POR UMA POÉTICA DO DIVERSO:
poesia e pensamento de Édouard Glissant
por Leo Gonçalves, especial para a Modo de Usar & Co.
Tarefa complexa a de esquematizar seja em quantas linhas for o pensamento de Édouard Glissant. Irrigada pelas mais diversas disciplinas, sua obra pode ser colocada nas estantes de filosofia, sociologia, antropologia, história, geografia, uma vez que ele dissolve as fronteiras entre todas elas. Além disto, mesmo nas obras mais conceituais, quase sempre seus textos são perpassados pelos influxos do poema. Linguagem axial para a utopia glissantiana, a poesia está presente também em suas narrativas, conferências, ensaios, dramaturgias, interferindo ela na forma, no estilo ou no tema. Aparece, por fim, em estado bruto em seus poemas que passaram a ser reunidos há algum tempo em seus livros Le sel noir e Pays rêvé, pays réel. Para esse pequeno espaço, faço um recorte superficial sobre como a poesia aparece em sua obra, em meio a alguns de seus conceitos e proposições.
Para Glissant, a globalização é uma grande oportunidade para o encontro. Por isso, considera que neste momento da história, acontece uma imensa “crioulização” do mundo. Crioulos são esses idiomas híbridos, mistura de uma língua de colonização com antigos vícios de linguagem dos neofalantes e expressões idiomáticas dos habitantes primeiros ou implantados. Idiomas crioulos são falados no Haiti, na Martinica, em Cuba, Cabo Verde, Guiné-Bissau. Glissant identifica esses lugares como grandes eixos, ilhas, pontos de encontro onde a diversidade cultural é obrigada a conviver entre si. A tese da crioulização do mundo se confirma através das diversas migrações de povos e da constante necessidade do contato no mundo contemporâneo, mediado pela internet e pelos meios de comunicação digital.
Num planeta assim, torna-se ainda mais urgente a reconquista das múltiplas identidades existentes. Por isso, seu discurso tende a reavaliar o conceito de universalidade. No mundo em que reina o diverso, só é possível haver o uno e o único. O oposto disso resulta, inevitavelmente, em planificação, imposição de uns sobre os outros, como têm sido as grandes colonizações da história.
O movimento da Negritude será considerado de grande importância por ele. Tendo vivido sua fase heroica nos anos 1930, tardou um pouco mais para obter certo reconhecimento enquanto (usando as palavras de seus idealizadores) revolução literária. O próprio Glissant é quem aponta o ano de 1956, ocasião do I Congresso de Escritores e Artistas Negros, sediado em Paris e o surgimento da revista Présence Africaine, criada por Alioune Diop como data e meio por onde o movimento literário ganhou amplitude mundial.
Mas Glissant não é um representante da Negritude, como muitos pensam. Embora alguns de seus primeiros poemas tenham algo de senghorianos e em alguns momentos seus temas lembrem os de Aimé Césaire. Ao longo de sua obra, fez (sem nunca negar sua importância) algumas das críticas mais consistentes à Negritude. A formulação de Senghor “o conjunto de valores de civilização do povo negro” possui generalizações exageradas. Em primeiro lugar “povo negro” e não povos negros. Além disso, Glissant tendia a olhar não para o conjunto, mas para oS conjuntoS de valores. Outra palavra recorrente entre os poetas da Negritude é “universal”. Glissant busca uma teoria da antilhanidade, do específico que é fazer parte de um povo crioulo, com ideias e valores próprios e raízes as mais diversas que vão dos africanos do Benin em seu contato com os fazendeiros Bekés ao grande contingente de indianos chegados na segunda metade do século XX ao mar do Caribe. É esse o tema do livro Le discours antillais(1997), livro que terá, provavelmente, a importância que tem para nós um Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda.
