A Modo de Usar & Co. apresenta hoje a tradução do fragmento inicial do "Yawa shõka", canto do Povo Marubo. É uma honra poder apresentar aqui este canto dos Marubo, e agradecemos a Pedro Cesarino por permitir a publicação de sua tradução, assim como agradecemos imensamente a Antonio Brasil Marubo, que o cantou.
Yawa shõka– canto para atrair porcos do mato
(fragmento inicial)
Cantado por Antonio Brasil Marubo
Traduzido por Pedro Cesarino
Shoo shoo shoo
1. São mesmo as primeiras
Wano, as mulheres da terra
Na relva da terra
Shoma sentada está
5. Shoma, de poder-calma
A Shoma ali sentada
Caldo de tabaco-calma
Do caldo bebe
A Shoma ali sentada
10. Caldo de tabaco-calma
Seu poderoso vento-calma
Shoma vento sopra
Vivem mesmo ali
Bem ao lado
15. Do pé de tucum-japó
No terreiro do tucum-japó
Há tempos vivem
Muitos porcos-japó
Que aqui não vêm
20. Por ali ficarem
Shoma, com poder-calma
Para porcos-japó
Caminho para passar
Cauda de cobra-japó
25. Shoma mesmo ajeita
Para cá não vêm
Ali mesmo ficam
Muitos porcos-japó
Shoma, de poder-calma
30. Traga para cá!
Ramas de batatas
Se alastram espiraladas
Dali do terreiro
Do terreiro de tucum-japó
35. Nos arbustos da terra
Venham se embrenhar!
Pela trilha da terra
Fileira de formigas
A fileira vem passando
40. Pela corrente do rio
Fileira de formigas
A fileira vem passando
Venham para cá!
Falantes pássarosda terra
45. Vêm e vêm cantando
A trilha seguindo
Venham para cá!
Nosso caminho listrado
O caminho encontrando
50. Venham para cá!
Tronco de tucum-japó
Qual espinhento tronco
Falantes pássaros da terra
Cantando e cantando vêm
55. Pelo rio piscoso
Barulhentos passam
Testículos de macaco-choque
Há tempos ali jogados
Eles vêm devorar
60. Nosso caminho riscado
O caminho encontrando
Nossos cães magros
Venham logo morder!
Nossas bananas todas
65. Venham logo comer!
Shoma, de poder-calma
Traz porcos para cá
Qual sinuoso cipó
Pelos caminhos vêm
70. Venham para cá!
Brotos de batata doce
Venham mesmo comer!
Nossos grãos de milho
Venham logo encontrar!
75. As batatas doces
Venham mesmo comer!
Nosso caminho riscado
O caminho encontrem!
(tradução de Pedro Cesarino)
:
Shoo shoo shoo
Avi ato pariki
Mai wano shavovoã
Mai shosho karẽsho
Seteai shomara
Shoma rawe isĩyai
Seteai shomara
Rawe rome eneki
Ene yaniawai
Seteai shomara
Rawe rome ene
Rawe rome weyai
Seteai shomara
Anorivi shokoai
Rovo pani yora
Vototanáirino
Rovo pani wenene
Shokoivotira
Rovo yawa ewãvo
Neri veso oanimai
Shokota mã ikitõ
Shoma rawe isĩni
Rovo yawa ewãvo
Anõ iti vaira
Rovo rono ĩpara
Rakã koĩ akeshos
Neri veso oanimai
Shoko mã aivã
Rovo yawa ewãvo
Shoma rawe isĩni
Neri vesõ akewẽ
Wakã kari ichira
Po tavi karãi
Rovo pani wenera
Wene enepakei
Mai tama vakevo
Checha tavipakewẽ!
Mai reõ tanai
Vona chichi ewãvo
Vona tika vairao
Avá waka tanai
Vona chichi ewãvo
Vona tika vairao
Neri atxikarãwẽ!
Mai shõtxa vananõ
Vana iko ikoi
Mai reõ tanai
Neri tekiakewẽ!
Nokẽ seke vairao
Vai txiwávarãi
Neri tekipakewẽ!
Rovo pani tapãra
Raká tavipakei
Mai shõtxa vananõ
Vana iko ikoi
Waka neoyaparao
Kova apavarãi
Senã iso ovo
Potaini otivo
Yaniapa werai
Nokẽ seke vairao
Vai txiwávarãi
Nokẽ masho txorao
Yani apavarãwẽ!
Charãewa vimi
Yani chinãvarawẽ!
Shoma rawe isĩni
Neri vesõ akemãi
Ako rãti ichira
Po tavi karãi
Neri atxi karãwẽ!
Shona kari taerao
Yani chinãvarawẽ!
Shona sheki verora
Yani txiwávarãwẽ!
Shona kari aoa
Yani chinãvarãwẽ!
Nokẽseke vairao
Vai txiwávarãwẽ!
Avi ato pariki
Mai wano shavovoã
Mai shosho karẽsho
Seteai shomara
Shoma rawe isĩyai
Seteai shomara
Rawe rome eneki
Ene yaniawai
Seteai shomara
Rawe rome ene
Rawe rome weyai
Seteai shomara
Anorivi shokoai
Rovo pani yora
Vototanáirino
Rovo pani wenene
Shokoivotira
Rovo yawa ewãvo
Neri veso oanimai
Shokota mã ikitõ
Shoma rawe isĩni
Rovo yawa ewãvo
Anõ iti vaira
Rovo rono ĩpara
Rakã koĩ akeshos
Neri veso oanimai
Shoko mã aivã
Rovo yawa ewãvo
Shoma rawe isĩni
Neri vesõ akewẽ
Wakã kari ichira
Po tavi karãi
Rovo pani wenera
Wene enepakei
Mai tama vakevo
Checha tavipakewẽ!
