informamos a nossos leitores que morreu ontem na França o grande Bernard Heidsieck. Nascido em Paris em 1928, foi um dos poetas europeus mais importantes do pós-guerra. Estreou com Sitôt dit (1955), ao qual seguiram-se obras incontornáveis e imprescindíveis da poesia sonora e textualidade experimental nas próximas décadas, como Canal Street (1986), Le carrefour de la chaussée d'Antin (2001) ou o maravilhoso Derviche / Le Robert (1988), do qual mostramos abaixo a seção K. Não há muitas palavras agora, apenas muita tristeza por outra grande perda este ano.




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Ederval Fernandes vocaliza e comenta poemas de Eurico Alves e Manuel Bandeira

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Retornamos ao projeto Empreste sua voz a um poema mortoEderval Fernandes (Feira de Santana, 1985) lê os poemas "Elegia para Manuel Bandeira", de Eurico Alves (1909 - 1974), e a resposta de Manuel Bandeira (1886 - 1968), "Escusa", e tece também um comentário sobre o diálogo dos dois autores.




Sobre ser da roça e sobre ser da cidade

por Ederval Fernandes


Ao que tudo indica, Eurico Alves escreveu “Elegia para Manuel Bandeira” no calor da leitura do recém lançado Libertinagem, de 1930.  Passados alguns anos do período heroico do movimento modernista, na década de trinta Bandeira já se estabelecera como um dos pilares da poesia moderna brasileira, e gozava de alguma admiração e influência entre os poetas mais novos. O poema chegou às mãos do autor de “Evocação do Recife” por intermédio de outro poeta baiano, Carvalho Filho, também membro do grupo modernista (assim como o feirense Eurico Alves) que se unira em torno da revista Arco & Flexa. Estimulado por “Elegia”, Bandeira compôs “Escusa”, um poema breve, melancólico e irônico, no qual declina o convite do poeta feirense por julgar-se “um homem da cidade”:

Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.

O que mais me chama a atenção nesse diálogo poético é a maneira como a ironia (ou a sua ausência) estabelece uma grande diferença entre os tons dos poemas, e como essa diferença está intrinsecamente ligada ao fato dos poetas viverem em ambientes opostos: a roça e a cidade.

Se no poema de Eurico Alves a voz é francamente de celebração (“elegia” está no título, certo?), uma voz em tom maior, sem nenhuma modulação irônica, a voz de “Escusa” (a começar por este título lacônico em oposição ao título do poema-convite) é irônica, melancólica, e sussurra suas lamentações em tom menor.

Enquanto Eurico escreve na “Elegia” 

Perdi completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem

num ato de exteriorização da sua força, e principalmente num ato de comunhão com o seu torrão natal (Feira de Santana – que é o meu também), Bandeira, um homem da cidade, reage de modo inverso: ele precisa interiorizar a dinâmica urbana, e isso o faz ambíguo, irônico, melancólico. Os verbos “virar” (no sentido de transformar) e “aprender” dos versos abaixo não são nada gratuitos. Eles indicam essa “reconfiguração” forçosa que o homem precisa ter para viver na cidade.

(...) Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar o gás [carbônicos das salas de cinema.

Se vivo estivesse, Eurico Alves estaria aturdido com o rápido processo de urbanização de Feira de Santana. Certamente seus versos teriam, agora, uma boa quantidade de melancolia e ironia, assim como os versos de Manuel Bandeira. Aquela Feira rural é, hoje, apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!


Feira de Santana, Bahia - novembro de 2014

§

Elegia para Manuel Bandeira
Eurico Alves

Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta ...
Serra de São José das ltapororocas,
afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificada no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens
tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.
Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.
Manuel Bandeira, a subida da serra é um plágio da vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro
Bebo leite aromático do candeal em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.
Aqui come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.
Que poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.
Feira de Santana! Alegria!
Alegria nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina das vaquejadas, que levam para a vida
e arrastam também para a morte!
Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!
Que lindo poema cor de mel esta alvorada!
A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.
Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana
e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados
         [das noites eternas
venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e como o tabaréu até se parece com Nosso Senhor.

§

Escusa
Manuel Bandeira

Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito.
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant'Ana.
Sou poeta da cidade. Meus pulmões viraram máquinas inumanas
       [e aprenderam a respirar o gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata. Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores
      [das madrugadas.
Eurico Alves, poeta baiano, Não sou mais digno de respirar o ar puro
      [dos currais da roça.


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Fabiana Faleiros - "Eu durmo comigo" - sobre poema de Angélica Freitas

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Fabiana Faleiros vocalizando o poema
"eu durmo comigo", 
de Angélica Freitas.

eu durmo comigo
Angélica Freitas

eu durmo comigo/ deitada de bruços eu durmo comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão longa em que não durma comigo/ como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo comigo às vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir ao lado

§

De Fabiana Faleiros, você pode ler poemas 



Fabiana Faleiros nasceu em 1980 na cidade de Pelotas, RS, como Angélica Freitas (n. 1973). Atualmente, Faleiros vive em São Paulo, onde cursou mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. É escritora, artista visual e performer, apresentando-se como Lady Incentivo. Em 2007 publicou seu primeiro livro, com poemas feitos para fotografias do banco de imagens publicitárias gettyimages. Desde 2010 desenvolve a Coleção Autobiografia, com os livros Tudo o que escrevi durante um mês e Casa/Trabalho (publicações independentes). No mesmo ano publicou o livro Como se escreve uma imagem?, resultado de uma oficina ministrada na 29 Bienal de São Paulo. Em suas performances, realizadas em espaços urbanos, galerias de arte e festas, costuma criar improvisações com bases eletrônicas a partir de situações sociais específicas. Dentre suas exposições recentes destaca-se a performance My Wall Fell no Festival Camp/Anti-Camp: A Queer Guide To Everyday Life, realizada em 2012 no Teatro HAU-2, Berlim, junto com o artista Rafael RG. Veja outros vídeos seus no Youtube.

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