A formulação de Aimé Césaire também é brilhante, mas não menos passível de críticas. Ao se deparar com as teorias do surrealismo e com a ideia da supressão de camadas superficiais do humano, que no surrealismo se expressa através do inconsciente e do subconsciente, o autor de Cahier d’un retour au pays natal (Caderno de um retorno à terra natal) propõe que ultrapassando as camadas superficiais de si mesmo, ele, negro da diáspora, chega à África e ao que ele chama de “nègre essentiel” (negro essencial). Glissant contesta nos seguintes termos:
Césaire dizia: “somos negros, somos africanos… temos nossos valores…” Hoje ainda nos Estados Unidos, os intelectuais negros o afirmam com um atraso de trinta e quatro anos. Eles são partidários do que chamamos de afrocentrismo, ou seja, o retorno ao centro que seria a África. Não concordo com isso, pois os negros Americanos não são africanos, mas antes de tudo, Americanos. Quando eles estão na África, eles comem carne congelada, pegam a “turista” [espécie de doença que costuma pegar turistas pouco habituados a determinada comida local]; ficam doentes e não podem nem encostar numa fruta.1
É a partir da ideia do diverso, que Glissant desenvolve o conceito de “relação”. “Eu posso mudar, mudando com o Outro, sem me perder entretanto, nem me desnaturar”2, afirma. Defende o princípio da opacidade. Opacidade que retira o indivíduo da obrigação de lidar com as transparências do “outro”, transparências que costumam vir de maneira imposta, sempre da parte de quem ocupa a cabeça do poder. Uma proposição libertária que oferece por si só muitas chaves para a “relação” nesta era do contato.
Aclamar o direito à opacidade, torná-la um outro humanismo, é portanto renunciar a trazer de volta as verdades da extensão na medida de uma única transparência, que seria a minha, que eu imporia. É em seguida, fundar que o inextricável, plantado no obscuro, conduz daí também as clarezas não imperativas.
A parte de opacidade proposta entre o outro e eu, mutuamente consentida (não é um apartheid), aumenta sua liberdade, confirma também minha livre escolha, numa relação de pura divisão, onde troca, descoberta e respeito são infinitos, caminhando por si mesmos.
Identidades se formam a partir de clarezas e obscuridades. A partir do sabido e do suposto, assim como do insabido. Uma vez que no encontro dos povos, a aniquilação do outro parece ser uma regra, Glissant coloca a baila a ideia de raiz rizoma. Raízes com centros diversos de irradiação e com interconexões descentralizadas.
“Tudo começa sempre com poemas”, ele afirma. Em todos os povos, a identidade é sustentada pelo imaginário, geralmente com uma língua escolhida (a língua de Deus), uma religião, e um poema fundante. A Ilíadae a Odisseia, o Velho Testamento e o Popol Vuh, assim como as grandes células rítmicas que ressoam até hoje nos imaginários dos povos africanos e de sua diásporas, seriam alguns desses poemas fundamentais que trazem, como contra fluxo, uma suposta ideia de pureza. O atavismo, ou seja, a fidelidade à imutabilidade desses povos, dessas línguas e desses poemas (e dos valores que os acompanham) é a base da intolerância cultural e do aniquilamento de uns sobre outros, do passado sobre o presente e das dinâmicas produtoras de futuros inesperados.
A crise (e a oportunidade) que se dá nesse contexto, se deve ao fato de que vivemos numa totalidade mundo, o “Tout-monde”, que já encontrei traduzido como “Todo-o-mundo”, mas que eu traduziria por “Tudo-mundo”. Segundo Glissant, “escrevemos em presença de todas as línguas do mundo”, ou seja, no momento mesmo em que digito estas palavras no meu computador, eu sei que há milhares de idiomas sendo falados em todo o planeta terra. Ainda que eu não fale nenhum desses idiomas, esse poliglotismo me habita, me perpassa. Sou necessariamente obrigado a lidar com o fato de que minha língua não é a única, nem a melhor, nem a mais importante. Ora, essa é justamente uma das características centrais do pensamento atávico: a certeza de ser um povo escolhido, o povo de deus. O poliglotismo incontornável do mundo atual é justamente o que possibilita, ou que deveria possibilitar, ou que deve passar a possibilitar o quanto antes (a escrita de Glissant é sempre utópica) o encontro e o convívio salutar dentro do Tudo-mundo.
