Ontem foi o septuagésimo aniversário da liberação do campo de extermínio de Auschwitz. Não citaremos Adorno. Deixamos aqui apenas alguns poemas de escritores que sobreviveram aos campos, e escritores que, tendo perdido família e amigos neles, também encararam o abismo do horror em textos.
Paul Celan (1920 - 1970)
Fuga da morte
Leite negro da madrugada que bebemos à tardinha
nós bebemos ao meio-dia e de manhã nós bebemos à noite
nós bebemos e bebemos
cavamos uma cova nos ares onde possamos espreguiçar-nos
Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve
que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete
ele escreve e posta-se diante da casa estrelas chamejam ele assovia
[quer seus cães a seu lado
ele assovia quer seus judeus à sua frente faz cavarem na terra uma cova
ele ordena desferi os violinos agora chacoalhemos os esqueletos
Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos à tardinha
nós bebemos e bebemos
Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve
que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete
Teu cabelo cinzento Sulamita nós cavamos nos ares uma cova onde
[espreguiçar-nos
Ele grita pás mais fundo no miolo da terra vós e vós cantai e tocai
ele alcança o ferro na cintura agita-o nos ares seus olhos são azuis
mais fundo com as pás mais alto com os violinos chacoalhemos
[os esqueletos
Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos à tardinha
nós bebemos e bebemos
Certo homem habita a casa teu cabelo doirado Margarete
teu cabelo cinzento Sulamita ele brinca com víboras
Ele grita dedilhai com mais doçura a morte a morte é especializada
[na Alemanha
ele grita desferi azuis os violinos e escalai como fumaça aos ares
assim tereis uma cova nas nuvens onde podeis espreguiçar-vos
Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite
nós bebemos ao meio-dia a morte é especializada na Alemanha
nós bebemos à tardinha e de manhã nós bebemos e bebemos
a morte é especializada na Alemanha seus olhos são azuis
ele acerta teu corpo com balas metálicas acerta na mosca
certo homem habita a casa teu cabelo doirado Margarete
ele atiça contra nós seus cães brinda-nos com uma cova nos ares
ele brinca com víboras e sonha a morte é especializada na Alemanha
teu cabelo doirado Margarete
teu cabelo cinzento Sulamita
(tradução de Ricardo Domeneck)
:
Todesfuge
Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends
wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
wir trinken und trinken
wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar
[Margarete
er schreibt es und tritt vor das Haus und es blitzen die Sterne er pfeift
[seine Rüden herbei
er pfeift seine Juden hervor läßt schaufeln ein Grab in der Erde
er befiehlt uns spielt auf nun zum Tanz
Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich morgens und mittags wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar
[Margarete
Dein aschenes Haar Sulamith wir schaufeln ein Grab in den Lüften
[da liegt man nicht eng
Er ruft stecht tiefer ins Erdreich ihr einen ihr andern singet und spielt
er greift nach dem Eisen im Gurt er schwingts seine Augen sind blau
stecht tiefer die Spaten ihr einen ihr andern spielt weiter zum Tanz auf
Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags und morgens wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith er spielt mit den Schlangen
Er ruft spielt süßer den Tod der Tod ist ein Meister aus Deutschland
er ruft streicht dunkler die Geigen dann steigt ihr als Rauch in die Luft
dann habt ihr ein Grab in den Wolken da liegt man nicht eng
Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags der Tod ist ein Meister aus Deutschland
wir trinken dich abends und morgens wir trinken und trinken
der Tod ist ein Meister aus Deutschland sein Auge ist blau
er trifft dich mit bleierner Kugel er trifft dich genau
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
er hetzt seine Rüden auf uns er schenkt uns ein Grab in der Luft
er spielt mit den Schlangen und träumet der Tod ist ein Meister
[aus Deutschland
dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith
§
Primo Levi (1919 - 1987)
Se isto é um homem
Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entrave,
Que os vossos filhos vos virem a cara.
(tradução de Simonetta Cabrita Neto)
:
Se questo è un uomo
Voi che vivete sicuri
Nelle vostre tiepide case
voi che trovate tornando a sera
Il cibo caldo e visi amici:
Considerate se questo è un uomo
Che lavora nel fango
Che non conosce pace
Che lotta per mezzo pane
Che muore per un sì o per un no.
Considerate se questa è una donna
Senza capelli e senza nome
Senza più forza di ricordare
Vuoti gli occhi e freddo il grembo
Come una rana d'inverno.
