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"Ódio e diáspora" - William Zeytounlian escreve sobre o Genocídio Armênio

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O poeta e tradutor armênio-brasileiro William Zeytounlian escreve sobre o genocídio armênio.

Crianças armênias em campo de refugiados
no Líbano (c. 1923).



Ódio e diáspora


I. Ódio

Em 24 de abril de 1915, sob ordem expressa dos Paxás, iniciou-se o processo de eliminação sistemática das populações armênias nos territórios do império turco-otomano. Hoje comemoramos o centenário da sobrevivência. Assim começamos o século XXI, este século de centenários: relembrando os escolhidos para o esquecimento.

O genocídio armênio pode ser entendido como um processo de oito etapas.

Elas foram:

1) Perseguição: todos os armênios que ocupavam funções públicas como juristas, burocratas, professores de escola ou universidade foram demitidos e afastados do serviço público.

2) Decapitação: de forma deliberada, rápida e sistemática 250 notórios intelectuais armênios foram decapitados no dia 24 de abril de 1915. A variedade e disparidade de função das vítimas revela justamente a faceta mais particular do genocídio: a redução de todos os indivíduos a um único denominador comum, no caso, a identidade étnica.

3) Deportação. A partir de maio de 1915 populações de vilarejos e cidades inteiras foram deportadas para o sul. As famílias eram deslocadas especialmente para o deserto da Síria, Deir-ez-Zor, deixando tudo para trás.

4) Expropriação: toda riqueza e propriedades que os armênios deixavam para trás eram transferidas para o Estado e particulares turcos. Essa espoliação foi fator decisivo para a ascensão de famílias turcas inteiras.

5) Assassinato em massa. Com consentimento e participação do Estado Otomano, grupos de extermínio atuaram na aniquilação em massa de homens, mulheres, velhos e crianças.

6) Assimilação forçada. O ataque à identidade cultural do povo odiado visou inviabilizar o estabelecimento de laços que identificassem as pessoas ao povo. Crianças eram separadas de suas famílias, muitas vezes convertidas a outra religião, proibidas de falar armênio. Muitas mulheres se tornaram escravas, marcadas com tatuagens, brutalizadas e forçadas a dar filhos a turcos.

7) Crime de fome. Os armênios deportados para o deserto da Síria foram privados de pão durante a caminhada, de modo que morressem de exaustão. Essa “grande fome” foi artificial.

8) Destruição da cultura material. Esse processo se estendeu até algumas décadas depois dos massacres. Ele consistiu na destruição da memória da existência armênia na Turquia e de seu patrimônio cultural: igrejas, cemitérios, livros, documentos, edifícios, monumentos etc.

E assim padeceram 1,5 milhão de almas.


§


II. Diáspora

Era 1896
e o poeta Hovhannes Tumanian
olhou o céu do norte da Armênia.
Um pássaro voou e fez pensar
que sua terra era
um ninho destruído.
Fez um poema.

Seu poema esperava na voz de todos
o momento de se tornar pleno –
por pouco não faltaram bocas que o cantassem.
               O poema esperou de novo
               até que nós chegássemos.
               Tornamo-nos, enfim,
               os emissários da saudade.

Di-áspora:
sêmen somos e óvulo
lançados novamente à terra –
        um dia duvidaram do gérmen:
        hoje somos bifurcação incontável.

Di-áspora:
como um auspício,
Tumanian leu o futuro
no voo de um grou.
             Mas teria ele imaginado
             que entre bananeiras e arranha-céus,
             entre as catedrais góticas e os rios de leite da Califórnia
             um dia seríamos um povo a perscrutar apenas com a memória
             todo o deserto da Síria?
     Teria ele imaginado
     que chegaríamos para buscar o que fosse,
     lasca de osso,
feixe de cabelo?

                    Esta foi nossa vingança
                    e deverá ser esta apenas.

É verdade:
em cada palavra de ternura que uso em um poema sobrevivemos;
                       e sobrevive-se em cada maço de ar que inalamos
                       e que,
                                   talvez, virará palavras.

Sobrevivemos a cada vez que minha avó fecha os olhos azuis
para dormir numa tarde tranquila;
e a cada instante em que alguém insiste em aprender este alfabeto
         [ancestral.

No sofrimento solitário por pessoas e lugares que não conhecemos;
quando minha tia Sônia, já morta, apareceu em sonho para mim;
na voz de Gomitas Vartaped que sai dos fones do meu ipod;
em cada caixão que carrega alguém morto no momento errado da vida;

                          em cada palavra
                          em cada sopro
                          em cada instante
                          nossos antepassados
                                          estão
                                          entre nós.


--- William Zeytounlian, 24 de abril de 2015.

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