Penso que todos os povos dos nossos tempos têm uma presença importante a assumir no não-sistema de relações do Todo-o-mundo, e que um povo que não possui os meios necessários para refletir sobre essa função é, com efeito, um povo oprimido, um povo mantido em estado de incapacidade4.
Daí um possível papel do poeta, do artista, do escritor: o da construção de um outro imaginário. O artista, independentemente de qualquer força que o distancie de seu público (é sempre necessário o princípio da opacidade), terá sempre em suas mãos essa potência: a da produção de uma visão de mundo, a reinvenção de um povo (Deleuze), a reconfiguração das imagens que definem as identidades diferentes, unas e únicas. Reformulação que só é possível quando o poeta encara de frente o “Grand-Chaos”, o grande caos do mundo, mas que também não acontece sem que o artista possa Cahoter (palavra híbrida do francês e do crioulo), ou seja, dar a grande sacodidela (chacaoslhar?) na linguagem, dar vazão ao caos e a toda dose de inesperados que a arte arde por produzir.
O poeta se eleva, subleva consigo o mundo. Sofrimento e alegria que ele divide nele mesmo. (...) A poesia não produz nada de “universal”, não, ela pare abalos que nos transformam5.
--- Leo Gonçalves
§
POEMAS E TEXTOS
Do livro Philosophie de la relation
I.
Eis que ergueu-se uma palavra sagrada. Ora o poema, então o poema, gerado de si mesmo, começou a ser reconhecido.
Assim, deve ter-se pronunciado, talvez, nas pré-histórias de todas as literaturas do mundo, esse mesmo começo. Seu título indicaria uma primeira e obscura composição da intenção das línguas, bem antes que as rudes clarezas das histórias dividissem os espaços e os ecos das vozes. Era antes de todas as humanidades. As glicérias loucamente surgidas se reagruparam em lírios despetalados que divagavam em gargantas de fogo, as cores se distinguiam com dificuldade umas das outras, e os arco-íris torturados não eram ainda senão massas sem halo que reencontravam no redondo suas linhas. Eternidades mais longe, o que surgiu nas ladeiras obscurecidas dos grotões não era a sombra enganosa de uma realidade de fora, mas o próprio signo da fusão do todo ao todo: as humanidades não tinham ainda repartido suas diferenças com golpes de amputação sangrentas, e o que estava gravado lá nos rochedos de suas cavernas, nem mão divina nem traço conjuratório, era também a memória desse poema original, vindo de si mesmo e o eco dessa palavra sagrada, nascida já de todas as coisas no mundo. Poema, bodum, eco, que exalava e acompanhava o estupor sagrado.
O mito, ou essa lenda ou esse sonho, engrossado com os reais inconcebíveis das origens, que se recompôs nas primeiras histórias das humanidades, não tinha o valor fechado de uma ocasião histórica, isso porque ele se repetia com cada poeta que, desde esses tempos ofuscados, havia remontado nossos tempos evidentes, para encontrar semelhantes revelações. Escrever um poema ou cantá-lo, ou sonhá-lo, era consentir com esta verdade inverificável, que o poema em si é contemporâneo dos primeiros braseiros da terra. Eis por que nos agrada que o pretexto do poema permaneça obscuro, cada um recua a concordar com suas claridades, esse poema todovidente não se vale de antemão de nenhuma necessidade visível, e os mais seguros poetas o dizem, e esse poema volta de lá a cada vez que há um episódio ou uma necessidade das presciências das humanidades, e ele renova, com os poetas mais inesperados, em sua necessidade de falar, esse encaminhamento que levou do obscuro original do canto a suas evidências trêmulas. O tecido do poema é confuso, indiscernível, o poema pega a estrada por debaixo, ele manifesta suas explosões em todas as línguas do mundo, grito ou palavra pronunciada, quer dizer, em todas as direções, onde nós talvez já nos perdemos, ele se estende com verdade de uma paisagem vivida por um outro, o poema nômade, ele gira de tempo a tempo.