Mai reõ tanai
Vona chichi ewãvo
Vona tika vairao
Avá waka tanai
Vona chichi ewãvo
Vona tika vairao
Neri atxikarãwẽ!
Mai shõtxa vananõ
Vana iko ikoi
Mai reõ tanai
Neri tekiakewẽ!
Nokẽ seke vairao
Vai txiwávarãi
Neri tekipakewẽ!
Rovo pani tapãra
Raká tavipakei
Mai shõtxa vananõ
Vana iko ikoi
Waka neoyaparao
Kova apavarãi
Senã iso ovo
Potaini otivo
Yaniapa werai
Nokẽ seke vairao
Vai txiwávarãi
Nokẽ masho txorao
Yani apavarãwẽ!
Charãewa vimi
Yani chinãvarawẽ!
Shoma rawe isĩni
Neri vesõ akemãi
Ako rãti ichira
Po tavi karãi
Neri atxi karãwẽ!
Shona kari taerao
Yani chinãvarawẽ!
Shona sheki verora
Yani txiwávarãwẽ!
Shona kari aoa
Yani chinãvarãwẽ!
Nokẽseke vairao
Vai txiwávarãwẽ!
§
Nota sobre a tradução:
Yawa Shõkaé um canto propiciatório de caça, realizado pelo pajé rezador (kẽchĩtxo) Antonio Brasil a fim de atrair os porcos queixada (yawa) para perto de sua aldeia. Ele pertence a uma das diversas modalidades das artes verbais dos Marubo (falantes de língua da família pano, do Vale do Javari): a dos cantos agentivos (shõti), utilizados para cumprir fins específicos tais como os relacionados à cura e à feitiçaria. Trata-se do emprego da estética verbal para a realização de tarefas, e não exatamente para uma fruição desinteressada – algo comum nesta e noutras poéticas ameríndias. No caso dos shõki, essa estética se expressa por meio de características específicas que tentam ser transportadas para a tradução, tais como o uso do imperativo, das imagens metafóricas, das séries paralelísticas e do ritmo encantatório.
O canto começa com uma sequência de vocábulos intraduzíveis, que indicam a ativação do sopro do cantador. Em seguida, segue uma evocação das Shoma, infinitos espíritos femininos que vivem em uma espécie de relva, de onde são convocadas pelos pajés kẽchĩtxo para auxiliar em alguma tarefa. As Shoma (também chamadas de Wano) são dotadas de diversos poderes, entre os quais o “poder-calma” (rawe isĩ) desprendido pelas Shoma através de seu caldo (ou chá) de tabaco e de seu “vento-calma”. Ao logo do canto, tal poder é mobilizado para amansar e enganar os porcos, a fim de que saiam de seus lugares no interior da floresta e se aproximem da aldeia. Os queixadas a que se refere o canto pertencem ao Povo Japó (Rovo Nawavo), um dos segmentos da sociedade marubo que também se estende às gentes extra ou não-humanas: porcos, assim como os elementos a eles associados, serão portanto sempre acompanhados do classificador “japó” (linhas 15, 16, 18, 24, por exemplo), que indica uma variação sociocosmológica e não alguma espécie híbrida.
Os shõkisão compostos por metáforas compreensíveis apenas aos cantadores e especialistas rituais. É o caso das linhas 16 e 17, que são metáforas para as moradas dos porcos; da linha 24, metáfora para o caminho sinuoso que eles devem percorrer; das linhas 31 e 32, outras metáforas para os caminhos. Uma lógica parecida pode ser encontrada nas linhas 38 e 39, que são símiles para a fileira de porcos (cobertos por sua pelagem saliente) – imagem retomada, aliás, nas linhas 51 e 52, que aludem ao tronco espinhento de tucum como visualização da fileira de suínos peludos. Nas linhas 44 e 53, encontramos outra imagem para o ruído dos porcos em suas correrias, similar ao de determiados pássaros. As linhas 57 e 58, por fim, são espécies de metáforas para o processo de surgimento dos caramujos aruás (feitos há muito tempo atrás pelos espíritos demiurgos, através de testículos de macacos), que os queixadas adoram devorar.
A partir daí, vemos os porcos se aproximarem dos roçados das aldeias, onde serão caçados. O canto se estende por mais duas centenas de versos, ao longo dos quais outras imagens similares são adicionadas à sua estrutura panorâmica. Na circunstância em que a performance foi registrada, em algum mês de 2005, Antonio cantava sobre um pote que continha rastros dos porcos, tais como fezes, pelos e pedaços de terra. Após ser ativado por suas palavras, o pote foi pendurado na porta de uma das malocas da aldeia Alegria, a fim de servir como atrativo para os animais. De fato, no dia seguinte, a vara de porcos se aproximou dos roçados da aldeia e possibilitou uma caça abundante.
--- Pedro Cesarino
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Nota sobre o cantor:
Antonio Brasil Maruboé um pajé rezador e chefe da comunidade Alegria (alto Rio Ituí, Vale do Javari, Amazonas)
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Nota sobre o tradutor
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Nota sobre o tradutor
Pedro de Niemeyer Cesarinoé antropólogo, professor do Departamento de Antropologia da USP.
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