Meditate che questo è stato
Vi comando queste parole.
Scolpitele nel vostro cuore
Stando in casa andando per via
Coricandovi alzandovi
Ripetetele ai vostri figli.
O vi si sfaccia la casa
La malattia vi impedisca
I vostri nati torcano il viso da voi.
§
Charlotte Delbo (1913 - 1985)
Oração aos vivos para que sejam perdoados por estarem vivos
Eu suplico-vos
fazei qualquer coisa
aprendei um passo
uma dança
alguma coisa que vos justifique
que vos dê o direito
de vestir a vossa pele o vosso pêlo
aprendei a andar e a rir
porque será completamente estúpido
no fim
que tantos tenham sido mortos
e que vós viveis
sem nada fazer da vossa vida.
(versão de Luís Filipe Parrado)
:
Prière aux vivants pour leur pardonner d´être vivants
Je vous en supplie
faites quelque chose
apprenez un pas
une danse
quelque chose qui vous justifie
qui vouus donne le droit
d'être habillés de votre peau de votre poil
apprenez à marcher et à rire
parce que ce serait trop bête
à la fin
que tant soient morts
et que vous viviez
sans rien faire de votre vie.
§
Raymond Federman (1928 - 2009)
Diga-lhes
àqueles de viagem
com você agora
milhas a-
dentro
do imperdoável
como fomos nós
(que sempre os
acompanhamos)
que com força
os afundamos
ainda mais longe
nas funduras
onde encontraram
nossos amaríssimos
sonhos
e também os
dulcíssimos
e como mais tarde
mais tarde
de um lado a outro
de um lado a outro
no oco de nossos
nomes inextinguíveis
aprendemos juntos
a voar de novo
juntos
em nosso nome
(tradução de Ricardo Domeneck)
:
Tell them
those traveling
with you now
far in-
side
the unforgivable
how it was us
[who are with you
always]
pushed you
hard
deeper in-
to
the deep
where you found
our most bitter
dreams
our sweetest
dreams too
and how later
later
back and forth
back and forth
in the hollow of our
inextinguishable names
together we learned to fly
again
to fly away
again
together
in our name
§
Dan Pagis (1930 - 1986)
Escrito a lápis em um vagão de trem lacrado
Aqui neste vagão
eu Eva
com meu filho Abel
se virem meu primogênito
Caim filho de Adão
digam-lhe que eu
:
§
Rose Ausländer (1901 - 1988)
Ainda estás aqui
Lança teu medo
aos ares
Em breve
acaba teu tempo
em breve
cresce o céu
sob a grama
despencam teus sonhos
nenhures
Ainda
cheira o cravo
canta o melro
ainda tens um amante
e palavras para doar
ainda estás aqui
Sê o que és
Dá o que tens
(tradução de Ricardo Domeneck)
:
Noch bist du da
Wirf deine Angst
in die Luft
Bald
ist deine Zeit um
bald
wächst der Himmel
unter dem Gras
fallen deine Träume
ins Nirgends
Noch
duftet die Nelke
singt die Drossel
noch darfst du lieben
Worte verschenken
noch bist du da
Sei was du bist
Gib was du hast
§
Edmond Jabès (1912 - 1991)
Muito cedo, encontrei-me face ao incompreensível, ao impensável,
[à morte.
Desde esse instante, eu soube que nada, aqui em baixo, era partilhável
[porque nada nos pertence…
Há, em nós, uma palavra mais forte que todas as outras — mais pessoal
[também.
Palavra de solidão e de certeza, tão enterrada em sua noite, que mal ela
[é audível para si mesma.
Palavra da recusa mas, igualmente, do empenho absoluto, forjando seus
[laços de silêncios no abissal silêncio do laço.
Essa palavra não se partilha. Ela se imola.
(tradução de Eclair Antonio Almeida Filho)
:
Très tôt, je me suis trouvé face à l’incompréhensible, à l’impensable,
[à la mort.
Dès cet instant, j’ai su que rien, ici-bas, n’était partageable parce
[que rien ne nous appartient…
Il y a, en nous, une parole plus forte que toutes les autres — plus personnel
[aussi.
Parole de solitude e de certitude, si enfouie dans sa nuit, qu’elle est à peine
[audible à soi-même.
Parole de refus mais, également, de l’engagement absolu, forgeant ses liens
[de silence dans l’abyssal silence du lien.
Cette parole ne se partage pas. Elle s’immole.
.
.
.