A elevação havia feito com que a palavra se erguesse dela mesma ao mesmo tempo que apagada de todos os lugares possíveis, como um pássaro inumerável, isso acontecia antes que as raças e as línguas e as posturas se diferenciassem depois se opusessem, e o poema havia desaparecido nas perfurações da terra, em obscuridades escondidas, e com ele todas as possibilidades das línguas, que havia se tornado necessário recompor como raízes quebradas.
*
Esse pré-dia, em abismo, e inexplicável.
*
O coruscar das palavras, as grafias do poema, nossas humanidades duradouramente os recomeçaram. Elas buscaram o que havia sido reconhecido, elas iam por todas essas línguas pouco a pouco redescobertas. A escrita não ergueu-se primeiramente desse conhecimento, mas eis que, sim, eis que o amontoado das vozes primas e das estrofes declamadas no alto, a precipitação dos rá rás originais, que haviam prefigurado os sinos antes de lhes substituir quando elas se calaram, que rodam e rodam, e o assobio em cascata das raízes retiradas a granel, e todos barros que resistem à retomada das palavras, e a germinação dos cantos que, em suas línguas e suas linguagens de grãos e de filos, tentam requerer outra vez o poema, todo enterrado, que é também sua obra e que parecera brotar das sementes selvagens. A escrita e a oralidade saíram da mesma fonte, elas se arrastavam das mesmas amarras, nós havíamos esquecido isso. Depois os povos da escrita triunfaram com orgulho sobre os povos da oralidade.
*
O que desejava essa palavra do sagrado (é da inteireza do mundo que eu falo), posta de lado para confirmar tantas obscuridades inevitáveis? Ela havia suposto, no primeiro suspiro, que prevenia (ou lutava) contra a seperação das diferenças, que parecia inevitável, em seguida, quando os caminhos e as inspirações do mundo foram com efeito divididas, ela se ocupou de reunir ainda essas diferenças ao longo de um mesmo e mesmo arquejo, afim de que o som divergente que daí resultaria até os horizontes parecesse calmo e consolador.
O sagrado figurava assim uma resolução benéfica das ameaçadoras diversidades, mas o poema não encontrou aí o espaço de ser reconhecido, o haviam escondido sob os primeiros colapsos dessa terra. Guardemos: que o poema foi enterrado num colapso da terra. A unidade e a multiplicidade das coisas se apresentaram mais por hábito que por comodidade, segundo a ordenação de uma partição por pares e dualidades, antes que se descobrisse os gêneros e as espécies, e essa cadência permitiu melhor distinguir (pensamos e reagimos ainda desta maneira dúbia, isso é às vezes um surpreendente prazer), esperando também que as diferenças renovadas se confessem como tais, e que o poema uma vez ainda surgisse. Mas mal os povos se separaram, as dominações proliferariam, e todas as florações dos mamoeiros, os machos que são chamados de buarengues porque são estéreis e os mamoeiros fêmeas que são encarregados de reproduzir a espécie, haviam fecundado ao mesmo tempo, e separadamente. Nós vimos isso, uma papaia macho que dá frutos. Era uma relembrança das antigas indistinções. Tendo atravessado o obscuro, e tendo-o exprimido, antes de entrar nas claridades incertas das nossas histórias.
III.
(...)
Mas o poema é, com efeito, a única dimensão de verdade ou de permanência ou de desvio que religa as presenças do mundo, conquistadores e povos devastados, sábios e comunidades elementares, cantos e granizos, passíveis diálogos com os bosques e as águas e os fogos da extensão e brotos selvagens no desconhecido das sombras, graves poetas a serviço e griots sem limites, improvisadores de pampa e cadenciadores de remos, comunidades berrantes e povos sem palavra audível, técnicos das máquinas de atrapalhar e vulgarizadores cretinos, sob todas as formas, a começar pela frequentação insuspeita que temos ao redor (...).
