ciclos eclipes espirais
por Guilherme Gontijo Flores
o fim do ano é sempre um momento de votos de renovação: do famigerado “então é natal, e o que você fez?” sempicantado por simone, esse som/ruído que rememora nossa inutilidade anual & perene, ao mesmo tempo em que já passa quase despercebido pelos nossos ouvidos, a não ser para causar algum desconforto via repetição; até os desejos de ano novo, porque dessa vez você vai parar de fumar, vai aprender uma língua nova, fazer mais exercícios, achar alguém que te ame de verdade, viver a verdadeira vida & quebrar o maldito disco da simone – “ano novo vida nova”. o fim do ano funciona para nós como símbolo dos ciclos da vida, ocupa o lugar do renascimento, &c. oferece a remissão (dos pecados?) & o perdão; mas convém assumir que todos bem sabemos que nada retorna.
o calendário, na verdade, nos salva.
mas certamente não porque algo se renova de fato. o tempo não tem ciclo, mesmo que o ser humano temporalize seu tempo (heidegger) a partir de repetições como dia/noite, ciclos lunares/semanas, movimentos das constelações, estações (nem sempre são 4, & para muitas tribos ameríndias a divisão básica é em 2: seca & chuva, ou de 5 estações), meses anos, &c. nada disso é ciclo no sentido puro. nada se repete plenamente. as variações de dia & noite não cabem na dureza lógica dos relógios, tal como as estações não são idênticas (nunca um verão igual ao outro), as constelações — como nós & como tudo — inevitavelmente morrem, ainda que as vejamos brilhando numa noite sem nuvens, & a própria terra faz uma elipse sempre ligeiramente diversa sobre o sol, que por sua vez segue outra elipse, numa galáxia que tem sua elipse própria, num universo que talvez circule entre outros universos, ou que no mínimo está em crescimento (ou recrudescimento, a depender do físico). mas sim: na relação com o mundo nós damos sentido àquilo que se abre para a interpretação humana; nada garante que haverá sol amanhã, mas como até hoje ele sempre surgiu, contamos com sua presença eterna, prevemos (leia-se calculamos) acontecimentos solares, lunares, meteorológicos, &c.; também podemos dar extrema importância aos minutos & segundos (& micro- & nanossegundos) depois que as guerras do séc. xx passaram a nos dar regularmente relógios mais & mais acurados que alteram nossas relações (& interpretações) do mundo. enfim fundamos, cada povo do seu jeito, calendários para dobrar o tempo numa volta, tornando suas revoluções quase iguais; por isso, vico, nietzsche, joyce &c. gostavam tanto da imagem de uma espiral no tempo, um símbolo simultâneo de diferença & repetição que poderia se desdobrar ao infinito.
por isso, ainda, o calendário nos salva.
lévis-strauss demonstrava nas mitológicas com que frequências os campos cósmicos, míticos, sociológicos, alimentares, &c. se sobrepunham de forma complexa (por exemplo: o mel & a seca [Do mel às cinzas], ou o escalpo e o inverno [A origem dos modos à mesa]) para dar conta da experiência humana. se, por um lado, pensamos abstratamente em termos de ciclos & elipses, de renovação, renascimento, ressurreição, repetição, por outro, sabemos que nada retorna & tudo segue (quem dera linha fácil, em vez de garatujas) sem sentido, talvez na entropia crescente & previsível (seria isso aplicável à entropia?) rumo a ninguém-sabe-o-quê. diante do acaso, ou do limite do nosso saber, talvez seja isso que o calendário nos conceda: uma saída desse ninguém-sabe-o-quê — mas certamente a morte — que cerca nossos sonhos de sentido. o nosso calendário, como tantas outras invenções, funda um mundo onde podemos nos guiar entre a linha teleológica cristã & os ciclos temporais pagãos, porque dá coordenadas de tempo que espantam o des-espero do niilismo em que muitos de nós cairíamos sem um mapa do tempo, sem uma chance de rememorar nossa inutilidade no dia 25 para em seguida prometer o autorrenascimento no dia 31 (deixo de lado outros momentos, como carnaval). mesmo o caos pode ser revisto como organização extrema e hipercomplexa, que escapa à nossa percepção, tal como é formulado na teoria do caos desde lorenz (no fim, um retorno a poincaré) & incorporado às ciências humanas na caosmose de guattari: o calendário é estanque, eppur si muove.
penso que, diante dos ciclos, elipses & espirais que fundamos para suportar viver, a arte — em sentido latíssimo, de mitos indígenas à literatura erudita — teria uma tarefa dupla & por isso também teria seus retornos. de um lado, desvelar constantemente a falta de sentido (tudo é δόξα, diriam os estoicos gregos), para impedir a banalização dos ciclos, a facilidade automatizada das repetições vazias; de outro, recriar mitos & sentidos capazes de nos relançar no mundo, ou ao menos “lançar mundos no mundo” (caetano), tal como a tradução dessas artes pode “importar novos e diversos modos de ser” (g. steiner). noutras palavras: tirar constantemente o chão apenas para fazer outro, desmontar & remontar calendários.
suponho que assim, sem mistificação ou ingenuidades, sem a contabilidade anual dos bons & maus feitos, sem as promessas votadas ao fracasso ou ao tédio, a arte também possa vez por outra nos salvar.
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sobre o autor
Guilherme Gontijo Floresé um poeta, tradutor e crítico brasileiro, nascido em Brasília em 1984. É graduado em Letras pela UFES, e mestre em estudos literários pela UFMG com a tradução integral das Elegias de Sexto Propércio (43 a.C. - 17 a.C.). Hoje é professor de Língua e Literatura Latina na UFPR e termina seu doutorado na USP, sobre as Odes de Horácio (65 a. C. - 8 a.C). Já publicou traduções de As janelas, seguidas de Poemas em Prosa Franceses, de Rainer Maria Rilke (em parceria com Bruno D'Abruzzo), e de A Anatomia da Melancolia, de Robert Burton, em 4 volumes (pela qual recebeu o Prêmio Jabuti de tradução). Participa do blog coletivo escamandro, sobre poesia, tradução e crítica. Seu livro de estreia, brasa enganosa (São Paulo: Editora Patuá), foi lançado no ano passado. Não deixe de visitar seu projeto sonoro/visual Tróiades.
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