Sobre “Transformador”, antologia de Dirceu Villa
Eu poderia começar esse texto praguejando contra o estado dos cadernos de cultura dos grandes jornais brasileiros, pelo silêncio em torno da publicação de um livro como Transformador(São Paulo: Selo Demônio Negro, 2014), que reúne uma seleção considerável de 15 anos do trabalho poético de Dirceu Villa, assim como traduções suas para poetas como Horácio, Ovídio, Verlaine, Joyce e Brossa. Não deixaria de ser algo ao estilo do próprio autor, que lamenta há tempos o descaso por certa literatura não- comercial no jornalismo do país, que parece hoje tão afeito ao sensacionalismo quanto as colunas sociais – que, de resto, são hoje parte dos cadernos de cultura.
São 300 páginas, com textos de todos os seus livros publicados: MCMXCVIII(1998), Descort(2003) e Icterofagia(2008), assim como de seu próximo livro, couraça, ainda inédito. A edição, muito bonita, ficou mais uma vez a cargo de Vanderley Mendonça e seu Selo Demônio Negro, que já havia lançado em 2011 a tradução completa e anotada de Dirceu Villa para o Lustrade Ezra Pound (1885-1972). Pound é uma referência importante para o trabalho poético e crítico de Villa, sua preocupação com uma revisão atenta do cânone, seu apreço pela tradição, suas máscaras, assumindo linguagens e poéticas múltiplas.
Uma leitura deste livro mostra claramente a variedade de formas que Dirceu Villa assume com talento e conhecimento, da métrica ao verso (dito) livre: há textos curtíssimos, excelentes poemas satíricos (como “façam suas apostas”, um dos meus favoritos dos últimos tempos), textos com uma imagética brutal, como “O cutelo”, e poemas mais longos e narrativos, como “Três histórias douradas”. Há textos que deveriam pegar qualquer leitor de forma direta e imediata, mas trata-se também, em grande parte, de leitura que requer atenção, algo de que nosso tempo parece nos privar cada vez mais.
Dirceu Villa é um dos autores mais sérios de minha geração. Suas contribuições nos últimos anos começaram a ter mais atenção com a publicação de Lustra, que foi devidamente saudada. Este Transformadornos dá a oportunidade de ler em um único volume grande parte de sua contribuição pessoal, a de sua poesia. Em português, o título pode funcionar tanto como adjetivo ou substantivo. Para transformar algumas de nossas ideias, precisa ser lido, conhecido, feito um dispositivo destinado a transmitir energia de um circuito a outro, do autor ao nosso como leitores, induzindo tensões e correntes.
--- Ricardo Domeneck, publicado originalmente na coluna Contra a capa, na Deutsche Welle Brasil, 25 de novembro de 2014.
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TRÊS POEMAS INÉDITOS DE DIRCEU VILLA
o acordeonista lisboeta
grandes maltrapilhos da europa oriental
pisam o chão de metal
dos trens do metrô; carregam
e tocam acordeãos.
com pirralhos já sebosos
passando os piedosos
chapéus, os maltrapilhos vão.
não o acordeonista lisboeta
― sisudo gorducho já careca,
ginja d’óbidos, olhos em conserva:
traz no ombro um chihuahua,
patas traseiras lá, e que observa
o instrumento sonoro com presas
de onde pende a pet cortada, presa
a uma alça de metal, pra esmolas:
moedas tilintam, o cãozinho não pesa.
olha os transeuntes sem se mover
― que o ombro o adestre ―,
no equilíbrio de esfinge pra manter
a caixa dos trocados do mestre.
ele toca eu acho um velho fado,
triste, mas feito de trinados,
o acordeonista, espessa nuvem pedestre.
sai em silêncio do vagão
e ouço a melodia renovada
ao entrar peloutra porta o acordeão.
§
a invenção da tolerância
tous les hommes sont frères
puseram-lhe a peruca espargindo talco em pó,
apertaram o redingote de brocados
e lhe calçaram um soulier à boucle delicado.
pronto e com os braços já cruzados
na altura da cintura em suas costas,
olhou pela janela com os livros que já lera,
alguns deles em latim, para respostas.
“sábios hindus banhando-se no ganges,
a cerimônia japonesa serve o chá civilizado,
notável a cabala do judeu em letra e dígito,
medicina e armas maometanas, o outro lado:
vejo tudo do jardim com essas plantas
divididas em harmonia, e com razão.
eu firmo agora os pés nesse universo,
eu domo a vida com a guerra, a régua e o comércio
e cedo a todo estranho essa palavra, um novo berço”.
§
a fala de shamash
& a febre de enkidu
para josé francisco botelho
“enkidu, és um tolo se ofendes shamhat,
prostituta que deu-te o néctar dos deuses,
que te serviu a cerveja vermelha dos reis,
que te vestiu com as cores do céu e da terra
e deu-te o amigo melhor, o belo gilgamesh:
ishtar entre na casa daquele que colhe seus dons;
o touro te olha entre a névoa do sonho,
patas leoninas com garras de harpia
te agarram os cabelos, te erguem no ar, te sopram
e eis que te tornas um pombo, e eis que és agora
cativo das sombras, trono de irkalla,
onde a porta é trancada na casa da areia,
onde o silêncio te mostra a mesa de enlil,
as coroas dos reis já deitados na terra,
o perfume dos pães bem cozidos, da água
tão fresca e corrente: estás na casa da areia,
diz-te o touro de asas que viste em frente ao palácio,
da porta cerúlea de onde saem os heróis
buscando o leão, o touro selvagem, o íbex,
a floresta de cedros onde sussurra o segredo
que ao desbastar a morte da vida burila uma jóia”.
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