Esta voz das velhas Áfricas pronuncia, “somente a estrada conhece o segredo”, ou mais secretamente, “somente a estrada conhece o caminho”. O amante do mundo nos leva nessas direções das quais não sabíamos antes.
(Philosophie de la relation. Paris: Gallimard, 2003)
§
Elegia para Mahmoud Darwich
O vento da África atracou sobre o Atlântico, e nos fez oferenda. Os doces pólens de Agadir, tantos pirilampos azulados de Ibadan, as gemas tremulantes alimentadas nas areias de Djenê, a fala do poeta aprisionada no seu voo de cascalhos febris. O vento se comove no Panamá, entre as Américas, se espalha no Canal, ele abre sobre a ilha de Páscoa onde ele repousa, e arremessa os espaços nascidos dos simons do Oriente. A fala do poeta desplantada da terrível poeira dos combates. Os céus abertos aos horizontes, por onde a paixão lenta dos manguezais e esta amêndoa inesperada no coração das palavras.
:
Élégie pour Mahmoud Darwich
Le vent d’Afrique a déhalé sur l’Atlantique, et nous fait offrande. Les doux pollens d’Agadir, tant de lucioles bleuies d’Ibadan, les gemmes frémissantes nourries aux sables de Djenné, la parole du poète emprisonnée dans son vol de cailloux fébriles. Le vent s’émeut à Panamá, entre les Amériques, fuse au Canal, il ouvre sur l’île de Pâques où il se repose, et il dévale les espaces nés des simouns d’Orient. La parole du poète dessouchée de la terrible poussière des combats. Les ciels ouverts aux horizons, partout la passion lente des mangroves, et cette amande inattendue au cœur des mots.
(do livro La cohée du lamentin: poétique V. Paris: Gallimard, 2005)
§
Esse sopro magro do poema que ondula
Na água-ribeira onde sua face no profundo foi beber…
O Passante diz: “É um sábio! Ou então é um zumbi
Ele aposta sua memória nessa profecia, os pés
Gelados de tochas que despalham, de bagaços luxados.
Ele – tenebrando o ritmo – nomeou os Grandes Caos
Mulheres-alburno, homens-conforme, os tabuleiros, as Peças
Fingidas que vêm morrer nas pedrinhas da praça.
São os Bosques mudos de vossa populaça! Ó suculências
Suculências negras
Dos negros loureiros descabelados.
:
Ce souffle maigre du poème qui déhoule
En l’eau-de-rivière où sa face aux profonds a bu…
Le Passant dit: “C’est un savant! Ou bien c’est un zombie
Il gage sa mémoire en cette prophétie, les pieds
Gelés de torches qui épaillent, de trognons démis.
Il a – ténébrant le rythme – dénommé les Grands Chaos
Femmes-aubier, hommes-selon, les damiers, les Pilles
Feintes venues mourir aux Petits-pavés, sur la Place.
Ce sont les Rhamnès tus de votre populace! Ô sucs
Sucs noirs
Des noirs lauriers échevelés.
§
Cinzas
carnaval
de cantadores em lugar de pica-paus e de lobos em lugar de máscaras
capacetes estourados de palha onde a lua te prega e desaparecidos
porque ressequidos em lugar de vivos e organdi em lugar de sacolas
pelas ruas mortas da cidade, em noite de morte ou em meio a uma pálida tarde
:
Cendres
carnaval
de chanters en lieu de pics et de loups en lieu de masques
casques éclatés de paille oú la lune te cloue et disparus
de taris en lieu de vifs et d’organdi en lieu de sacs
par les rues mortes de la ville, en nuit de mort ou par un blême après-midi.
§
Poética
Compreender tempo calor
Rocha calor
dor casada
grito vaporizando sua palavra
vogal a vogal
concretadas.
:
Poétique
Comprendre temps chaleur
Roche chaleur
douleur mariee
cri vaporant son mot
voyelle a voyelle
concretees.
(de Les Grands Chaos(1993) em Pays rêvé, pays reel. Paris: Gallimard, 2000)
§
Vertigem dos tempos frios
Cinzas lenhas oh teus dias
São de infinito abandonado
Tuas mentiras, fantasias
São prantos, no espelho animadas
Magro espelho e alta torre
Agua da morte aprisionada
Em nenhum oceano sem labores
Febres e argilas sulcadas
Chorai que meu espaço liga
Espaço realizado sobre ti
Mais que oceano num banido
Minhas febres labores lenhas mortos
A essas mentiras cinza ainda
E argila mais que infinito
:
Vertige des temps froids
Cendres taillis ô vos jours
Son d’infini abandonné
Vos mensonges tels des atours
Sont pleurs, au miroir animés
Maigre miroir et haute tour
Eau de la mort emprisonnée
Dans nul océan hors labours
Fièvreet argile sillonnées
Pleurez que mon espace lie
Espace sur vous accompli
Plus qu’un océan sur un banni
Mes fièvres labour taillis morts
À tells mensonges cendre encore
Et argile plus qu’infini.
§
Beleza
A Max Clarac-Sérou
É por aqui um vento de rosas solenes é azul
Tecendo em floração de irreais, tão belas mãos
E o verão que o vento despoja de seu sonho, o menino nu
Chorando diante do dia, esperando o meio dia.
Tua cidade te compreende. Uma palavra implora com dificuldade essa brisa
Invisível que nos obriga a nos envaidecer de transparências
E mais secreta em sua seiva e inominável, veja,
O sal recobre a estação, as árvores ruivas, o menino.
Das rosas irreais nós nomeamos o impuro incenso.
:
Beauté
A Max Clarac-Serou
C’est par ici un vent de roses solennelles c’est azur
Tissant en floraison d’irréelles, si belles mains
C’est l’été que le vent dépouille de son rêve, l’enfant nu
Pleurant devant le jour, attendant midi.
Ta ville te comprend. À peine un mot implore cette brise
Invisible qui nous oblige à nous vanter de transparences
Et plus secrète dans sa sève et innommable, Vois,
Le sel recouvre la saison, les arbres roux, l’enfant.
Des roses irréelles nous nommons l’impur encens.
§
Abrupto
Não o canto, tenda em teu deserto
Mas a inocência caída rubra
Limo dos mortos em tua morte entabulados
Um riso para que um morto arene sua ferida
Um grito um nó um pesado aprumo de cabeças baixas
Não o canto
Mas esta pedra em tua mão onde uiva o vento
E sonham pássaros feridos dos frutos das palavras
Enquanto viva tu surpreendes
O sangue margeado vivendo na noite sem ventania
:
Abrupt
Non pas le chant, étal sur ton désert
Mais l’innocence tombée rouge
Limon des morts dans ta mort entablés
Un rire pour qu’un mort ensable sa blessure
Un cri un nœud un lourd aplomb de têtes chues
Non pas le chant
Mais cette pierre dans ta main où crie le vent
Et rêvent des oiseaux blessés des fruits des mots
Pensant que vive tu surprends
Le sang rivé vivant dans la nuit sans autan
(do livro Le sang rivé[1947-1957] em Le sel noir. Paris : Gallimard, 1983)
§
§
1Citação de Glissant em Louis, Patrice. ABCésaire: Césaire de A a Z. Paris: Ibis Rouge, 2003.
2Glissant. Introdução a uma poética da diversidade (tradução de Enilce Albergaria Rocha). Juiz de Fora: UFJF, 2005.
3Glissant. La philosophie de la relation. Paris: Gallimard, 2003. Todas as traduções que não forem identificadas são minhas.
4 Glissant, 2005, p. 109
Leo Gonçalves. Nascido em Belo Horizonte, em 1975, é autor de Use o assento para flutuar (2012) e das infimidades (2004). Traduziu poetas como Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire, William Blake, Juan Gelman e outros. Desenvolve atividades de performance e leitura de poesia.
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